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3 CONHECENDO “O CAMINHO”: HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DO

3.1 BREVES GLOSSÁRIOS DO CAMINHO DA GRAÇA

Há um linguajar comum entre os integrantes do Caminho da Graça, que aponta para uma possível identidade coletiva. Apresentam-se aqui algumas dessas expressões, as quais certamente estão largamente presentes ao longo desse texto, e que podem contribuir para que leitoras e leitores a se situem. Alguns destes termos vieram sendo observados a partir do longo convívio que foi sendo estabelecido ainda no primeiro semestre de 2010, quando eu era apenas um frequentador, sem qualquer noção que um dia tal conhecimento faria parte desta etnografia.

• Caminhantes: a forma como muitos integrantes do Caminho da Graça refere-se uns aos outros.

• Estações: nome dado a cada grupo local que compõem a vasta rede de grupos do Caminho no Brasil e em outros países. O termo – tal como a noção de “movimento”, tem o intuito de ressaltar o caráter transitório, e não de permanência obrigatória, das pessoas que frequentam, ou venham frequentar, as reuniões locais do CG.

• Mana/Mano: maneira comum como os “caminhantes” se chamam entre si.

• Mentora/Mentor: nome dado a à pessoa responsável por liderar e agregar outros “caminhantes”.

• Metanóia: mudança da mente a partir da descoberta – e conversão – ao “verdadeiro Evangelho”.

• Movimento: fui corrigido por diversos membros do Caminho da Graça ao defini-lo como um grupo. “Preferimos chamar de Movimento e não de grupo, pois dessa forma a gente fala de algo não estático, mas que está sempre em transição, muito menos algo fechado, como a uma panelinha dos ‘escolhidos’, como acontece nas igrejas evangélicas”. • O Reino: maneira pela qual as “manas” e “manos” costumam se referir

ao paraíso (céu), que segundo seus princípios começa a ser vivido, ainda que não plenamente no presente, mas que será vivenciado de maneira integral após a segunda vinda de Jesus Cristo, algo em que acreditam piamente.

• Religião: na mesma perspectiva do “religioso”, trata-se de um termo que remete a um sistema que aprisiona o ser-humano, a ponto de “emburrecê-lo e suspender os processos lógicos mais simples”22.

• Religioso: é aquele que não adquiriu o conhecimento “real” do Evangelho, e que, segundo tal compreensão, se mantém preso as amarras daquilo que Jesus Cristo teria combatido em sua trajetória pela terra.

• Supervisora/supervisor: pessoa responsável por auxiliar aos mentores em determinada região do país.

22 FÁBIO, Caio. A religião emburrece, suspende os processos lógicos e faz você sentir em pecado, se pensar!. Vídeo na plataforma Youtube. 6’10”. Publicado em: 4 jun 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BfQOzaHfDLE Acesso em 26 set 2017.

Além dos termos acima – aprendidos e apreendidos a partir da observação participante – há ainda outro pequeno glossário apresentado pela liderança maior do CG – Caio Fabio D’Araújo Filho – em um de seus vários livros “Sem barganha com Deus23. Tanto o livro, assim como as expressões elencadas pelo autor, permeia o

cotidiano dos encontros, sejam locais, regionais ou nacionais do Caminho da Graça, e servem, em certa medida, de princípios norteadores do próprio movimento:

• Igreja com I maiúsculo corresponde ao que Jesus e o Novo Testamento definem como Igreja; ou seja: o encontro com Deus e uns com os outros em torno do Nome de Jesus e em acordo de fé com o Evangelho—o que faz de todo Encontro Humano, em fé, um encontro-igreja, onde Jesus promete estar presente, mesmo que sejam apenas dois ou três re-unidos em Seu Nome! E só se re- unem em Seu Nome por se saberem a Ele unidos!

• Igreja “entre aspas” são as representações histórico-institucionais do fenômeno histórico, social, econômico, político e culturalmente auto-definido como “igreja”, e que tem uma hierarquia (Clero), sigla (Denominação), geografia-fixa (Prédio) e membros-sócios! Ou seja: Igreja a gente encontra no caminho. “Igreja” a gente vai ao encontro dela ou a gente a identifica pela Placa ou pela Propaganda!

• Cristianismo é a expressão histórica da Religião que confessa a Jesus como Filho de Deus, mas cujo processo de institucionalização trabalha com mais frequência contra os Interesses do Reino de Deus que no sentido indicado pelo Evangelho.

• Catolicismo é um derivado do Cristianismo que se vê como o “Reino Estatal de Deus na Terra” — tudo entre aspas.

• Protestantismo é o movimento histórico-cristão que quase conseguiu..., mas perdeu o pro-testo, que é sempre algo pró-teste! Assim, virou apenas uma ReForma! Só há pro-testo se o caminho for sempre pró-teste, em fé, e tangido pelo Vento do Espírito, conforme a Palavra!

• Evangélico é o ente que crê no Evangelho e que crê na salvação em Jesus, conforme a Graça revelada em Cristo. Por exemplo: o apóstolo Paulo era um genuíno Evangélico!

