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Breves Apontamentos sobre as Teorias do Currículo

4. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE CURRÍCULO

4.1 Breves Apontamentos sobre as Teorias do Currículo

A definição de currículo é uma tarefa dinâmica e inconclusa, porque o tempo histórico e os movimentos constantes que faz a sociedade lhe dão contornos provisórios. As teorias curriculares dão base à problematização do que se sugere, se incorpora, se retira ou se redefine em termos de conhecimentos e saberes destinados às instituições que educam.

Desde a tomada e aplicação da palavra currículo no âmbito educacional, usada por Franklin John Bobbitt, até os dias atuais, com as teorias pós-modernas, muitas foram as proposições e problematizações feitas sobre o conhecimento que não somente circula nos ambientes de ensino e de aprendizagem, mas também os que são forjados nesse mesmo ambiente. As teorias curriculares, algumas vezes, divergem, outras vezes, complementam perspectivas sobre o mundo e sobre como o ambiente da educação formal deve se ocupar das questões postas pela sociedade.

Os enfoques diferenciados dados a diversificados temas relacionados à educação permitiram separar em três categorias a teorização sobre o currículo: teorias tradicionais, teorias críticas e teorias pós-críticas.

A título de breve exposição, comentaremos sobre elas para situar a perspectiva teórica dos estudiosos que fundamentam este trabalho, que se vale tanto das contribuições das teorias críticas como das pós-críticas para problematizar o currículo.

No que tange ao campo teórico do currículo, Sacristán (2000) se constitui como nosso principal aporte teórico. Outros autores, como Silva (2011), Cunha (1996; 2005 e 2010), Veiga (2003), Moreira e Silva (2008), Fonseca (2008) e Tardif (2000), também nos ofereceram subsídios para a discussão do objeto de pesquisa deste estudo.

Ao acompanharmos o estudo de Silva (2011), pudemos vislumbrar as teorias que tiveram notável importância no campo do currículo. O pensamento pedagógico presente

nessas teorias reflete os interesses da época em que foram construídas. Evidentemente, o currículo, como instrumento pedagógico, já existia, antes mesmo de assim ser chamado. No entanto, a sua inserção em estudos especializados, isto é, o seu estudo como objeto de investigação é recente: data do início do século XX. No interior das chamadas teorias tradicionais, estão os modelos currículos construídos por Bobbitt e Dewey.

De acordo com Silva, nos Estados Unidos, nos anos 20 do século XX, num contexto de imigração e industrialização, o currículo aparece como objeto específico de estudo. Isso porque mão de obra qualificada era condição para o pleno desenvolvimento econômico do país e passam a ser as escolas o lugar dessa formação, que teria de ter um currículo que satisfizesse as demandas do mercado de trabalho. Dessa maneira, o currículo da época, de cunho tecnicista, voltava-se à educação das massas, e visava notadamente atender às demandas da economia. O trabalhador formado por meio do currículo tecnicista deveria sair da escola bem preparado para desempenhar as suas atividades profissionais.

Nesse contexto, Bobbitt construiu um modelo curricular, que foi inspirado nas ideias de Frederick Taylor, cuja finalidade foi racionalizar os resultados provenientes de toda uma organização escolar voltada à máxima eficiência na aprendizagem, porque se baseava na racionalização e controle da aprendizagem. Esse ideal de currículo conseguiu grande adesão durante o século XX. Na concepção de Bobbitt, o currículo era um instrumento burocrático, a partir do qual se estabeleciam as habilidades necessárias a cada profissão. A lógica de Bobbitt era dirigir o sistema educacional tal qual qualquer empresa. Ralph Tyler, em 1949, também fez parte desse paradigma em que se acredita que o currículo é uma questão de técnica.

A perspectiva de Bobbitt expande-se pelos EUA, mas encontra certa concorrência com as ideias de John Dewey, porém sem essas últimas terem tanta adesão em comparação com a primeira. Dewey não tinha por preocupação tanto a economia, mas, principalmente, a democracia. Almejava uma formação de crianças e jovens que propiciasse a experiência dos princípios democráticos.

Um ponto importante é que, a partir dos princípios das teorias tradicionais, o alcance dos objetivos deveria se materializar através do comportamento do aprendiz. Esses fundamentos teóricos mais tecnocráticos, como os de Bobbitt e Tyler, e os mais progressista, de Dewey, fazem parte das teorias tradicionais do currículo, assim chamadas por Silva (2011) porque não se ocuparam de questionar os arranjos educacionais existentes tampouco as formas dominantes de conhecimento.

