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11 Tradução nossa

1.2.1 Breve histórico dos estudos sobre aquisição de L

O campo de estudos aquisição e ensino de L3 é uma área recente não apenas no Brasil, mas também em âmbito internacional. Jessner (2008) faz uma discussão abrangente acerca do ensino e aprendizagem de L3 no tocante aos aspectos sociolinguísticos, psicolinguísticos e educacionais, enfatizando mais esse último. Esse trabalho é de grande importância para a área de aquisição e ensino de L3 devido ao seu caráter histórico. O autor apresenta o estado da arte das pesquisas em ensino e aprendizagem de L3 e multilinguismo, além de descrever as tendências atuais de pesquisa nessa área e apontar diretrizes para o futuro desse campo de conhecimento.

A seguir, traremos os principais momentos históricos narrados por Jessner (op. cit.) quanto às pesquisas em L3 e, quando for apropriado, estabeleceremos relações entre eles e a presente pesquisa.

De acordo com Jessner (2008), um dos primeiros estudiosos a investigar sobre multilinguismo foi o linguista alemão Maximilian Braun, quem publicou o artigo "Observações sobre a questão do multilinguismo",22 em 1937.

Nesse trabalho, Braun relata os problemas com a definição de multilinguismo e propõe a seguinte: “proficiência ativa, balanceada e perfeita em duas ou mais línguas”23 (BRAUN, 1937, p. 115 apud JESSNER, 2008, p. 16).

Braun (op. cit.) fazia distinção entre multilinguismo natural,24 adquirido desde o nascimento, e multilinguismo aprendido.25 Esse último, segundo o autor, também pode resultar numa proficiência ativa e balanceada nas línguas envolvidas, porém não é comum e só acontece sob circunstâncias muito específicas. Segundo Jessner (2008), nessa época, a maioria dos estudiosos26 acreditava que o bilinguismo trazia efeitos negativos para a inteligência e a cognição.

22 BRAUN, M. Beobachtungen zur Frage der Mehrsprachigkeit.

(Observations on the question of multilingualism). Göttingische Gelehrte Anzeigen 4, p. 115–130, 1937.

23 Tradução nossa.

24 “Natural multilingualism” (tradução nossa). 25 “Learned multilingualism” (tradução nossa). 26 Jessner (2008) cita Saer (1923) e Weisgerber (1929).

Jessner (op. cit.) também comenta que, em 1963, Vildomec27 publicou um estudo sobre multilinguismo, o qual tratava dos diferentes estilos de aprendizagem de seus sujeitos multilíngues. Assim como Braun, Vildomec também se deparou com problemas terminológicos e enfatizou a diferença entre bilinguismo (referente ao domínio de duas línguas) e multilinguismo (referente à familiaridade com mais de duas línguas). Vildomec (1963 apud JESSNER, 2008) afirma que Schuchardt, já em 1884, sustentava que não há línguas que não sejam mescladas com outras. De acordo com Vildomec, até então (final do século XIX), a Linguística negava a existência desse fenômeno, priorizando uma concepção purista de língua. Vildomec foi um dos primeiros pesquisadores a descrever os benefícios do multilinguismo.

No final da década de 1960 e ao longo da década de 1970, os pressupostos behavioristas da Hipótese da Análise Contrastiva embasaram a ideia de interferência da L1 nas demais línguas do falante, fenômeno também conhecido por “transferência negativa”. Até o início dos anos de 1990, predominava a ideia de que o contato com mais de uma língua resultaria em problemas de ordem cognitiva ou linguística.

Em se tratando de educação de surdos, sabe-se que esse discurso foi bastante recorrente (e infelizmente hoje ainda é encontrado). Durante muito tempo, a língua de sinais foi vista como sendo prejudicial ao desenvolvimento cognitivo dos surdos e, inclusive, como um elemento dificultador na aquisição do português por esses sujeitos. O mito de que usar sinais faria os surdos “terem preguiça de oralizar” em português já foi muito forte. Acreditava-se, portanto, que o “bilinguismo” Libras- português (bilinguismo entre aspas porque, na verdade, as línguas de sinais não eram nem consideradas línguas nessa perspectiva) trazia efeitos negativos para a cognição e o desenvolvimento linguísticos dos surdos (cf. GOLDFELD, 1997).

