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CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

8. A TRADIÇÃO CULTA: A LITERATURA PICARESCA

8.3. Burla e riso

Além da astúcia, outra característica da novela picaresca que se opõe à agressiva miséria da sociedade do século XVI, é a burla e o riso.

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ANÔNIMO. A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Op cit. p. 49-51.

284

GONZÁLEZ, Mario. A saga do anti-herói. Op. cit. p.43.

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O caráter subversivo do riso é denunciado pelo beneditino Jorge de Burgos, personagem do romance O nome da Rosa. Jorge de Burgos assassinou seis monges para salvar a ordem dos efeitos subversivos do riso. Ele constata o perigo que o riso pode causar:

Disse um filósofo grego (que teu Aristóteles cita aqui, cúmplice e imunda auctoritas) que se deve desmantelar a seriedade dos adversários com o riso, e adversar o riso com a seriedade. A prudência de nossos pais fez sua escolha: se o riso é o deleite da plebe, que a licença da plebe seja refreada e humilhada, e amedrontada com severidade. E a plebe não tem armas para afiar seu riso até fazê-lo tornar-se instrumento contra a seriedade dos pastores que devem conduzi-la ä vida eterna e subtraí-la às seduções do ventre, das pudendas, da comida, de seus sórdidos desejos. Mas se um dia alguém, agitando as palavras do filósofo, e, portanto, falando como filósofo, levasse a arte do riso à condição de arma sutil, se à tópica da paciente e salvadora construção das imagens da redenção se substituísse a tópica da impaciente desconstrução e do reviramento de todas as imagens mais santas e veneráveis - oh, naquele dia também tu e toda tua sabedoria, Guilherme, estaríeis destruídos286.

Nesta passagem, Umberto Eco sublinha o caráter perturbador do riso.

O pícaro usa o riso como arma. Sua intenção, porém, não é a construção de uma nova ordem. Sua denúncia visa corrigir a injustiça da velha ordem senhorial, na medida em que tal anormalidade representa obstáculo à sua integração ao sistema. O pícaro está preocupado somente com o seu próprio destino.

O pícaro está diante de um mundo que ele despreza, mas onde precisa se integrar para sobreviver. A burla e o riso são, portanto, seus principais instrumentos de sobrevivência.

Segundo Maravall, muitos elementos da burla picaresca tem antecedentes antigos e medievais. O riso picaresco foi a renovação de um recurso literário muito usado pelos escritores renascentistas. A Renascença lançou mão da antiguidade clássica para justificar o

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riso como forma universal da concepção de mundo287. Nesse sentido o riso seria “uma das

formas capitais pelos quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história e sobre o homem”288.

No Renascimento, Rabelais fez uma reflexão sobre o riso a partir das fontes populares, da sabedoria contida no cotidiano dos velhos dialetos, dos adágios populares expressos na linguagem da gente simples e dos loucos. Burckhardt destacou o papel do riso dos loucos e bufões dos palácios289.

Na novela picaresca o riso ocupa um lugar central. A pícara Justina nos dá a medida da importância do riso. Referindo-se ao gosto moderno, destaca que não “soporta pesadas

287

BAKTHIN, Mikahil. Cultura popular na Idade Média e Renascimento: O contexto de Rabelais. São Paulo: Huicitec/ Brasília UnB, 1993, p. 3.

288

BAKTHIN, Mikahil . Cultura popular na Idade Média e Renascimento: O contexto de Rabelais. Op. cit. p. 12.

