• Nenhum resultado encontrado

MODERNIDADE (S), CIVILIZAÇÃO E A GEOPOLÍTICA HUMANITÁRIA

4 SOBRE A CONSTRUÇÃO DE CORPOS-NÃO-MODERNOS: MODERNIDADE,

4.1 MODERNIDADE (S), CIVILIZAÇÃO E A GEOPOLÍTICA HUMANITÁRIA

Ao viajar de transportes terrestres pelas estradas do Brasil é comum, e esperado, que algumas se tornem mais familiares que outras. Dentre elas a BR-101, que começa na cidade litorânea de Touros, no Rio Grande do Norte e termina em São José do Norte, no Rio Grande do Sul. Esta rodovia é conhecida de muitas pessoas, pois atravessa diferentes cidades, ganhando nomes locais e, como já mencionado, une o Sul ao Nordeste do país. No entanto, o que se quer chamar a atenção aqui não é como esta obra faraônica “une” diferentes regiões do Brasil, mas o nome pelo qual ela foi batizada: Rodovia Mario Covas. Por que chamar a atenção para isso? O que isto pode ter a ver com a discussão aqui proposta acerca do humanitarismo? Na tentativa de manter a linha reflexiva aqui proposta sejam importantes outras perguntas, ainda sobre a BR-101: Quem foi Mário Covas? Por que seu nome foi dado a uma das principais rodovias federais?

A primeira das duas últimas perguntas pode ser respondida com certa facilidade ao se procurar pelo referido nome em qualquer site de busca da internet, na qual se pode encontrar um resumo de quem foi este homem. Porém o que se destaca é o fato dele ter sido 30º governador do Estado de São Paulo. Mario Covas, um homem branco, paulistano, sudestino54, ovacionado como um grande político, pode

54 O uso do termo “sudestino” – um neologismo – surgiu a partir de toda a discussão acerca da invenção do Nordeste, tendo em vista que enquanto o termo “nordestino” foi dicionarizado, o primeiro sequer existe na norma culta, tratando-se de uma generalização, enquanto que os estados da Região Sudeste não são habitualmente reunidos em uma só categoria, como “sudestino”.

ser compreendido como uma ilustração arquetípica55 da relação entre o Sudeste e o

Nordeste. Neste aspecto, tornou-se necessária a aproximação da discussão daquela proposta pelo historiador Durval Muniz Jr (2011) quando ao problematizar a invenção do Nordeste, isto é a construção de um discurso imagético-discursivo sobre esta região, que para o autor é inaugurada em 1919, vai apontar para a elaboração de uma compreensão do espaço geopolítico nacional alicerçada em um racismo que coloca o sudeste, sobretudo São Paulo, como referencial do que é moderno e o Nordeste como lugar da barbárie. O autor se propõe a analisar com certa profundidade diversas representações de intelectuais brasileiros preocupados com a construção positiva de uma identidade nacional do Brasil, e com isso observa a hierarquia formada entre o sudeste e o restante do Brasil, em especial essa nova região, o Nordeste, vista como seu par de oposto complementar.

O regionalismo paulista se configura, pois, como um “regionalismo de superioridade”, que se sustenta no desprezo pelos outros nacionais e no orgulho de sua ascendência europeia e branca. São Paulo seria, para este discurso regionalista, o berço de uma nação “civilizada, progressista e desenvolvimentista”. As mudanças urbanas que estavam ocorrendo na cidade de São Paulo, com a “destruição do quadro medievo, representado pela igreja do Carmo, pelo Piques, pela rua da Santa Casa” e a emergência da “Paulicéia” “americanizada e fulgurante, mais de acordo com a sementeira metálica do Braz”, são símbolos da modernidade, da civilização que São Paulo estaria em condição de generalizar para todo o país. Os modernistas são fruto deste deslumbramento dos sentidos com o novo mundo urbano que parecia célebre, na década de vinte, em São Paulo. Até para estes o Nordeste emerge como um “grande espaço medieval” a ser superado pelos “influxos modernizantes, partidos de São Paulo (MUNIZ JR., 2012, p. 57).

