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1.4 ENFIM, A TELENOVELA

1.4.1 Telenovela como recurso comunicativo e narrativa da nação

Lopes (2009) propõe um novo olhar para a telenovela. A autora parte do princípio segundo o qual a novela de televisão local é um dos fenômenos mais representativos da modernidade tardia vivida pelo Brasil, pois reproduz a condição sócio-histórica e cultural nacional ao combinar arcaico e moderno, seja no confronto de um estilo narrativo anacrônico com um imaginário contemporâneo ou na dialética da nacionalização e midiatização.

Ao estabelecer essa forte conexão com a identidade brasileira, a telenovela acaba por se converter em uma ―narrativa da nação‖ (LOPES, 2004, p. 2). Com seus personagens e histórias de ficção inscritos no contexto da vida privada, esse tradicional programa da televisão nacional, paradoxalmente, mostra-se capaz de catalisar e refletir a cultura do Brasil em toda a sua polissemia.

Por meio dessas referências culturais, sintetizadas na forma de um

―repertório comum‖ (Lopes, 2009, p.2), nutrido e atualizado de forma permanente, a telenovela aproxima pessoas das mais diferentes regiões geográficas, idades e saberes, pois se mostra particularmente hábil em alimentar o imaginário do país.

Como consequência, o território nacional vasto e multicultural toma a forma de uma

―comunidade imaginada‖ (Lopes, 2009, p.2) na qual os brasileiros, apartados pelas distâncias geográficas e culturais, reconhecem-se mutuamente e se põem em comunhão.

Nesse contexto, a força desse produto cultural está na

capacidade sui generis de sintetizar o público e o privado, o político e o doméstico, a notícia e a ficção, o masculino e o feminino [...] inscrita na narrativa das novelas que combina convenções formais do documentário e do melodrama televisivo. É isso o que [...] tipifica a telenovela brasileira e que cria o quase paradoxo de se ―ver‖ o Brasil mais nessa narrativa ficcional do que no telejornal (LOPES, 2009, p.25).

Isso porque a representação e a integração promovidas pela telenovela ultrapassam os limites do simbolismo presentes na noção de identidade e pertença e alcançam uma dimensão política e social. A partir da adoção de um estilo realista, na década de 1970, a novela de televisão brasileira ganha vida para além da ficção.

Em uma busca crescente pela verossimilhança, as tramas fictícias incorporam diferentes matizes da realidade histórica nas quais se inserem enquanto produto simbólico. Assim, os enredos passam a absorver e repercutir a dinâmica da sociedade.

Inaugura-se, assim, não apenas um novo momento na historiografia do gênero. Mais que isso, a telenovela ganha um novo status e passa a representar um novo sentido social no contexto brasileiro. Ao servir de vitrine às mais diferentes questões nacionais, o programa transforma-se em um novo espaço público, ou em uma esfera pública expandida. Dessa forma, ajuda a ampliar o acesso à informação em larga escala, converte itens exclusivos da agenda política em assuntos do povo e, consequentemente, fortalece a democracia e as possibilidades de exercício de cidadania por parte dos brasileiros em geral. Graças a essa transformação, é possível conceber a telenovela como um ―recurso comunicativo‖ (LOPES, 2009, p.2).

Cada vez mais próxima à realidade e empenhada na repercussão dos mais diferentes eventos desta, a telenovela brasileira, em pouco tempo, deixa de ser apenas uma caixa de ressonância da vida nacional. Caracterizada por uma mescla de credibilidade perante a recepção e competência de produção teledramatúrgica, o produto passa a pautar a agenda temática do público brasileiro em virtude da ampla repercussão de seus conflitos fictícios no dia a dia do Brasil (Czizewski, 2010).

Esse fenômeno, chamado agendamento midiático, é um dos maiores exemplos da representatividade social da telenovela no Brasil. Para melhor compreendê-lo, esta pesquisa busca no campo da produção de notícias bases teóricas que atestam a capacidade da mídia de inserir temas levantados pelo entretenimento de ficção entre as questões de relevo da esfera pública.

Trata-se da chamada Teoria da Agenda Setting, formulada por McCombs e Shaw, segundo a qual

O conjunto de dispositivos da mídia determina a pauta (agenda) para a opinião pública estabelecer relações de relevância sobre determinado conjunto de temas, bem como preterir, desimportar, ignorar e ofuscar outros assuntos (McCOMBS, 2004, p. 39)

Essa hipótese, que foi estabelecida quando os autores norte-americanos passaram a investigar o efeito cognitivo das notícias sobre os indivíduos, na década de 1960, especialmente em períodos eleitorais, firmou-se como teoria nas décadas seguintes, depois de ser confirmada por inúmeras pesquisas empíricas e aprimoramentos conceituais. Por meio desses estudos, constatou-se, por exemplo, que a Agenda Setting articula-se em torno de postulados que extrapolam o âmbito da cobertura jornalística de pleitos políticos e se aplicam as mais diferentes formas do trabalho de produção midiática, como as telenovelas. Dentre estes postulados, destaca-se a formulação dos conceitos de relevância e certeza6.