As teorias críticas do currículo nascem num contexto de contestação. Os anos de 1960 foram marcados por uma profusão de movimentos de mudança do status quo: reivindicações de direitos civis nos EUA; movimento feminista; liberação sexual etc. Nesse contexto, surge uma gama de trabalhos que contrastam com as ideias tradicionalmente concebidas, inclusive no que diz respeito à educação. A partir da década de 1060, pois, as teorias críticas são elaboradas em diferentes países segundo suas influências contextuais, como nos EUA, na Inglaterra, no Brasil e na França, por exemplo. Muitos são os teóricos cujos estudos estão classificados como críticos, tais como: Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Henry Giroux, Michael Apple, Paulo Freire, Michael Young e Bernstein, por exemplo.

As desigualdades e injustiças sociais são questionadas pelas teorias críticas. Louis Althusser, por exemplo, inspirado no marxismo, fornece as bases para os críticos da educação. Pensou o autor na função ideológica da escola como instituição que garante que o status quo não seja contestado. A escola seria, portanto, um aparelho ideológico de estado, nela permanece parte significativa da sociedade por um período considerável de tempo.

Numa outra perspectiva, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron analisaram o funcionamento da escola e da cultura. Para esses teóricos, a cultura funciona da mesma forma que a economia e é daí que surge conceito de capital cultural. A cultura da classe dominante é aquela que goza de prestígio; seus gostos, seus hábitos, seus comportamentos são os legitimados no currículo. Dessa maneira, segundo o pensamento de Bourdieu e Passeron, existe o estranhamento ou o não reconhecimento das classes dominadas em relação ao que aprendem nos espaços educacionais – o que acarreta a exclusão dos grupos dominados – enquanto que a classe dominante reconhece seus hábitos, valores e crenças que não apenas estão presentes, como também são valorizados naqueles espaços.

Nos fins de 1960, em Nova York, como expressão contrária aos modelos tradicionais de currículo, houve também o chamado movimento de reconceitualização. Neste se questionava o caráter burocrático e administrativo que tinha o currículo em sua abordagem tradicional; tal movimento se dividiu em dois tipos de vertentes divergentes, a marxista e a fenomenológica. Esta última conferiu atenção aos significados subjetivos dados às experiências de aprendizagem pelas pessoas, enquanto que as análises marxistas demonstraram a função econômica e política da reprodução cultural e social operada por meio da educação e do currículo. São autores consagrados dessa perspectiva estrutural e marxista

Henry Giroux (1ª fase de seus estudos) e Michael Apple.

Apple questiona por que certos conhecimentos são considerados mais válidos que outros. Acredita que a classe dominante empreende grandes esforços no sentido convencer ideologicamente aqueles que estão sujeitos à sua subordinação. A escola produz o conhecimento técnico, que é o relevante para a economia e a produção. Conforme a análise de Apple, existe uma conexão entre a produção, a distribuição e o consumo dos recursos materiais e a produção, a distribuição e o consumo de recursos simbólicos, como são o conhecimento, a cultura e o currículo.

O caráter histórico, ético e político das ações humanas e do conhecimento. Para ele, ao não tratar desses aspectos, as teorias tradicionais contribuem para a permanência das desigualdades sociais foi reconhecido por Henry Giroux. No âmbito da educação, também acredita ele que há uma expressão de contraposição à dominação e ao controle: a subversão e a resistência estão presentes no processo educacional. Podem professores e alunos tornar-se conscientes do poder e do controle exercidos pelos grupos dominantes e a partir disso, emancipar-se.

Também situado nas teorias críticas, o pensamento de Paulo Freire tem repercussões no campo curricular. Porque modifica o entendimento do que é o processo de ensinar e aprender, a proposta freireana da educação problematizadora rechaça o ensino meramente transmissivo. Ao contrário do que se entende na visão tradicional, os atos de ensino e de aprendizagem acontecem conjuntamente.

A Nova Sociologia da Educação (NSE), que tem como líder Michael Young, teve influência nas discussões sobre o currículo. Aliás, na Inglaterra, é proveniente da Sociologia a crítica feita à educação e ao currículo em particular. Young entende o conhecimento e o conhecimento escolar como invenções sociais, que são disputadas nas relações entre os sujeitos. O estudioso também questiona a presença e a organização daquilo que compõe o currículo. Este faz parte de um jogo no qual o poder é disputado. Interessa, na abordagem de Young, compreender e discutir por que se atribui mais prestígio a certos conhecimentos e não a outros; quais relações existem entre a organização curricular e o poder; quais interesses estão representados nas organizações curriculares e de quem são tais interesses.

