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3 A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO JOVEM NA PERSPECTIVA

3.7 Breve histórico em torno da função social das bibliotecas públicas

Primeiramente, acreditamos ser importante definir o que entendemos, em nosso estudo, como biblioteca pública, já que essa terminologia, algumas vezes, é utilizada de forma equivocada ou confunde-se com biblioteca escolar ou comunitária. A partir de Machado (2008), consideramos que essa instituição é um local de acesso público, ligada e mantida pelo poder público municipal, estadual ou federal, em termos de recursos – humanos, materiais e financeiros –, criadas para atender às necessidades informacionais da comunidade local e de seu entorno.

Silveira e Reis (2011) consideraram que as bibliotecas públicas, como instituições sociais que estão sempre em evolução, na contemporaneidade, agregam o sentido de lugar público, portanto, além da guarda dos bens simbólicos e patrimoniais das sociedades nas quais estão inseridas, garantem também o livre acesso a todos que queiram utilizá-los ou fruí-los.

Chartier e Hébrard (1995), que descrevem os discursos sobre a leitura na França entre 1880 e 1990, explicitam que, no século XIX, esses espaços tinham como principal função a conservação e preservação do patrimônio. Para tanto, os leitores eram vigiados, para que não degradassem os livros. Além dessas, existiam, na França, as bibliotecas populares, que tinham a finalidade de moralizar o povo, tomado como perigoso. Os autores ressaltam que o fortalecimento dessas instituições como espaços associados à democracia acontece apenas no século XX.

Esses autores salientam também que, historicamente, a função social das bibliotecas esteve sempre atrelada às atribuições dos bibliotecários, marcadas por contradições, oscilando entre o conhecimento técnico e da cultura geral e o conhecimento profundo dos leitores. Por esse motivo, a formação desses profissionais era diversa, alternando-se entre a conservação, de natureza especializada, e aquela voltada à prática pedagógica. Dessa forma, os problemas de leitura pública sempre estiveram atrelados ao papel exercido por esses profissionais.

Na esteira desse debate, os autores explicitam que o discurso acerca das finalidades da leitura, durante o século XIX, associava-se, sobremaneira, às necessidades de instrução. É somente no século XX que se discute a prática leitora como possibilidade de distração, em que se percebe o leitor como:

[...] cidadão responsável e seus projetos de leitura nunca devem ser discutidos ou dirigidos pelo bibliotecário; basta que este permita a sua realização. Assim, pela primeira vez, um discurso político sobre a leitura se recusa a distinguir entre bons e maus leitores, entre boas e más leituras, porque associa a relação entre o público e livros ao exercício de uma cidadania responsável da qual o bibliotecário é depositário (CHARTIER E HÉBRARD, 1995, p.152).

Os autores observam que, por volta dos anos 50, a função do bibliotecário oscilava entre censor e guia. No entanto, motivados pelo movimento dos Estados Unidos e Inglaterra de criação das bibliotecas livres: “com salas claras, livre acesso às estantes, publicações atualizadas e inovações atraentes, para satisfazer e promover a frequência dos visitantes”, a função desse profissional, como iniciador do público leitor, vai firmando-se na França” (CHARTIER E HÉBRARD, 1995, p.153). Consolida-se também o serviço de empréstimo, para além das consultas, bem como o alcance de um público diversificado, com vistas ao lazer, à informação, ao estudo e à cultura. É também a partir desse movimento que surge, na França, a reivindicação de desconcentração da política cultural.

Segundo os autores, em torno dos anos 70, os discursos em relação às bibliotecas começam a tomá-las como espaços de encontro e também de animação, em que os leitores passam a ter maior importância do que os livros. Nos anos 80, partindo desse pressuposto e da diversificação do público das bibliotecas (jovens, crianças, idosos, analfabetos, imigrantes etc.), alteram-se também as possibilidades de atuação dos bibliotecários (hospitais, prisões, postos de saúdes, mercados, estações etc.). “A trajetória da leitura pública atinge assim seu ponto máximo de extensão, que formalmente é indefinido: todos os lugares onde há vida, trânsito, trabalho, lazer podem tornar-se locais de depósito e empréstimo de livros” (p.234).

