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3 CONHECENDO “O CAMINHO”: HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DO

3.5 ESTAÇÕES DO CAMINHO DA GRAÇA

3.5.3 Estação Recife/Cordeiro

O retorno a Natal durou poucos meses, tendo em vista que logo me mudei para Maceió, o que gerou certo distanciamento de uma relação cotidiana com Estações do Caminho da Graça, tendo em vista que mesmo atualmente a capital alagoana é uma das poucas que não possui uma Estação. A reaproximação com o Caminho da Graça se deu já no final de 2013 e, sobretudo, nos primeiros meses de 2014, quando o projeto de doutorado já havia sido elaborado, o que não teria acontecido – ao menos

não na rapidez com a qual se deu – sem que uma rede de “caminhantes” tivesse se mobilizado para que isso acontecesse. Dentre estes destaco três pessoas: Carlos Bregantim; João David e Marcelo Quintela. Estes dois últimos atuaram como agentes humanitários em Tuparetama e em Dakar, respectivamente. O primeiro contato com a Estação Recife se deu inicialmente a partir da primeira incursão a campo após a entrada no doutorado, quando tive a chance de acompanhar a primeira – e única – grande ação chamada de MUTIRÃO SOS SAÚDE NO SERTÃO.

No dia 01 de abril, antes de ser deixado no aeroporto para viajar para Tuparetama junto com a equipe de cinco dentistas, quatro médicos e uma enfermeira, passamos pelo apartamento de Gláucia Santana, localizado no Bairro do Cordeiro no subúrbio de Recife. Em sua casa fui apresentado a Ivo Fernandes, mentor da Estação Fortaleza e, naquele momento, um dos supervisores da região Nordeste. Naquela ocasião não chegamos a conversar e só após alguns meses desta primeira incursão ao Pajeú, é que a veria novamente em seu aniversário, em Camocim, em uma espaçosa casa de campo. Ali ficaria marcada uma das principais características da Estação Recife/Cordeiro: as festas. Tal característica dizia respeito diretamente à própria personalidade de Glaucia, sempre muito simpática e acolhedora com aquelas e aqueles que faziam parte da Estação. Sua festa de aniversário foi uma reunião que durou todo o fim de semana. Ali encontrei um ambiente familiar aquele que vivenciara na Estação Natal, muita música, comida e bebida alcoólica.

A casa em questão ficava afastada da pista, sendo necessário entrar por uma trilha de terra que levava até uma área mais alta, de frente para um pequeno e belo lago que chamava a atenção por um azul claro de um brilho intenso. Definitivamente não era um lugar que se podia chegar facilmente se não fosse de automóvel. A maioria das pessoas que ali estavam haviam chegado em seu próprio veículo. Porém, compreendendo-se a dificuldade de acesso, organizou-se também uma dinâmica de caronas para que qualquer pessoa convidada que quisesse lá estar não fosse impedida. Tinha acertado de fazer essa viagem com Augusto Pergentino, um importante interlocutor, e hoje um querido amigo, mas como este teve de ir antes para ajudar com os preparativos, fiz a viagem com Cláudio Aleluia, outro membro assíduo da Estação. O público da festa não diferia do encontrado nas Estações que havia conhecido e em outras circunstâncias envolvendo o Caminho da Graça: havia uma predominância de pessoas brancas, as quais demonstravam pertencerem a este

grande “guarda-chuva social” chamado de classe-média e da classe média-alta; a maioria com mais de 30 anos e muitos homens.

Talvez por ser uma das três mulheres exercendo a mentoria o contraste entre mulheres e homens ali, e sobretudo nas reuniões se tornou evidente, até mesmo contrastante com o que se pôde observar na Estação Natal, e, ainda mais nos encontros regionais e nacionais. Em 2014, minha frequência nas reuniões da Estação Recife/Cordeiro se deu apenas nas quintas-feiras, tendo em vista que nos fins de semana costumava permanecer em Maceió. Glaucia realizava duas reuniões semanais com os “caminhantes”: uma de estudo bíblico, que em 2015 se tornou uma reunião para estudar livros do Caio Fabio – um direcionamento que foi dado a todas as Estações do movimento – e aos domingos, onde havia uma dinâmica semelhante àquela da Estação Natal. Outra característica bastante marcante do Caminho da Graça, que se repetia na Estação Recife, é que muitos dos caminhantes são divorciados, ou se casaram pela segunda vez.

Ainda sobre a intersecção raça, gênero e classe, tive a oportunidade de conversar com Glaucia enquanto tomávamos um café no Shopping Tacaruna, localizado nos limites entre as cidades de Recife e Olinda. Fiz a ela a mesma observação que fiz em conversas com outros “caminhantes” após ela diferenciar o Caminho da Graça de segmentos evangélicos por apresentar uma enorme diversidade de pessoas, “dos mais variados tipos. Perguntei-lhe se o Caminho da Graça era tão diverso assim, já que me parecia haver determinado perfil entre seus membros sobretudo a partir de um recorte de classe e de raça que percebia. Por alguns instantes ela ficou parada, refletindo como quem faz algumas conexões e balançou a cabeça de forma concordante:

“Olha, eu nunca tinha pensado a respeito disso, mas agora que você me cutucou... É, você tem razão, mas qual seria a razão pra isso? Estou aqui matutando! Bom, tenha a ver com o próprio tipo de mensagem do Caio Fabio, que por melhor que seja não era acessível a todas as pessoas devido à sua sofisticação”. Gláucia foi uma das primeiras pessoas que, durante o trabalho de campo, definiu Caio Fábio, dentre outras características, como um profeta da contemporaneidade, tal como os profetas que permeiam as histórias do Velho Testamento bíblico. Sua fala se deu durante uma das reuniões ocorridas em sua casa. Tal compreensão seria repetida por ela inúmeras outras vezes. Ela havia entrado em contato com seus ensinamentos ainda quando fazia parte da Igreja Episcopal Anglicana de Recife, e desde 2006, tal como Carlos

Bregantim, fazia parte da Estação Recife, a qual passou a mentoriar há aproximadamente seis anos, quando passou a dividir-se entre secretária executiva da CHESF e mentora do Caminho.

