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39 Tradução nossa.

1.4 ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO 1 A transferência entre línguas

Na produção em L2/LE é comum haver transferências de outras línguas conhecidas pelos falantes, tanto da LM quanto das demais línguas não maternas. Quando as estruturas da língua-fonte e da língua- alvo coindidem, ocorre o que a literatura chama de “transferência positiva”. Ellis (1997, p. 142) define esse tipo de transferência como a “transferência linguística que facilita a aquisição das formas da língua- alvo”. Por outro lado, quando as estruturas da língua-fonte e da língua- alvo não coincidem, a transferência resulta em erro61 e é chamada de “transferência negativa”.

Ellis (op. cit.) relata um pouco da história da perspectiva sobre transferência nos estudos em aquisição de L2. Trataremos agora dos pontos principais desse histórico.

No auge do behaviorismo, a saber décadas de 40 e 50, acreditava- se que os erros eram resultado de “interferência”, como era chamada a transferência negativa. Nessa época, a análise contrastiva entre a L1 e a L2 do aprendiz buscava descrever em que os aspectos essas línguas se diferenciavam, a fim de evitar que a interferência da L1 sobre a L2 acontecesse. Ou seja, era preciso evitar o erro. Nessa concepção, acreditava-se que a L1 impedia que o aprendiz aprendesse os aspectos da L2.

61 O erro na L2 não ocorre apenas quando há transferência negativa da L1. De

acordo com Brown (2000), existem também os erros intralinguísticos (resultados de hipóteses do aprendiz sobre a L2), os erros que ocorrem devido ao contexto sociolinguístico de comunicação, ao uso de estratégias psicolinguísticas e cognitivas e às variáveis afetivas.

No começo dos anos de 1970, a perspectiva behaviorista começou a declinar. Com isso, duas perspectivas ganharam força: a mentalista e a cognitivista. A primeira (mentalista) argumentava que poucos erros vêm de transferência da L1. Numa pesquisa realizada com hispânicos aprendizes de inglês como L2, identificou-se que apenas 5% dos erros vinham da L1.

A segunda perspectiva alternativa ao behaviorismo (perspectiva cognitivista) redefiniu o conceito de transferência sob o arcabouço cognitivista, o que começou com Selinker. Esse autor formulou a teoria da interlíngua,62 alegando que a transferência é um processo cognitivo, não uma interferência. Nessa perspectiva, os aprendizes recorrem à sua L1 para formar hipóteses na interlíngua, bem como a qualquer tipo de informação que eles tenham disponível, como o conhecimento de outras línguas.

No final do século XX, foi-se observando que os erros cometidos pelos aprendizes de uma L2 não eram estáveis, ou seja, que sua interlíngua variava de acordo com fatores externos (como tarefa, registro e tópico) e internos (fatores afetivos) — uma perspectiva construtivista de aprendizagem.

De acordo com Leki (1992, p. 111), atualmente “os erros são vistos como evidência de uma variedade de estratégias de aprendizagem e de produção linguísticas”63 empregadas pelos aprendizes de uma L2, influenciados por fatores externos e internos. Ou seja, o erro é resultado da tentativa de se comunicar. Nessa visão, o erro não é visto como algo a ser evitado. Pelo contrário, as situações que podem gerar erro são estimuladas.

Sobre isso, Cummins (2007, p. 1) afirma que “nós devemos explorar estratégias em sala de aula que tenham se mostrado eficazes em ajudar os estudantes a transferir para o inglês o conhecimento que eles têm na sua primeira língua”.64 Nesse sentido, precisamos estimular o aluno a testar suas hipóteses quanto ao uso da língua, arriscando-se na produção textual, mesmo que isso gere erros. Essa é a perspectiva adotada no presente trabalho.

Não entendemos o erro como algo negativo, a ser evitado. Pelo contrário, entendemos o erro como sendo uma evidência importante no

62 “Um termo cunhado por Selinker para se referir ao conhecimento sistemático

de uma L2 que é independente tanto da língua-alvo quanto da L1 do aprendiz” (ELLIS, 1997, p. 140).

63 Tradução nossa. 64 Tradução nossa.

sentido de indicar quais hipóteses estão sendo testadas no processo de aquisição da língua-alvo. Assim, o professor, de certa forma, tem acesso ao processo de aprendizagem do aprendiz e pode planejar melhor suas intervenções pedagógicas. Além disso, refletindo sobre seus erros, o próprio aprendiz pode conhecer e acompanhar melhor o seu processo de aprendizagem.

A seguir, apresentaremos alguns dos fatores que podem favorecer a transferência entre línguas. Os conceitos abordados serão mobilizados nos capítulos de análise e conclusões desta pesquisa.