Feitas tais considerações, pode-se voltar para a pergunta acerca da Rodovia Mario Covas. Se o Sudeste, e em especial São Paulo, dá a “a cara moderna” do Brasil, não é de causar grandes surpresas que uma importante estrada federal ganhe o nome de um dos seus mais famosos governadores. Não importa, neste caso, se as demais regiões geopolíticas do Brasil não tenham qualquer relação direta com esta personalidade. Mario Covas seria a cara de um Brasil desejado. De um modo geral os nomes das ruas apontam para grupos hegemônicos em uma dada sociedade. Nesse

55 Sabe-se que o termo arquétipo é bastante caro para diferentes áreas, com destaque para a psicologia, tendo em vista que Karl Jung dedicou-se bastante ao estudo dos arquétipos na construção do conceito de inconsciente coletivo por ele criado. No entanto, o uso aqui feito não tem nenhum compromisso com essa ou qualquer outra teoria. Usa-se arquétipo aqui no sentido de apontar para algo, ou alguém, no caso, que se encaixe em determinada perspectiva hegemônica.

sentido, foi interessante observar a revolta de muitas e muitos ao verem uma rua do Rio de Janeiro receber o nome da vereadora Marielle Franco, executada junto com seu motorista, Anderson56. Ao que parece a reação truculenta se deu tanto por ser ela

Marielle Franco uma representante de diferentes grupos (minorias) com menor gradiente de poder, assim como por terem posto a placa por cima da placa com o nome de um Marechal. Tal situação pode servir aqui para que se pense como se constroem hegemonias e contra-hegemonias, e desses embates, choques e disputas em geral observa-se o processo de hegemonização, o qual no caso remete a modernidade, apontando mais uma vez para invenções geopolíticas hierarquizadas.

Este Brasil inventado, ilustrado aqui com a BR-101, a partir da manutenção de hegemonias, seguindo assim o que ocorre com a própria invenção da Europa moderna, se dá com base na invisibilização da parte de sua história e de muitos dos povos que fizeram parte do processo, mas que não são assim apresentados. Dito isso, torna-se importante aqui diferenciar os dois tipos de modernidade, de acordo com Henrique Dussel (2005), como forma de ressaltar que o referido modelo hegemônico, que sustenta a as práticas humanitárias estão marcadamente ligadas a disputas geopolíticas e ideológicas, por vezes naturalizada. É possível, com isso, afirmar que há uma modernidade que, sendo naturalizada, faz parte de um senso comum acadêmico-científico, não sendo, costumeiramente por este questionada, tendo em vista que ele próprio é um construto a ela diretamente ligada. De acordo com a discussão proposta por Dussel, os dois modelos de modernidade, aqui pensados como antagônicos e complementares.

O primeiro deles é eurocêntrico, provinciano, regional. A modernidade é uma emancipação, uma “saída” da imaturidade por u esforço da razão como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo desenvolvimento do ser humano. Esse processo ocorreria na Europa, essencialmente no século XVIII. O tempo e o espaço desse fenômeno são descritos por Hegel e comentados por Habermas (1988: 27) em sua conhecida obra sobre o tema – e são unanimemente aceitos por toda a tradição europeia atual: Os acontecimentos históricos

essenciais para a implantação do princípio da subjetividade (moderna)

são: a Reforma, a Ilustração57 e a Revolução Francesa (DUSSEL,

2005, p. 14).

56 https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,candidatos-do-psl-destroem-placa-com- homenagem-a-marielle-franco,70002531740

Em seguida o autor ainda acrescenta que a essa sequência espacial-temporal também é largamente aceito o Renascimento Italiano, visto como o momento em que a noção de indivíduo moderno será finalmente inaugurada, como destaca Simmel (1998), dentre outros autores. Nota-se aí que todos os eventos são evidentemente parte da história europeia, o que aponta para outro ponto apontado, na já referida obra de Dussel: a Europa, a partir da naturalização desta compreensão provinciana e regionalista de modernidade, aparece como o centro do mundo, e todo o resto passa a ser vista como sua periferia. É disto que trata o processo civilizador, nos termos de Norbert Elias (1994), o qual parte da construção de um ideal de civilização dentro dos parâmetros de uma unidade europeia – conhecida hoje como “União Europeia”, arrisco dizer – que hierarquizará os diferentes grupos humanos ao redor do mundo como mais ou menos civilizados, e mesmo descivilizados. No entanto, retomando Dussel, é importante observar que a visão que vê a “Modernidade” como fruto de fenômenos intraeuropeus, que teriam necessitado apenas da Europa para existirem, parte de um apagamento da história de tantos outros povos que dele fizeram parte. Sendo assim, o autor defende outra compreensão:

Propomos uma segunda visão da “Modernidade”, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinação fundamental do mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) “centro” da História Mundial. Ou seja, empiricamente nunca houve uma História Mundial até 1492 (como data de início da operação “Sistema-Mundo”). Antes desta data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no Século XVI, e com o descobrimento da América Hispânica, todo o planeta se torna o “lugar” de “uma só” História Mundial (Magalhães-Elcano realiza a circunavegação da Terra em 1521). (...) Para nós, a “centralidade” da Europa Latina na História Mundial é o determinante fundamental da

Modernidade. Os demais determinantes vão correndo em torno dele (a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual, etc.) são o resultado de um século e meio de

“Modernidade”: são efeito, não ponto de partida. (...) Esta Europa

Moderna, desde 1492, “centro” da História Mundial, constitui pela

primeira vez na história, a todas as outras culturas como sua “periferia” (DUSSEL, 2005, p. 17).

Baseando-se na discussão acima, é possível compreender que a “Modernidade” hegemônica, regionalista, eurocêntrica, constrói-se a partir de processos que ignoram e inviabilizam, pelo menos, cinco séculos anteriores aos referidos eventos intraeuropeus. Compreende-se com isso que a Europa, tomada nessa perspectiva como centro do mundo, um farol que poderia iluminar todo o resto,

sua periferia, consequentemente teria como missão civilizar o mundo, especialmente os grupos compreendidos enquanto bárbaros. Civilizar este “outro”, justificaria, inclusive, usar de violência para que este pudesse adentrar a “modernidade”.

Como este bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). Essa dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e como sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etc.). Para o moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade”, não apenas como inocente, mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas (DUSSEL, 2005, pp. 22-23).

A relação entre salvacionismo e culpabilização, como também aponta Mbembe, serviu para justificar, dentre outras práticas, a escravidão que a Europa impôs aos diferentes povos que formam o continente africano. É possível apontar para a prática humanitária como outra faceta deste processo civilizatório “intra-europeu”, que, mesmo ao ganhar contornos brasileiros como os aqui investigados, reproduz um modus operandi semelhante. Este modo, conforme apresento nos capítulos seguintes, apontará para a escolhas feitas pelos agentes humanitários com os quais as interlocuções foram estabelecidas nesta pesquisa, pelo “Sertão” e pela “África”. Entretanto, retomando o foco deste tópico, que é pensar a maneira como a concepção hegemônica de Modernidade se dá a partir do referido processo civilizador que, consequentemente, irá conceber todo o restante do mundo não europeu como menos civilizado, ou mesmo bárbaro, ressalta-se que esta modernidade não seria possível sem todo o processo de escravidão de diversos povos africanos. Nesse sentido, é possível compreender a modernidade como baseando-se na invenção de uma branquitude como superior a uma negritude; uma Europa como superior a África. Nesse sentido, defendo aqui que o humanitarismo, como advento moderno, irá refletir toda essa ideologia civilizatória, iluminista, de um centro capaz de “humanitarizar”, e com isso, humanizar outros grupos e povos.

Disto isto, cabe ainda destacar que este processo que propõe “humanizador”, precisa ser precedido de um processo desumanizador, que inclui práticas de precarização e vulnerabilização. Acerca disso, a autora Carolina Maria de Jesus apresentou uma compreensão dura e bastante lúcida sobre como se instaura as

desigualdades geopolíticas, através do retrato que pintou com suas letras da cidade de São Paulo. A autora escreveu em 19 de maio de 1955:

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (JESUS, 2014, p. 37).