A partir deles, McCombs e Shaw constataram que é natural no indivíduo uma necessidade de orientação que vai se manifestar, psicologicamente, como uma demanda por informação. No entanto, tal demanda varia de pessoa para pessoa;

afinal, é indissociável do grau de importância atribuído, por cada sujeito, a determinado tema (relevância) e do quanto ele já sabe e, por consequência, do quanto ainda precisa conhecer (certeza) a respeito do assunto.

Os autores procedem ainda outro esclarecimento. Ressaltam que a agenda-setting não opera somente em nível temático, deliberando sobre ao que se deve voltar a atenção, mas também no que se refere aos atributos; ou seja, ao tratamento dado às temáticas repercutidas pelos meios de comunicação de massa, o qual configura a chamada agenda de atributos.

Por agenda, aliás, deve-se entender um processo pelo qual as demandas de diversos grupos sociais são transformadas em assuntos que disputam a atenção das autoridades públicas. Dele emergem vários tipos de agendandamento: além da já citada agenda midiática, destacam-se a intrapessoal – correspondente às preocupações quanto a questões públicas interiorizadas pelo indivíduo; a

6 Alguns autores preferem o emprego do termo incerteza, o que não altera seu significado, cambiando apenas a ordem dos fatores (N.A).

interpessoal – referente aos assuntos mencionados e discutidos na interação entre sujeitos; a pública – que engloba o conjunto de temas considerados relevantes pela sociedade como um todo; a institucional – concernente às prioridades de cada instituição – e a política, que contempla itens concretos que são assunto de trabalho e consideração por parte de um corpo constitucional de tomadas de decisão, tais como a Câmara e o Senado (BARROS FILHO, 2001).

Nesse contexto, o conjunto dos meios de comunicação de massa representa apenas uma das várias instituições disseminadoras de agendas vigentes na sociedade. Longe de ser a única e inquestionável promotora de fenômenos sociais a partir de produtos midiáticos, a agenda midiática, conforme a Teoria da Agenda Setting, desempenha um papel intermediário, uma vez que a ela cabe mediar a relação entre público e privado, guiando-se pela noção de interesse coletivo e com vistas ao pleno desenvolvimento da vida em sociedade. Em outras palavras, a mídia, a partir da repercussão que dá a determinados temas sugere à opinião pública em quais assuntos pensar. Já pela forma como gera essa repercussão, acaba por sugestionar o público quanto o que pensar a respeito dos temas repercutidos.

Porém, caso venha a engendrar algum tipo de fenômeno que exceda a pauta temática, esse tipo de agenda o faz em consonância com as demais e a partir de um conjunto de condições sociais específicas. Primeiramente, porque sua tentativa de indução quanto ao significado social de determinado fato depende de fatores como relevância e certeza. Além disso, a agenda midiática tanto alimenta quanto é alimentada pelas demais agendas que regulam a vida social, inclusive pelas agendas de outros meios de comunicação. A esse processo de agendamento da mídia pela mídia dá-se o nome de interagendamento (McCombs, 2004)

Assim, é possível perceber um processo sistêmico que se dá da seguinte forma:

a) primeiramente, é preciso que um determinado tema seja percebido como relevante pelo individuo;

b) posteriormente, este – seja para complementar ou compartilhar seu conhecimento acerca do assunto – , deve fazê-lo matéria de interação com seu grupo social próximo;

c) a partir de então, os meios de comunicação passam a desempenhar um papel preponderante. Eles servem de ―caixa de ressonância‖ do discurso coletivo, sinalizando que a questão extrapolou os limites da esfera privada;

d) numa progressão natural, a questão é inserida na agenda pública e;

e) dependendo de seu teor e implicações, pode vir a alcançar o âmbito político, cristalizando-se na forma da lei ou de outra medida governamental (MELO, 2007).

Percebe-se, pois, que longe de ser um processo potencialmente homeostático, a inclusão de um tema nas diferentes agendas está sujeito a fatores emotivos, cognitivos e ideológicos que se inscrevem no jogo social. Isso posto, fica claro que os fenômenos sociais mediados pela comunicação de massa resultam de uma relação gradativa, mas não vertical, tal como uma corda da qual cada segmento corresponde a um nível de agenda.

Assim, o agendamento temático, em sentido amplo, origina-se da trama de relações e da correlação de forças que compõem o tecido social. Nesse contexto, a telenovela é apenas um desses segmentos e representa um vetor de força específico (Czizewski, 2010).