Contudo, eles consideram que, se nos anos 50, persiste a contradição da profissão de bibliotecário, entre o censor e guia, nos anos 60, o desafio que se coloca para esse profissional é que a política de leitura, tomada como parte da democracia cultural, agora envolve mais que o acesso ao livro, mas também à música, filmes e documentários, transformando a biblioteca

em mediatecas. O que mais uma vez problematiza a função desse profissional: “pode-se relativizar o livro enquanto suporte cultural e não cometer suicídio profissional” (p.196).

A partir desse relato, nota-se que o debate acerca da função social das bibliotecas como espaços de acesso e promoção da leitura é relativamente recente, quando se esboça o percurso histórico dessas instituições. De forma geral, atualmente, a ação bibliotecária em nível mundial orienta-se pelo documento produzido pela UNESCO, que considera essas instituições como:

[...] porta de acesso local ao conhecimento, [que] fornece as condições básicas para uma aprendizagem contínua, para uma tomada de decisão independente e para o desenvolvimento cultural dos indivíduos e dos grupos sociais [...] Este Manifesto proclama a confiança que a UNESCO deposita na Biblioteca Pública, enquanto força viva para a educação, a cultura e a informação, e como agente essencial para a promoção da paz e do bem-estar espiritual nas mentes dos homens e das mulheres (1994, p.1).

Jaramillo e Posada (2013) entendem que, na contemporaneidade, essas instituições ressignificaram suas funções, com vistas à formação cidadã, relacionada à educação social, entendida como aquela que extrapola os muros escolares, criando possibilidades de acesso a bens culturais diversos que ampliam as perspectivas socioeducativas, profissionais, de lazer e participação da população.

Na América Latina, segundo Rodriguez (2002), atualmente o discurso de valorização social das bibliotecas públicas vem disseminando-se tanto na formulação de políticas públicas, quanto entre os trabalhadores da cultura. De acordo com a autora, essas instituições são apontadas como espaços imprescindíveis para o desenvolvimento social, na medida em que proporcionam à população o acesso à leitura e à informação.

Destaca-se ainda que quando se tratam de assuntos como melhoria da qualidade educacional, formação de sociedades leitoras e a importância do acesso à informação para o pleno exercício da democracia, essas instituições são citadas como propulsoras desses ideais. Sendo assim, cabe identificar as repercussões desses discursos no Brasil.

3.7.1 Discursos brasileiros em torno da função social das bibliotecas públicas

Se considerarmos a tradição dos países europeus, os estudos sobre bibliotecas públicas no Brasil começam a se concretizar como campo de pesquisa há pouco tempo. No entanto, ao nos voltarmos para os discursos sobre bibliotecas apontados pelo legado eurocêntrico, não podemos deixar de ressaltar que existem grandes diferenças entre países como França e Brasil, embora, compreendamos que as questões em torno dessas instituições e a leitura na América Latina, sejam influenciadas por esse pensamento.

No Brasil, a biblioteca pública constituiu-se como centro de informação somente no século XX, com a criação da Biblioteca Pública Mário de Andrade em São Paulo. Essa iniciativa tornou-se marco na América Latina. Desde então, no plano conceitual, essas instituições são associadas à função sociocultural de promoção da leitura, de acesso à informação e guarda da memória coletiva (FREITAS E SILVA, 2014, p.3).

Todavia, ainda que o discurso das políticas públicas no Brasil reitere as bibliotecas públicas como espaços de acesso e promoção da leitura, a função de formação de leitores até então, não está explícita nos documentos oficiais, como mostra o texto do Plano Nacional de Livro, Leitura e Literatura – PNLL26, quando lhe confere o status de dínamo cultural:

[...] a biblioteca não é concebida aqui como um mero depósito de livros, como muitas vezes tem se apresentado, mas assume a dimensão de um dinâmico pólo difusor de informação e cultura, centro de educação continuada, núcleo de lazer e entretenimento, estimulando a criação e a fruição dos mais diversificados bens artístico-culturais; para isso, deve estar sintonizada com as tecnologias de informação e comunicação, suportes e linguagens, promovendo a interação máxima entre os livros e esse universo que seduz as atuais gerações (Brasil, 2010, p.18, grifos nossos).

Machado (2008) considera que a iniciativa de criação do plano teve como finalidade a sistematização e a integração das ações ligadas ao livro, à leitura, à literatura e à biblioteca, até então, desenvolvidas no país de forma dispersa e desarticulada. Silva (2009) também concorda com essa consideração, porém, salienta que a lei precisa reverberar-se em metas e ações que mudem de fato a atual realidade brasileira.