Carolina, como se pode observar, não vê a favela como parte da cidade, mas como uma região fora, outsider, de fato, periférica. Cidade, refere-se então a uma concepção moderna da capital paulista, espaço civilizado, dentro da discussão já exposta. Enquato isso, a favela, o quarto de despejo, o espaço destinado aos corpos- não modernos, estururalmente preparados para receberem qualquer benfeitoria que lhes seja oferecida. Entretanto, como a própria Carolina, em sua existência, ilustra, tais corpos são também os “corpos em contestação”, já mencionados, dos quais fala Nilma Lino Gomes (2002) e por isso, individual e coletivamente, geram incômodos, sendo, por consequência, alvos de isolamentos, abandonos, mortes, deste processo de “desumanização”, que vai servir de justificativa para esse salvacionismo do qual a ajuda humanitária é chave, que como tal que precisa de fechaduras as quais possa abrir. Fatores como a inferiorização epidérmica (FANON, 2008), as desigualdades geopolíticas – em suas diferenes escalas – a construção, inevitável, dos referidos “quartos de despejo” – que podem ser as favelas, o “sertão”, a “África”, as tribos indígenas, ou qualquer outro grupo que não ocupe um lugar central na dita sociedade moderna –são partes partes fundamentais das tais fechaduras.

Dessa forma, é impossível destacar a própria noção de Ocidente como reforçando toda essa discussão e, mais uma vez, aponta para a justificativa de um exercício de dominação por meio de processos civilizatórios. Nesse sentido, Achile Mbembe (2014), vai apontar que o mito que se torna dogma, da superioridade racial da europeia, será parte inseparável do dito “pensamento moderno” e ocidental.

Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder, o hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão, da vida universal e da verdade da Humanidade. Sendo o bairro mais civilizado do mundo, só o Ocidente inventou um “direito das gentes”. Só ele conseguiu edificar uma sociedade civil das nações, compreendida como um espaço público de reciprocidade e

direito. Só ele deu origem a uma ideia de humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhes desenvolver os seus poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano e, enquanto tal, preocupado com tudo o que é humano (MBEMBE, 2014, p. 28).

Este humanismo universalista, apontado pelo acima por Mbembe, estava comprometido em reforçar a hierarquia que possibilitava justificar a intervenção de uns para com outros. Se todos eram humanos, como se apresenta nesta consideração, alguns haviam chegado a determinado estágio de humanidade, e, por isso, estariam responsáveis por conduzir os demais por este caminho. “Assim se justificava a empresa colonial como obra fundamentalmente ‘civilizadora’ e ‘humanitária’, cuja violência, seu corolário, era apenas moral” (MBEMBE, 2014, p. 29). Reforça-se aqui, mais uma vez, a relação entre uma invenção do Nordeste e uma invenção do africano, e logo em seguida do negro, a partir branco europeu. A África, e acrescento aqui o Nordeste, como segue destacando o estudioso camaronês, foi durante todo o processo colonizador – que se estende para a contemporaneidade, de modo que segue sendo vista “[...] prostrada numa infância do mundo, da qual os outros povos da Terra já teriam saído há muito tempo (MBEMBE, 2014, p. 82).

De maneira semelhante, o Nordeste brasileiro vai ser caracterizado a partir de uma imagem dupla, e complementar, que remete tanto ao lugar ermo, de grupos humanos bárbaros e atrasados, como também de um “bom selvagem”, alguém que carrega consigo certa pureza (MUNIZ, 2011). Trazendo para a contemporaneidade, a partir da compreensão de que a ajuda humanitária traria consigo todos os elementos deste “Ocidente moderno” - e com isso elementos neocolonizadores apoiados em uma geopolítica racista, classista, e também pautada sobre expressões de dominação masculina -, abordarei no próximo tópico como se dá a construção das escolhas humanitárias a partir da invenção do “outro” como vulnerável. Antes disso, gostaria de narrar aos leitores uma cena que marcou profundamente as reflexões até agora expostas.