Durante os anos de 2014 e 2015, apesar da maioria feminina que frequentava as reuniões, Glaucia enfrentou, ainda que de maneira velada, alguns momentos de perseguição por parte de homens que não conseguiam lidar bem com o fato de, terem sido pastores em suas antigas denominações evangélicas, serem agora liderados por uma mulher. Isto se deu, sobretudo, e de forma mais acintosa, como ela mesma confessara em alguns momentos, a partir de um “ex-pastor” batista que frequentava as reuniões junto com sua família, a esposa e um casal de filhos. Suas posições teológicas e interpretações bíblicas destoavam bastante daquelas defendidas por Glaucia, muitas das quais eram legitimadas pelos posicionamentos de Caio Fabio. Uma das situações em que esse embate gerou maiores problemas foi quando ele quis interferir em um grupo de “caminhantes” que se reunia na beira mar de Olinda, liderados – ainda que não oficialmente – por uma mulher assumidamente lésbica. Sua intromissão em prol de “ajudar” com as reuniões findou por espantar as pessoas envolvidas, tornando necessário que Ivo Fernandes, então supervisor, viesse intervir. Além das reuniões ocorridas no meio da semana e aos domingos, a Estação Recife, sempre muito festiva, realizava várias outras confraternizações tanto em datas comemorativas como dia das mães; páscoa; São João – onde além das comidas típicas desse período, costuma-se contratar um trio de forró pé de serra – e uma reunião de fim de ano onde é realizado o “tradicional sarau” da Estação Recife/Cordeiro. Foi também desta Estação que saíram boa parte das pessoas que – juntamente com alguns membros da Estação Natal e outros poucos de outras localidades – atuaram como agentes humanitários no SOS Religar entre 2013 e 2016, e, mesmo após a extinção dos “braços sociais” do CG alguns continuaram a desenvolver suas ações sociais no Sertão do Pajeú, em Tuparetama e sítios circunvizinhos.

Nessa subseção buscou-se apresentar algumas características que podem ser chamadas de específicas de cada uma das estações apresentadas, mas também algumas das características que podem ser chamadas de gerais acerca deste movimento iniciado ainda em 2005. Se é possível apontar que há, entre seus membros, algumas características comuns que apontam para um recorte interseccional de raça, classe e gênero, sobretudo ao olharmos para a liderança;

também é possível perceber uma hegemonia no que diz respeito ao capital cultural de seus integrantes, e que isso explica a relação que estabelecem com o próprio Caio Fábio D’Araújo Filho. Tal como ele, há entre seus seguidores uma grande parcela que advém das chamadas “igrejas tradicionais”, como aquela onde ele esteve como pastor por décadas, a Igreja Presbiteriana do Brasil. Há ainda outras identificações, ou analogias, possíveis de serem feitas entre o fundador do CG e muitos dos Caminhantes: o fato de muitos serem divorciados e/ou casados pela segunda vez; apreciarem bebidas alcoólicas; serem predominantemente brancas e brancos; heterossexuais48 e pertencentes as camadas mais abastardas economicamente da

sociedade brasileira.

A soma de questões morais; capital cultural; as já referidas interseccionalidades; perspectivas teológicas, e até políticas; e os capitais culturais predominantes entre os “caminhantes”, leva, aqui, a uma concordância, ainda que parcialmente, com o entendimento da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger (1999/2005). A pesquisadora afirma que um dos fenômenos da contemporaneidade é a reconfiguração do espaço do religioso por meio do que ela chama de desregulação institucional, assim como na modificação no que diz respeito a maneira como se dão as filiações religiosas. Se estou de acordo com a socióloga acerca de que o filiar-se a determinados segmentos religiosos sofreu modificações, ficando mais evidente a procura por grupos de afinidade; o mesmo não pode ser dito acerca da referida desregulação institucional. Deveria ser mais apropriado falar em reconfiguração institucional, tendo em vista que sempre há uma organização institucional, afirmada ou negada pelos fieis, como acontece entre muitos dos “caminhantes”, tendo em vista que o termo instituição denota por vezes “religioso” e “evangélico”, termos com os quais, a despeito de qualquer semelhança que possa ser apontada, não se identificam.

Ainda acerca do procurar grupos de afinidade para o exercício da fé, Hervieu- Leger vai, na mesma obra, apontar que os grupos religiosos na modernidade não se reúnem ao redor da figura centralizadora de um líder carismático. Bom, esta não parece ser a realidade do Caminho da Graça. Como buscarei expor abaixo, seu principal líder e fundador ocupa um lugar de líder carismático,

48 O que não implica na ausência de integrantes LGBT, porém estes não podem ocupar lugares de liderança dentro do CG.

reivindicando/exercendo uma função de “profeta dos tempos modernos”, como não poucas vezes foi apontado por muitos interlocutores.