Ainda na década de 1960, Peal e Lambert28 (1962 apud JESSNER, 2008) publicaram um estudo sobre as vantagens do bilinguismo, mas nessa época (e até bem pouco tempo) os estudos sobre bilinguismo não dialogavam com os estudos sobre aquisição de segunda língua (SLA29). Isso porque essas áreas têm origens em quadros teóricos distintos. Enquanto o bilinguismo deriva de estudos sociolinguísticos, a área aquisição de L2 está enraizada num arcabouço teórico pedagógico.

27 VILDOMEC, V. Multilingualism. Leyden: A.W. Sythoff, 1963.

28 PEAL, E.; LAMBERT, W. The relation of bilingualism to intelligence.

Psychological Monographs 76, p. 1–23, 1962.

O pouco contato entre essas áreas gerou, durante muito tempo, a crença no malefício do contato com várias línguas. As pesquisas sobre L3 mostram claramente a inter-relação entre essas duas áreas do conhecimento.

De acordo com Jessner (2008), em 1987 foi publicado o primeiro livro sobre aquisição de L3, de autoria de Ringbom,30 quem comparou a aquisição de inglês como L3 por monolíngues e bilíngues na Finlândia (os últimos tendo o sueco como L2) e constatou que os bilíngues tiveram uma melhor performance que os monolíngues em inglês. Cerca de dez anos antes, Stedje31 (1976, apud JESSNER, 2008) publicou um estudo semelhante sobre o aprendizado de alemão como L3. No entanto, como a publicação foi feita em sueco e alemão, o estudo não foi largamente conhecido. Jessner (op. cit.) também relata que, em 1988, Thomas32 investigou as vantagens de bilíngues sobre monolíngues no aprendizado de francês como L3 nos EUA. Nesse estudo, a L2 foi o espanhol.

Esses estudos iniciais foram a base de uma visão mais positiva quanto ao bi/multilinguismo, ainda que, conforme Jessner (2008), até há pouco tempo só se acreditasse no sucesso na aprendizagem de várias línguas se essas estivessem rigorosamente separadas no aprendiz e na sala de aula.

Acreditava-se que era preciso usar as línguas de forma absolutamente separadas e estudá-las também dessa forma. Ou seja, a visão idealizada de línguas enquanto sistemas puros que não devem se misturar uns com os outros continuou presente mesmo após a aceitação do bi/multilinguismo como um fenômeno positivo.

No que diz respeito à educação de surdos, percebe-se que algo semelhante ocorreu (e ainda ocorre). Mesmo após a aceitação da abordagem bilíngue na educação desses sujeitos, a concepção de bilinguismo presente advogava em favor de uma separação radical entre Libras (L1) e português (L2), tanto nos usos que os surdos fazem dessas

30 RINGBOM, H. The role of L1 in foreign language learning. Clevedon:

Multilingual Matters, 1987.

31 STEDJE, A. Interferenz von Muttersprache und Zweitsprache auf eine

dritte Sprache beim freien Sprechen – ein Vergleich. (Interference by the native language and a second language on a third language in free conversation -- a comparison). Zielsprache Deutsch 1, p. 15–21, 1976.

32 THOMAS, J. The role played by metalinguistic awareness in second and

third language learning. Journal of Multilingual and Multicultural Development 9, p. 235–246, 1988.

línguas em seu dia a dia quanto nos usos que a escola promove em sala de aula, tratando com desprestígio qualquer tipo de interação/mistura entre essas línguas, como, por exemplo, os usos comunicativos legítimos de code-switching33 e code-blending.34.

Com relação às tendências atuais de pesquisas, o trabalho de Jessner (2008) traz um panorama de investigações com foco no aprendiz multilíngue,35 no professor multilíngue36 e na didática multilíngue.37 Esse temas exploram, entre outros aspectos, a inter-relação benéfica entre as línguas que um aprendiz já conhece e as que está aprendendo e questionando, demonstrando, portanto, a postura de separação rigorosa das línguas do bi/multilíngue.