Por volta de julho de 2017 fui convidado a palestrar para alunas e alunos do ensino médio do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, na região norte de Natal, capital do Rio Grande do Norte. O convite foi feito por uma conhecida por ocasião da “Semana de África”. Era a primeira vez que falaria sobre a experiência de ter realizado o trabalho de campo no Senegal. Não sabia exatamente por onde começar, mas logo me ocorreu algo: após me apresentar para a plateia, pedi-lhes que falassem as palavras que lhe vinham à mente quando pensavam na palavra África. De início de maneira tímida, e em seguida de forma

mais efusiva o que se viu foi uma enxurrada de palavras e expressões. Dentre estas destacaram-se: fome, atraso, calor, violência, seca e pobreza. Em seguida, pedi-lhes que fizessem o mesmo com aquilo que, em suas experiências, pessoas do sudeste e do sul do Brasil, falavam do Nordeste. Como havia escrito aquilo que falaram sobre África no quadro branco, alguns já apontaram que seriam basicamente as mesmas palavras que estavam ali na lousa. Daí, deu-se uma discussão sobre as imagens homogeneizadas e estigmatizadoras que construímos sobre o “outro”, e como também podemos ser alvos da mesma prática (Diário de Campo, 20 jul 2018).

O etnocentrismo marcado nessas imagens, tão profundamente marcadas nos imaginários sociais, apontam para o que foi apresentado até agora: a invenção da modernidade, ao menos essa hegemônica, se dá, mesmo na atualidade, a partir da noção de que determinados grupos são superiores a outros, merecendo, por assim dizer, ocupar determinados lugares de poder, e, consequentemente, impor das mais diversas maneiras sua normatização aos demais. Nesse sentido, pôde-se aproximar de outros trabalhos, que contribuem para o argumento construído até aqui, como forma de construir uma genealogia da ajuda humanitária. Neste aspecto tanto Edward Said – [1978(2007); 2002(2007)] – em sua análise crítica sobre o humanismo como acerca da invenção do oriente, como o já apresentado Durval Muniz (2011) e o filósofo congolês V.Y. Mudimbe (1988), que discute a invenção de África.

Mudimbe se dedicou a desmistificar uma história africana construída a partir de uma exterioridade, isto é, um África inventada a partir da invenção de um Europa. Neste processo, Mudimbe vai apontar que a África é vestida de roupas exóticas, estabelecendo uma imagem que justificassem as inúmeras missões e alianças, baseadas em interesses religiosos e na política imperialista e expansionista. Este “outro”, fetichizado, vestido – ou despido – de forma imagético-discursiva, dentro dos moldes do colonizador, segue apontando Mudimbe, será representado a partir de dicotomias como: tradicional versus moderno; oral versus escrito, sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada (MUDIMBE, 2013, 115). Tal concepção do outro a partir de uma afirmação de si, europeu, ocidental e/ou moderno, teria como propósito a alienação deste africano genérico, o qual, visto como ser humano incompleto, ou mercadoria, subalternizado, passaria, caso a empresa colonialista, como analisa Mudimbe, obtivesse sucesso, a depender do colonizador.

A alienação do colonialismo implica o fato objetivo de dependência total (econômica, política, cultural e religiosa) e o processo subjetivo

da autovitimização dos dominados. O colonizado incorpora os estereótipos raciais impostos, particularmente nas atitudes em relação a tecnologia, cultura e língua (MUDIMBE, 2013, p. 123).

Retomando, Said (2007), é interessante observar como o autor, ele próprio um “oriental”, palestino, denuncia que a construção de um Oriente misterioso, prodigioso, revela toda uma empresa colonialista, a qual, como já apontado, serve de base para a noção de Ocidente e seu processo civilizador. O Oriente e, por conseguinte, o oriental, não poderia se nominar, precisando assim ser nominado por outro. Nesse sentido, a invenção de Ocidente se dá de maneira inseparável de um par de oposto, aqui visto como o Oriente; a África, O Nordeste, no caso do Brasil, dentre outros.

É possível, portanto, traçar um alinhavado acerca das discussões destes autores que parte de outra invenção, a de um Ocidente que aparece como vinculado