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3 CONHECENDO “O CAMINHO”: HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DO

3.7 A FÁBRICA DE ESPERANÇA

O tema ajuda humanitária será abordado de maneira mais detalhada nos dois capítulos que se seguirão, no entanto, torna-se necessário também falar sobre outra instituição que, segundo muitos interlocutores, de inspiração para que os então chamados “braços sociais” fossem formados: a Fábrica de Esperança. Tratou-se de uma Organização Não-Governamental, localizada no bairro de Acari no Rio de Janeiro, fundada em 1994 e encerrada em 1998. O estabelecimento ocupava uma área de 55 mil metros quadrados, se distribuindo por vários andares. O estabelecimento foi idealizado e presidido por Caio Fábio, na época também presidente da “Vinde”, uma revista de cunho evangélico largamente conhecida nacionalmente. Rapidamente este espaço ganhou visibilidade e notoriedade, tanto por parte de políticos cariocas e de envergadura nacional quanto de empresários que se dispuseram a estabelecer parcerias.

Em meados de 2015, quando perguntado por um espectador de seu programa diário sobre como se posicionar socialmente sem cair em “ideologias” – termo largamente difundido por ele e seus seguidores – ele responde:

O exemplo que eu sempre dou é o da Fábrica de Esperança. Nós não chegamos nas favelas de Acari e adjacências com força policial. A força policial tava lá a anos e só piorava. Nós chegamos foi com 66 projetos sociais simultâneos, que atendiam 24 mil pessoas, com um pequeno Estado montado lá dentro, uma pequena prefeitura, e todos os serviços médicos, sociais possíveis. Cursos técnicos, treinamento, esporte, creche, psicossocial, visitas de casa em casa; psicólogos atendendo a garotada, os pais, as mães. 300 mil pessoas a volta sendo atendidas. Depois de cinco anos a violência tinha caído pra 5% do que era, e o tráfico de drogas tinha quase acabado na

região. Ficou reduzido a nada! A 5% do que costumava ser. Isso só prova o que ele está dizendo: Na falta de um Estado, pra provar que o problema era o Estado, nós fizemos da Fábrica de Esperança um modelinho do Estado naquela comunidade de 300 mil pessoas. E cinco anos depois, aquela região que era o paiol de armas que servia, naquele tempo, ao Comando Vermelho e Terceiro Comando, porque os outros ainda estavam começando, os demais comandos da cidade... O paiol que servia ali, que não tava vinculado a ninguém pra ser distribuidor de armas, além de drogas, acabou. Ele (o tráfico) ficou bem reduzido. O Governo disse, isso foi estatística governamental... Depois da Fábrica de Esperança... Enquanto a Fábrica tava presente, ficou reduzido a 5% do que costumava ser antes. (Caio Fábio D’Araújo Filho, 22/10/2015)52

Caio Fábio ainda continua falando sobre sua discordância em relação à ocupação maciça das favelas pela força policial, ressaltando, como pode ser observado acima, tanto o trabalho desenvolvido pela Fábrica de Esperança, como também por conhecer “de dentro” como funcionam as organizações policiais e a lógica do Governo estadual. Ele explica que fez parte de uma equipe, em parceria com a corregedoria da PM – uma espécie de força tarefa – que responderia direto ao governador do estado do Rio. Ele afirma:

Eu trabalhei dentro da Polícia. Eu fui designado pelo governo do estado do Rio de Janeiro pra fazer parte de grupos que faziam um trabalho junto à Corregedoria de Polícia, mas era um conselho que funcionava de superior a Corregedoria, vinculada direto ao governador do estado, que naquele tempo era o Nilo Batista. Eu sei, eles me deram acesso a tudo! Eu sei como isso funciona. Eu tinha amigos lá dentro, coronéis da PM, gente boa. Naquele tempo a PM tinha 25% de evangélicos dentro da PM, no Rio de Janeiro. Hoje o número deve ser muito maior, mas você vê que não basta aquele simplismo de dizer: “Não, nós precisamos de muitas pessoas cristãs aqui dentro pra melhorar a PM.”. Aí botam uns cristãos lá dentro que não conhecem o Evangelho, que vêm dessas igrejas que a gente mostra aqui todo dia. O cara de Jesus só sabe o nome. Coitado, ele chega lá, depois de uns meses, um ano ou dois... Se ele não tiver muita consistência, ele acaba entrando num programa de existência que não era o dele; que nunca foi o sonho dele; que nem ele, e vai se prejudicando, porque faltam todos esses elementos. Desde aqueles de investimento direto na Polícia, como aqueles que têm a ver com o aparato na sociedade contingencial imediata ali, que é o que faz o trabalho da Polícia ali, se tornar mais viável e mais possível!