• Evangélico, “entre aspas”, é o ente indefinível, que se utiliza da fé em Jesus através da mediação da “Igreja Evangélica”, que é a autodefinição coletiva dos cristãos que nem sempre confiam ou gostam uns dos outros, mas que só se enxergam coletivamente sob esse Guarda-Chuva, furado de baixo para cima pelas pontas afiadas dos guarda-chuvas menores que cada um usa para garantir sua própria proteção enquanto aniquila o que confessa como devoção: o Evangelho!

• Cristão, historicamente, é um ser no Limbo, vivendo entre a Lei e a Graça, sofrendo entre o medo de Deus e o amor irresistível que

23 D’ARAÚJO FILHO, Caio Fabio. Sem barganhas com Deus – edição completa. Fonte Editorial, São Paulo - SP, 2005. 284fls. Disponível em: https://www.caiofabio.net/download/barganhas.pdf Acesso em 26 set 2017

por Ele sente. Por esta razão prova a devoção como angústia, desespero, culpa, neurose e paranoia.

• Discípulo de Jesus é o ser que apesar de se reconhecer relativo, se sabe — pela fé na Graça de Deus que gera o dom da fé — como alguém que é irreversivelmente de Jesus e que aprendeu que o Caminho acontece na companhia de irmãos que sempre sujam os pés na jornada — por isto lavam os pés uns dos outros em nudez —, mas que creem que quem já está limpo pela Palavra de Cristo não necessita lavar senão somente os pés.

• Liberdade é a capacitação na Graça e na Verdade de poder escolher-se deixar-levar pelo Espírito, que realiza o Bem de Deus no ser humano, conduzindo-o no Caminho Estreito que acontece, em fé, entre a Lei e a Libertinagem, na vereda do amor.

• Pecado é ...sou. Cada um deveria saber o que é! Cada um sabe, especialmente se não for instruído moralmente a respeito! Pois, assim, saberá o que o pecado é, e não se neurotizará com o que dizem pecado ser!

• Graça é ... toda-tudo-toda manifestação do amor criador-redentor de Deus— e que se expressou supremamente no Escândalo da Cruz—, que sempre é favor imerecido, incluindo a criação do ser, mesmo que seja um ser assim como sou! Pois, sou-serei-sendo- já-sou, Nele! (D’ARAÚJO FILHO, 2005, pp. 7-8)

Certamente nenhum dos dois pequenos glossários apresentados acima têm o poder apresentar um quadro completo sobre um movimento religioso fundado há aproximadamente 14 anos, que se espalhou pela maior parte das capitais brasileiras, contando com “estações” fora do país e que está bastante ligado ao segmento evangélico, mesmo negando que dele faça parte. O intuito aqui é, num só tempo, apresentar algumas dessas expressões e conceitos presentes no dia-a-dia deste movimento, como também possibilitar aos leitores uma compreensão dos usos específicos dessas categorias por seus integrantes, já que são palavras de uso comum em universo social mais amplo. Neste sentido é sempre interessante observar como frases, conceitos e palavras ganham novas acepções a partir dos usos em determinado contexto, concordando assim com o que Roy Wagner [1975(2010), pp. 175-176] vai chamar a atenção acerca da linguagem:

Quando uma determinada palavra, expressão ou elemento gramatical ocorrem com frequência em um contexto em detrimento de outros, adquire as associações peculiares daquele contexto, a ponto de perder seu status convencional. Podemos dizer que os elementos linguísticos gerais se tornam dessa maneira “especializados” – eles são “selecionados”, consciente ou inconscientemente, para ser usados em certos contextos, de modo que a maior parte de suas associações dotadas de significado acaba por vir desses contextos. Por vezes essa seleção constitui uma tendência geral entre os falantes de uma língua, e então de palavras, formas gramaticais ou retóricas

sofrem uma mudança no que se referem a à sua afirmação linguística global. Em outros casos a seleção corresponde a preferências de um certo contexto social, educacional ou ocupacional particular, ou de alguma classe ou grupo regional, resultando na diferenciação da própria linguagem em “estilos” e dialetos particulares.

Todo esse processo, continua a explicar o antropólogo, terá como consequência uma operacionalização específica da linguagem que diferenciará os grupos entre si. Dessa forma, pode-se considerar que os tais glossários acima apresentados remetem também a assumir um lugar em determinado campo, no qual através também da linguagem é possível marcar e disputar posições.

A apresentação dos referidos glossários tem como intuito apresentar não apenas um possível dialeto construído no seio do movimento, tampouco se trata apenas de oferecer um guia aos leitores – objetivo também já apontado aqui. Trata- se de apresentar como o emprego desses termos propõe se não uma originalidade, ao menos certa distinção, por meio deste emaranhado de informações que parecem gerar determinada sensação de purificação do Caminho da Graça, em relação a outros grupos. Isso se faz ao engajar-se em um linguajar próprio, entre a popularização e a sacralização do próprio movimento.

No entanto, é possível questionar o quão “popular” o movimento consegue ser, tanto ao observarmos seu público, inicialmente apresentado pelos “caminhantes” como muito diversos, como a linguagem predominantemente utilizada por suas lideranças. Também é possível observar uma hegemonia de classe, étnico-racial e de gênero, algo que se tornou perceptível durante todo o processo de observação participante, o que foi sendo confirmado, em certa medida, ao longo das conversas com interlocutoras e interlocutores.