1.4.1.1 Fatores que podem favorecer a transferência entre línguas O processo de transferência não ocorre de forma aleatória, ele age sob restrições. Segundo Ellis (1997), duas delas são: (a) a percepção do aprendiz sobre o que pode ser transferido e (b) seu estágio de desenvolvimento. De acordo com Kellerman (1983), os aprendizes de uma L2 têm percepções quanto aos aspectos linguísticos de sua própria língua (L1), considerando alguns aspectos com mais potencial de serem transferidos que outros. Geralmente, quando percebem que um aspecto é muito particular de sua L1, a probabilidade de ele ser transferido é menor do que outro aspecto que parece ser mais comum a outras línguas. Quanto ao estágio de desenvolvimento, ele influencia a transferência da L1 do aprendiz. A transferência de determinados aspectos gramaticais, por exemplo, ocorre em um estágio e não ocorre em outro.

Kellerman (1983) introduziu o conceito de “psicotipologia” na literatura sobre transferência: é a percepção que o aprendiz tem da L2 e da sua distância da L1. Segundo esse autor, o aprendiz estabelece ou não uma relação de semelhança entre as línguas e tende a transferir estruturas entre as línguas que percebe como semelhantes. Muitas vezes, a percepção do aprendiz não corresponde à distância tipológica real entre as línguas em questão.

Para Sikogukira (1993), a semelhança entre línguas também pode ser estabelecida tendo como critério o ambiente e o método de ensino utilizados na aquisição das línguas, chamado de “efeito de similaridade”. Entretanto, as crenças dos aprendizes também influenciam esse estabelecimento ou não de semelhança, distanciando a percepção da distância tipológica que de fato existe entre as línguas.

Outro fator que pode favorecer a transferência entre línguas é a semelhança do status linguístico das línguas. Williams e Hammarberg (1998) falam sobre o “efeito da língua estrangeira”. De acordo com

esses autores, o aprendiz tem a tendência de bloquear o acesso à L1 e utilizar os seus conhecimentos da L2 numa produção em L3 porque a L2 possui o mesmo status que a L3 — ambas são línguas não maternas. Hufeisen (2006) argumenta que a proximidade espacial das atividades cognitivas no cérebro favorecem a transferência entre L2 e L3.

Williams e Hammarberg (1998) também sustentam que o mecanismo de aquisição utilizado na L2 é reativado na aprendizagem da L3, o que favorece a transferência entre essas línguas, não apenas de recursos linguísticos, mas também de estratégias (de aprendizagem, de comunicação) e habilidades (de letramento, por exemplo).

Hammarberg (2001) afirma que a língua que foi usada mais recentemente será a língua mais acessada para fazer transferência, tanto no nível da compreensão quanto no nível da produção. Esse fato é chamado de “efeito de uso recente”.

Quanto à proficiência, Williams e Hammarberg (1998) afirmam que a influência da L2 é mais forte nos estágios iniciais de aquisição da L3 e vai diminuindo gradativamente enquanto a proficiência na L3 aumenta. Entretanto, De Angelis (2007) argumenta que não se deve assumir que a transferência sempre vai diminuir na medida em que a proficiência na L2/Ln (sendo “n” um número qualquer de línguas) aumenta. Sousa (2008), por exemplo, percebeu um aumento no uso da L2 dos participantes nos textos em L3 ao longo de um ano de pesquisa, corroborando De Angelis (op. cit.). Odlin (1990) afirma que, nos estágios iniciais, a transferência negativa é mais preponderante, enquanto nos estágios mais avançados, a transferência positiva atua mais.

A modalidade também pode ser um fator que leva à transferência. Vanek (2009), como vimos anteriormente, sustenta que a semelhança de modalidade entre a L2 e a L3 (línguas oral-auditivas, diferentes da modalidade da L1, língua visuoespacial) favorece a transferência entre essas línguas. As pesquisas de Sousa (2008), Silva (2013) e Rocha (2014), comentadas anteriormente, reforçam o argumento de Vanek (op. cit.), pois identificaram a transferência da língua portuguesa (L2) para a escrita de surdos em L3/LE.

Silva (2013), entretanto, afirma que a Libras tem um papel mais determinante na influência sobre o inglês-L3 porque é a língua mais “estabilizada”. Rocha (2014), mesmo identificando a transferência do português para a escrita em espanhol, também observou que as transferências da Libras foram mais frequentes. Sousa (2008), como nós, não objetivou quantificar as ocorrências que vieram da Libras e as

que vieram da LP, a fim de comparar qual delas foi a maior fonte de transferências para o inglês.