A partir da década de 1970, na Inglaterra, no âmbito da Sociologia Crítica, Basil Bernstein busca compreender como o currículo é ou está estruturalmente organizado e como a sua sistematização está relacionada com diferentes modos de poder e controle. Inspirado no

contexto dos anos 60, no qual se notabilizava o fracasso escolar de crianças e jovens oriundos das classes operárias, Bernstein desenvolve, por exemplo, os conceitos de currículo tipo coleção (no qual os campos do conhecimento se encontram isolados) e de currículo integrado (em que há interação entre as disciplinas); quanto mais isolamento houver em relação aos saberes, poderá se dizer que mais classificado ele está. Classificar é, em certa medida, definir o que compõe ou não o currículo, ação que envolve poder de decisão.

As teorias críticas do currículo procuraram demonstrar as relações de poder que se instalam no currículo. Denuncia-se a partir delas, principalmente, o caráter capitalista que se imprimiu ao currículo e as formas como este reproduz as estruturas de classe da sociedade capitalista. Por transmitir a ideologia dominante, podemos, a partir da abordagem crítica do currículo, entendê-lo como um território político (SILVA, 2011).

Antes de pontuar diferentes objetos de discussão das teorias pós-críticas, interessa notar que o movimento intelectual denominado pós-modernismo16 interferiu nas noções epistemológicas da modernidade e trouxe impactos para a problematização do currículo. O ideal iluminista de uma sociedade perfeita não foi alcançado e o seu legado, ao contrário, foi uma sociedade que aprecia o pensamento totalitário. Ademais, o sujeito não é livre nem autônomo, tampouco é guiado pela razão, como gostaria o pensamento moderno; que, baseado no positivismo, preconizava que o homem moderno poderia controlar a natureza e equacionar os problemas da sociedade por meio da ciência e da razão. As ideias de Freud e Lacan, bem como os contributos do pós-estruturalismo fundamentavam a concepção de que o sujeito não está no centro da ação social. Isto é, o exterior tem muito mais efeito nas ações do sujeito do que se pensava.

Dessa maneira, as ideias cultivadas e consagradas pela ciência foram colocadas em xeque, o que gerou impactos, obviamente, na maneira de se conceber o currículo, porque a própria ideia do que é a educação é pauta de discussão e de questionamentos. As ideias totalizantes sobre o conhecimento, a ciência e o saber não satisfazem ao pós-modernismo, porque as “grandes narrativas”, isto é, as teorias e explicações que buscam abranger os problemas presentes na sociedade são entendidas “como uma vontade de domínio e controle

16 Silva (2011) conceitua o pós-modernismo dessa maneira: “O chamado pós-modernismo é um movimento

intelectual que proclama que estamos vivendo uma nova época histórica, a Pós-Modernidade, radicalmente diferente da anterior, a Modernidade. O pós-modernismo não representa, entretanto, uma teoria coerente e unificada, mas um conjunto variado de perspectivas, abrangendo uma diversidade de campos intelectuais, políticos, estéticos, epistemológicos.” (p. 111).

dos modernos” (SILVA, 2011, p. 112).

A incerteza, a dúvida e a indeterminação não são encaradas como problemas para o pós-modernismo; no lugar da fragmentação, do isolamento e das fronteiras entre as artes, os estilos de vida e o conhecimento, estima-se a mistura entre as áreas. Nesse sentido, o currículo moderno, seccionado e disciplinar, não é compatível com o pensamento pós-moderno. Inclusive, a própria teorização crítica do currículo é questionada pelos pós-modernos, uma vez que se baseia e se estrutura num ideal moderno: fundamenta-se num universalismo, a ideia de que o sujeito pode se libertar de sua condição de dominação a partir de um currículo crítico, por exemplo.

Como as teorias críticas do currículo, as pós-críticas também se interessam pelas relações de poder que subjazem ao currículo. Contudo, retiram a ênfase das questões econômico-sociais para investigar e problematizar outras relações que anteriormente não foram objeto de análise das teorias críticas. Nas teorias pós-críticas, há uma ampliação de temas: raça, etnia, gênero e sexualidade são exemplos de elementos discutidos. Nas teorias pós-críticas, o poder não é centrado na figura do Estado, por exemplo, mas está difundido na rede social; além disso, essas teorias põem em suspeita a ideia de liberdade, da libertação do poder.

Como uma expressão das teorias pós-críticas, temos o multiculturalismo, movimento amplo, que tem perspectivas diferenciadas: a visão humanista e perspectiva crítica demonstram facetas diferentes desse movimento. Partindo do pressuposto de que todas as culturas são equivalentes antropológica e epistemologicamente, a visão humanista do multiculturalismo prega que deve haver a aceitação e o respeito ao diferente, visto que, em que pese as particularidades de cada expressão culturas, todas elas expressam o humano.