Quanto à terminologia da área, esse autor declara que se trata de um desafio. Ele relata que, no passado, “aprendizagem de L2” e “bilinguismo” eram tratados como “multilinguismo”. Para Haugen (1956 apud JESSNER, 2008, p. 18), “bilíngue inclui plurilíngue e poliglota”. No entanto, conforme Jessner (op. cit.), em pesquisas mais recentes,38 o bilinguismo vem sendo tratado como uma variante do multilinguismo. Para um crescente número de pesquisadores, aprender uma L3 é diferente de se aprender uma L2 em muitos aspectos e o termo “multilinguismo” deve ser usado apenas quando se referir ao aprendizado de mais de duas línguas.

Entretanto, Jessner (op. cit.) mostra que ambos os pontos de vista podem ser integrados: o multilinguismo pode ser visto como qualquer tipo de aquisição de mais de uma língua, mas também considerar as mudanças qualitativas no aprendizado de línguas relacionadas ao aumento do número de línguas envolvidas no desenvolvimento e uso multilíngue.

No contexto europeu (CONSELHO EUROPEU, 2007), o plurilinguismo é tratado como um multilinguismo no nível individual

33 “Alternância de línguas”. Ocorre quando um falante insere desde itens

lexicais de uma línguaX numa enunciação numa línguay.

34 “Sobreposição de línguas”. Ocorre quando um falante produz,

simultaneamente, itens lexicais de uma língua de sinais e de uma língua oral, o que é possível por conta da diferença de modalidade entre essas línguas.

35 Jessner (2008) cita Clyne (2003), Hufeisen (2005) e Jessner (2006).

36 Jessner (2008) cita Aronin e Ó Laoire (2003), Skuttnab-Kangas (2000) e

Seidlhofer (2005).

37 Jessner (2008) cita García et al. (2006), Hufeisen (2005), Moore (2006),

Welke (2006) e Glinz (1994).

(diz respeito ao repertório linguístico de cada indivíduo), enquanto o multilinguismo propriamente dito é tratado no nível social, ou seja, o uso de várias línguas num mesmo território ou comunidade.

No caso da presente pesquisa, essa diferença é importante, pois, ao mesmo tempo em que temos uma situação de bi/multilinguismo social dos surdos brasileiros (falantes de Libras-L1 e português-L2), temos a questão do plurilinguismo no que diz respeito à aprendizagem e uso do inglês (e de outras línguas, como a American Sign Language – ASL) por interesse particular deles, e não por uma demanda comunicacional da comunidade onde vivem.

Quanto ao conceito de educação plurilíngue, o Conselho Europeu (2007, p. 51), a define como “uma maneira de ensinar, não necessariamente restrita ao ensino de línguas, a qual objetiva aumentar a consciência de cada indivíduo sobre seu repertório linguístico, enfatizar seu valor e estender esse repertório […]”39.

O ambiente educacional desta pesquisa se propõe a ser plurilíngue, mesmo que a comunidade local, geograficamente falando, não o seja, pois objetiva trabalhar com a promoção do repertório linguístico dos estudantes. Nessa perspectiva, levamos em consideração as línguas prévias com as quais os estudantes têm contato. Alguns alunos da presente pesquisa, por exemplo, são falantes de ASL, fato que nos levou a fomentar discussões sobre essa língua em diversos momentos das aulas.

Com relação ao futuro das pesquisas em ensino/aprendizagem de L3, Jesser (2008) afirma que

um dos objetivos mais difíceis do trabalho futuro com formação de professores de línguas será certificar-se de que todos os professores de línguas sejam especialistas em multilinguismo, mesmo que eles ensinem apenas uma língua. Isso é afirmado por Krumm (2005:35) […]. E ele continua dizendo que o uso de outras línguas na sala de aula tem que ser permitido a fim de se tirar vantagens das línguas e das experiências com aprendizagem de línguas que os alunos trazem consigo para a sala de aula. (JESSNER, 2008, p. 45, tradução nossa)