26 Esse plano foi criado em 2006, com a pretensão de estabelecer uma política pública de estado para o setor, em

Se, a partir de 2006, temos no Brasil um documento institucional que enfatiza a importância das bibliotecas públicas como espaços de acesso e promoção da leitura, até então, como aponta Farias (2013), o texto oficial de orientação dessas instituições, produzido pelo Sistema Nacional de Bibliotecas – SNPP, voltava-se, sobretudo, para a administração e a gestão dessas instituições como empresas, com foco no planejamento estratégico e desenvolvimento do

marketing institucional. O mesmo que se vê na administração de hospitais, universidades e

outras instituições públicas no Brasil. A autora assinala a contradição presente nesse discurso, pois esse mesmo texto também ratifica as diretrizes disseminadas pela UNESCO, nas quais a concepção de biblioteca pública associa-se ao princípio democrático de acesso aos bens culturais e ao exercício de educação permanente da população, conforme destacamos anteriormente.

Farias (2013) também destaca que esse documento preconiza que as ações de promoção da leitura dessas instituições devem ocupar o tempo dos usuários com atividades voltadas para o lazer e recreação. Nesse sentido, contesta: “a leitura pode ser um exercício de prazer e de fruição, mas é, antes de tudo, uma atividade que exige do sujeito o domínio de habilidades linguísticas, dedicação e tempo à sua realização...” (p.79). E sua análise ainda aponta que o projeto de biblioteca disseminado por esse órgão não tem a formação de leitores como uma das funções sociais dessa instituição.

Machado (2008) assinala que, algumas vezes, a atuação das bibliotecas públicas é criticada, pois reproduz os imperativos das classes dominantes, que entendemos relacionar-se à distribuição geográfica na cidade, à composição dos acervos, à atuação dos profissionais, à gestão, entre outros aspectos. Historicamente nota-se que a trajetória dessas instituições é ambígua, ora atuam como espaços de resistência, ora como espaços de manutenção do status

quo. No entanto, ainda assim, a autora considera que, no Brasil, a função social desses

espaços relaciona-se ao acesso à informação e à leitura, buscando exercer a atividade educativa e de formação, de forma a contribuir para a transformação social.

Pensamento que, de certa forma, é também compartilhado por Silveira e Reis (2011, p.38), os autores explicitam que as bibliotecas públicas são lugares de memória, pois fazem a “salvaguarda dos elementos materiais que informam nossa história individual ou coletiva”, porém forjados por forças contraditórias atuantes nas sociedades. Eles ainda as consideram como lugares de cultura, uma vez que promovem e disseminam a diversidade de bens

culturais, constituídos historicamente. Contudo, ressaltam que esse caráter de representação coletiva somente se concretiza por meio de ações de educação e leitura capazes de promover “o intercâmbio, o diálogo entre os inúmeros signos que compõem seus acervos, com os desejos, as ansiedades e as necessidades de cada um de seus usuários”.

Diante do reconhecimento do valor das bibliotecas públicas no Brasil, como destacam Silveira e Reis (2011) e Machado (2008) e, também, na formulação de políticas públicas, conforme deixa ver o PNLL, levanta-se a seguinte questão: como esse pensamento reverbera-se em ações concretas do poder público?

Em 2009, o Ministério da Cultura – MINC realizou o Censo de Bibliotecas. A partir desse recenseamento, constatou-se a deficiência de infraestrutura das bibliotecas quanto ao acesso à internet, acervos qualificados, bem como a escassa oferta de atividades de incentivo à leitura e a falta de profissionais qualificados (FREITAS E SILVA, 2014); (MACHADO, 2010, 2008), além disso, o estudo de Ribeiro (2013) aponta a irregular distribuição dessas instituições pelo Brasil e, ainda, a carência dos serviços de extensão. Segundo Freitas e Silva (2014), a exposição desse cenário gerou investimentos governamentais, porém, a situação brasileira no setor ainda é precária.

Como explicita Butlen (2012), se os países anglo-saxões e europeus estabeleceram metas para a melhoria de suas bibliotecas e a transformação em mediatecas, no Brasil, ainda buscamos: a ampliação do número dessas instituições; uma melhor distribuição regional; a manutenção mínima do acervo bibliográfico e a garantia orçamentária. É diante desse paradoxo, que confere às bibliotecas públicas o papel de instância de democratização da leitura e a situação precária dessas instituições em nosso país, que refletimos a seguir sobre a função social desses espaços de formar leitores.