Já a perspectiva crítica do multiculturalismo se contrapõe à ideia de tolerância e respeito às diferentes culturas, porque entende que subjaz à ideia de respeito uma ideia essencialista da cultura, como se estas fossem fixas e pré-estabelecidas de modo que restaria apenas respeitá-las (SILVA, 2011). Na tolerância estaria implícita uma ideia de uma autorização/generosidade por parte do grupo dominante em relação às minorias.

As relações de gênero, de raça, de nações também são matérias de análise por outras linhas de investigação pós-críticas. A pedagogia feminista, por exemplo, inicia seus estudos com a preocupação em relação ao acesso da mulher à escolarização. Posteriormente, passou- se a discutir e a analisar também a divisão do currículo por gênero, o qual é parâmetro para a

definição de disciplinas destinadas ao homem e à mulher. Aliás, essa divisão também reflete e retroalimenta a própria conjuntura do mercado de trabalho, que ainda trata de modo diferenciado as pessoas em virtude do gênero. A análise feminista, pois, questiona a aparente neutralidade que há no currículo: o currículo é masculino, porque orientado pelos interesses masculinos. Como explica Silva (2011), “a epistemologia não é neutra, mas reflete sempre a experiência de quem conhece” (p. 94). Portanto, não há neutralidade no currículo. A pedagogia feminista ainda que não tenha tido grande penetração nos currículos oficiais, enriquece o debate sobre a educação porque lança luz sobre a conexão existente entre as relações de gênero, o poder e o currículo.

Os estudos sobre identidade feitos pela pedagogia feminista influenciaram pesquisas e estudos sobre a homossexualidade. Nos EUA e na Inglaterra, por exemplo, o movimento queer reúne estudos gays e lésbicos. A teoria queer questiona a identidade sexual considerada normal e, por extensão, problematiza o “desvio”, como é considerada a homossexualidade. Além da sexualidade, a pedagogia queer põe em questão o que se entende como correto e incorreto, moral e imoral, conforme as instituições e os discursos que os produzem..

Ainda outros temas se apresentam no interior das teorias pós-críticas, como o legado da colonização em muitos países europeus, o qual é tratado pela teoria pós-colonialista. Esta recorre aos episódios históricos para desdobrar considerações não somente sobre as relações de ocupação e dominação de áreas como a África, as Américas e a Índia, mas também sobre a exploração econômica e o imperialismo cultural. Seus estudos se remetem, por exemplo, à análise de textos literários canônicos, que disseminam ideias dos grupos dominantes, já que as obras clássicas são aquelas que os grupos dominantes produziram e que, portanto, dizem uma versão, tida como única e verdadeira, sobre os fatos, sobre a terra, sobre o outro, enfim. Levando em consideração os processos de dominação e resistência cultural, em que cultura dominante e dominada são mutuamente modificadas, a partir de uma abordagem pós- colonialista, importaria investigar e problematizar o modo como a cultura dominante e o discurso produzido por ela se apresentam no currículo oficial.

As teorias pós-críticas entendem o poder como relacional e o currículo como criação. No tocante ao currículo, as relações sociais são ampliadas, envolvendo outros temas que não aqueles ligados aos interesses da economia e do capitalismo na educação, como pudemos ver. A partir delas se entende ainda que a subjetividade é social e não há nenhum processo de libertação que torne o homem efetivamente livre. Há desconfiança sobre as ideias

totalizadoras e abrangentes, que dariam respostas aos complexos problemas da sociedade. Uma vez compreendidos os diferentes enfoques que as teorias do currículo dão a esse objeto, escolhemos trabalhar, entre outros autores, com Sacristán (2000), o qual, em sua obra Currículo: uma reflexão sobre a prática, dialoga principalmente com estudiosos da teoria crítica do currículo, como Bernstein, Young e Apple. Valemo-nos do referido trabalho porque nele o autor se ocupa das condições de produção do currículo enquanto construto cultural, levando em consideração as suas diferentes fases. Entendemos, assim, que esse enfoque teórico oferece contribuições para a problematização do processo de reformulação curricular.

Destacamos que muitas das considerações feitas pelo autor, na obra citada se direcionam ao sistema escolar obrigatório da Espanha, porém, outras, igualmente significativas, abrangem outros níveis de ensino e são pertinentes para outros contextos educacionais. Neste estudo, buscaremos tratar, sobretudo, das contribuições que o autor trouxe ao debate sobre as práticas curriculares, as quais nos ajudam a pensar mais de perto o contexto do ensino superior.

Na seção seguinte, tratamos das considerações feitas por Sacristán e outros autores como, Cunha (1996; 2005 e 2010), Veiga (2003), Moreira e Silva (2008), Fonseca (2008) e Tardif (2000).