52 Caio fala sobre os resultados da Fábrica de Esperança. Ação Social cooperando com segurança pública. Vídeo publicado na plataforma Youtube, no canal Caio Fábio. 5’16”. Publicado em 23 out 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=117&v=nRBzaiqtcDE. Acesso em: 26 fev. 2018

As falas acima – retiradas de um dos vários vídeos onde Caio Fábio fala da Fábrica de Esperança (FE) – fazem coro com outros materiais por ele produzidos, como o livro “Confissões de um pastor”, publicado em 1997, em especial no que diz respeito às críticas ao Estado-Nação brasileiro, e a situação específica naquele momento do governo do estado do Rio de Janeiro. Observa-se a construção de uma oposição entre FE e Estado, estando esta última como modelo que deu certo enquanto o segundo o exemplo da falência. Ao buscar analisar esse material encontrado na internet é possível se deparar também com um documentário intitulado “Documentário Fábrica de Esperança”, cujo subtítulo atual é: “conspiração contra Caio Fábio nos anos 90” O discurso de Caio Fábio, e todo o conteúdo do referido documentário, aponta para uma prática liberal – e neoliberal – comum à própria história da filantropia e que vai servir de base para sua versão moderna: a ajuda humanitária. Como se tornou evidente, ainda que contasse com o apoio do Governo do Rio de Janeiro, a FE recebeu apoio da iniciativa privada, o qual foi sendo retirado quando entre 1995 e 1996, quando a Polícia Militar encontrou alguns quilos de cocaína nas dependências da FE. Naquele momento o então governador do estado acusou seus dirigentes de conivência com o narcotráfico.

Em 1998 Caio Fábio foi acusado como idealizador do conhecido “Dossiê Cayman” – uma série de documentos, posteriormente apontados como falsos – que incriminavam diferentes políticos do PSDB, incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O próprio FHC afirmou não acreditar no envolvimento de Caio Fábio, sendo este último posteriormente inocentado. Nesse período se deu a decadência da FE e dois anos após seu prédio foi implodido. Ao contrário do quadro inicial, onde havia uma diversidade de projetos funcionando, atendendo a determinadas demandas da população circunvizinha, antes de seu fim definitivo, só havia um projeto funcionando: uma creche com 200 crianças que foi transferida para um prédio nas redondezas. A implosão do prédio teve como propósito divulgado a construção de um hospital.

Infelizmente nem todo mundo tem boa memória. Olha só, lembra da Fábrica de Esperança que eu criei, comecei em 1993? Isso é a Fábrica de Esperança. É minha gente, para mim é uma memória de uma dor enorme. Eu dei um pedaço expressivo da minha alma à Fábrica de Esperança. Essas imagens foram muito rápidas. Se o Gabriel puder recuperar, devagar: primeiro aquele prédio central. Quando eu ganhei ele tava todo destruído. Esse prédio tinha 7, 8 mil metros quadrados de área. Era aí que ficava a Vinde TV, por exemplo. Meu escritório era

ali em cima naquele último andar. Nesse período já não era mais a fábrica. Foi quando ela foi desapropriada para essa explosão. De modo que antes, no tempo que era fábrica, você tinha escrito ali em aço “Fábrica de Esperança”, e você tinha ali em cima umas antenas parabólicas enormes pra receber sinal, mandar sinal. Naquele tempo tudo era grande, e aí dentro eram os escritórios que faziam gestão do que acontecia nos galpões. Se o Gabriel puder dar uma frisada depois nos galpões aí na frente (do vídeo). (...) Não dá pra ver os galpões todos, dá pra ver a metade: o prédio central e os galpões. Dá pra ver os primeiros. Esses aqui do lado de cá eram creches para mil crianças. Aqui do outro lado era a Xerox (empresa) com o trabalho dela com máquinas e ensino técnico pra jovens, de emprego pra jovens. Isso era um terço da área: 45 mil metros quadrados de telhado, de área coberta. Até hoje ainda têm projetos que eu comecei nessa época e que entreguei a gestão (Governo do Rio) para que outros grupos cuidassem (Caio Fábio, 08/06/2018)53.

Trazer à tona, ainda que de maneira bastante reduzida, a história da Fábrica de Esperança, tem aqui o principal propósito destacar um continuum presente entre o passado mais distante, referente a este primeiro momento, e aquele do qual se detém mais centralmente esta pesquisa, a criação dos “braços sociais” do Caminho da Graça e sua posterior extinção. Se o que se apresenta na história ligada à Fábrica de Esperança indica que sua extinção se deu contra a vontade de seu presidente e fundador, o mesmo não pode ser dito quando se observa sua postura no que diz respeito a decisão de dar fim as duas agências humanitárias ligadas ao Caminho da Graça, as já anunciadas Caminho Nações e SOS Religar. No entanto, ao observarmos as diferentes falas acerca destes “fins” é possível observar lamentos que apontam para um discurso salvacionista por parte da ambas as iniciativas que com as finalizações destas é deixado algum hiato, uma situação que aponta para uma desesperança causada por aquela situação. Situação esta que reforça o lugar hierárquico dos filantropos, ou, como se trabalha prioritariamente nesta pesquisa, os agentes humanitários.

Neste sentido, apresento no próximo capítulo de maneira mais detalhada os emaranhados e teias que foram se formando ao longo de um trabalho de campo multissituado, e que se espalha entre localidades “reais” onde se desenvolveu, em especial, uma observação participante – como Dakar e Tuparetama – ou em outras localidades onde não se pôde ter o mesmo tipo de acompanhamento, porém ganham relevância a partir do desenrolar das surpresas trazidas pela pesquisa, Akwa-Ibon, no

53 Memórias da Graça – Fábrica da Esperança. Vídeo com excerto do Programa Papo da Graça – Caio Fábio. Publicado na plataforma Youtube, no canal Caio Fábio. 4’24”. Publicado em 08 jun. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=39d3tQyaL8E. Acesso em: 18 out. 2018

sudoeste nigeriano, e em Jardim Gramacho, baixada fluminense (RJ) – dentro do aterro sanitário atualmente desativado que leva o mesmo nome do referido município.

4 SOBRE A CONSTRUÇÃO DE CORPOS-NÃO-MODERNOS: MODERNIDADE,