Além da modalidade de línguas, o sistema de escrita também é um fator que pode favorecer a transferência entre o português-L2 e a L3/LE. Como argumenta Odlin (1990), a semelhança entre sistemas de escrita pode ser o pontapé inicial para os estudantes lerem e escreverem na língua-alvo. Enquanto inglês, espanhol e português são línguas de escrita alfabética, a língua de sinais é representada por sistemas visuográficos de escrita, como o Sign Writing.65 Segundo o critério da similaridade entre sistemas de escrita, a probabilidade de haver transferência entre português (L2) e espanhol ou inglês (L3) parece ser maior do que entre Libras (L1) e essas L3s.

Ou seja, a similaridade na ortografia pode levar o aluno a misturar a escrita do inglês com a do português, mas não com a escrita de sinais, pelo menos no nível da palavra. Em Sousa (2008), observou- se a adição de morfemas do inglês a lexemas do português (na lógica da estratégia “foreignizing”, a qual discutiremos na seção seguinte), no intuito de adaptar a ortografia de uma língua à outra.

Silva (2013) cita alguns fatores que podem favorecer a similaridade ortográfica entre palavras da L2 e da L3: (a) ter o mesmo número de sílabas; (b) ter letras comuns; e (c) ter a mesma letra inicial. Isso tanto pode levar os estudantes a interpretarem uma palavra numa língua como sendo da outra66 ou misturar as duas línguas na escrita de palavras.

Sousa (2008), Silva (2013) e Rocha (2014) também identificaram, conforme comentamos, transferências da Libras para a L3, corroborando também a hipótese da interdependência linguística de Cummins (1981), a qual sustenta que a L1 do aprendiz será a base para a aquisição da L2, mesmo que de modalidade distinta da L2.

65 O sistema de escrita de sinais Sign Writing foi adaptado para a Libras por

Stumpf (2005). Ele expressa os parâmetros fonológicos da língua de sinais — configuração de mão, movimento, locação, orientação da(s) mão(s) e as marcas não manuais — de forma simultânea. Além disso, é composto por sinais gráficos, como os que representam as pausas curtas e as pausas longas. No Brasil, existem outras propostas de representação escrita da Libras além do Sign Writing, como o sistema ELiS (Escrita das Línguas de Sinais), de base alfabética e linear-sequencial (ESTELITA, 2007) e a escrita SEL (Sistema de Escrita para Línguas de Sinais), que também se organiza linearmente (disponível em: http://www.sel-libras.blogspot.com.br/).

Cummins (2000), ao revisitar a teoria da interdependência linguística, afirma que a aprendizagem de uma L3 pode ser facilitada pela L1 dos aprendizes, especialmente em se tratando de falantes de línguas minoritárias. A L1 desses estudantes deve, portanto, ser estimulada e desenvolvida na escola.

Como sustenta Cenoz (2000), a hipótese da interdependência linguística de Cummins também pode ser estendida a contextos multilíngues. Esse autor acredita que bilíngues podem transferir habilidades tanto da L1 quanto da L2 para uma L3 que estejam aprendendo, como ocorreu nas pesquisas de Sousa (2008), Silva (2013) e Rocha (2014).

Quanto à presente pesquisa, não foi nosso objetivo investigar qual língua teve maior participação nas ocorrências de transferência — se a L1 ou a L2. Nesse aspecto, nosso estudo foi de caráter descritivo e os dados quantitativos a que nos referimos diz respeito à comparação entre as transferências que vêm da própria língua-alvo e as que vêm de línguas previamente adquiridas.

1.4.2 As estratégias de comunicação em L2/LE 1.4.2.1 Definindo estratégia de comunicação

O conceito de estratégia de comunicação nos estudos em aquisição de L2 geralmente tem sido relacionados à solução de problemas na comunicação. Como afirma Bialystok (1990), é indiscutível que estratégias são empregadas para solucionar situações- problema. Porém, é preciso se ampliar o conceito tradicional de “problema”.

Em se tratando de comunicação, um problema não necessariamente está relacionado à falta de recursos linguísticos na língua-alvo. Como define Ellis (1997, p. 138), as estratégias de comunicação são “estratégias usadas tanto por falantes nativos quanto por aprendizes da L2 para superar problemas comunicativos resultantes da falta de recursos linguísticos ou da inabilidade de acessá-los”.67

Se um falante, por algum motivo, não consegue se expressar em sua L1 e procura alternativas para fazê-lo, também estará fazendo uso de estratégias de comunicação, como será exemplificado mais adiante no estudo de Bongaerts e Poulisse (1989). Além disso, o próprio falante de uma L2 não precisa estar numa situação em que lhe falte conhecimento