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Os bobos da corte não costumavam ser sensatos, comedidos ou prudentes como os demais deviam ser. As atitudes do bobo revelam comportamento antiético, porém a ele tudo era permitido e até incentivado. Se algum dos atingidos por suas piadas e acusações reagisse “a sério”, estaria se denunciando. Além disso, a função do bufão participava da esfera do jocoso. Como duplo grotesco do rei, todas as palavras proferidas por alguém monstruoso e repulsivo só podiam realmente fazer rir. Loucura, riso e sabedoria constituem os elementos básicos de um conto do século XII chamado Folie Tristan. Tristão, não suportando a ausência de Isolda, a quem amava, e que era casada com seu tio, o rei Marcos, assume as feições de um louco e vai a corte da Cornualha. Lá chegando diante do rei e de todos os demais, conta a verdade do amor entre ele e a rainha, em todos os detalhes e em toda a sua dimensão trágica, e o rei, como todos os demais, ri e se diverte. A verdade vinda de alguém aparentemente tolo, provoca o riso. Tristão detém sabedoria, e todos os demais, ao rirem, transformam-se em tolos, pois sem saber riem da verdade. O tolo faz rir, e pelo riso, expõe a verdade. Com essa função, os bobos ocupam posição singular nas tradições folclóricas ocidentais, em que aparecem como heróis predestinados a resolver enigmas, superar obstáculos impostos pelos zombadores ou por reis e alcançar muitas vezes o trono. Na Península Ibérica, por exemplo, inúmeros contos provenientes da tradição oral têm como protagonista João Bobo (também conhecido como João Tonto, Manuel Tonto, Manuelito, Juanito Malastrampas e Perico Argumales), “antepassado” distante do Sancho Pança de Cervantes e de nosso conhecido Pedro Malasartes na extensa linhagem de bobos folclóricos. Em suas aventuras, a aparente tolice lhe permite reverter as situações de dificuldades. Seu estado de inferioridade visível oculta astúcia e esperteza. Estas, por sua vez, acabam sendo utilizadas como instrumento capaz de superar os obstáculos a ele apresentados. Geralmente o bobo triunfa sobre os mais fortes que, sendo aparentamente sábios, deixam revelar a sua própria tolice ao serem trapaceados. Ver os seguintes textos: BUCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. São Paulo. Cia das Letras, 1991;

PROTETI, Maria Grazia. “Código ideológico-social, médios y modos de la risa em la comédia del siglo XVII”.

Risa y sociedad em el teatro espanhol. Paris: CNRS, 1980, p 13-22; JAMMES, Robert “La risa y su funcion

social em el siglo de oro”. Risa y sociedad em el teatro espanhol. Paris: CNRS,1980, pp 3-12; SERRALTA, Frederico. “La comédia burlesca: datos y orientaciones”. In: Risa y sociedad em el teatro espanhol. Paris:

CNRS, 1980, p 99-129; LEY, Charles David. El gracioso em el teatro de la Península siglo XVI e XVII. Madrid: Revista de Occident, 1954, p. 30-42; José Rivair Macedo. Riso, cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre/ São Paulo: Ed. Universidade/ UFRGS/ Editora Unesp. p. 135-136.

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moralizaciones, que se aburrece com vidas de santos y para atraerlo a la lectura hay que proporcionarle saborosa matéria de risas, burlas y picardias”290.

O pícaro é um homem de humor. A pícara Justina, na sua fase de donzela jovem, alegre e moderna nos fala do seu gosto de rir: “andaba siempre com a risa em los dientes”.291

O riso dos pícaros apresenta certas características. O riso do pícaro não é um riso ambivalente como o riso carnavalesco. É um riso negativo, cruel, ferino, vingativo, que tem por objetivo destruir, pelo ridículo, a rígida e aristocrática sociedade espanhola da época. O riso se produz quando o pícaro recorda a burla escarnecedora feita contra outras pessoas, na forma de vingança, com a intenção de provocar danos. Em Simplicissimus, Grimmelshausen fala do propósito de “dicer la verdad entre las risas”292.

Já a burla, outro traço da picaresca, pode se expressar como pura vingança, ou uma ação instrumental para obter êxito em alguma coisa vantajosa. A burla pode ser apenas um ato gratuito, provocando o riso do público e do próprio pícaro, sem agressividade293.

Pablos, de “El Buscon”, refere-se aos pormenores das burlas que realizou contra diversas pessoas, na sua maioria desconhecidas. Tais manobras ardilosas se expressam através de furtos. Seus companheiros criados celebram e riem com ele. Pablos chega a comentar: “com estas e outras cosas, comencé a cobrar fama de travieso y agudo entre todos”294.

Paul Hazard destaca a crueldade nas burlas e no riso de Lazarillo e de Estabanillo Gonzalez. Hazard considera que estas são isentas de piedade e provoca, em quem a escuta, uma gargalhada cruel. Lázaro descreve, às gargalhadas, a última burla que pregara no cego. Depois de ter sido enganado e castigado pelo cego por ter roubado uma lingüiça, Lázaro

290

Citado por MARAVALL, José Antonio. A literatura picaresca desde la história social.Madrid: Taurus Ediciones, 1986, p. 632.

291

Citado por MARAVALL, José Antonio A literatura picaresca desde la história social.Madrid: Taurus Ediciones, 1986, p.633.

292

Citado por MARAVALL, José Antonio A literatura picaresca desde la história social.Madrid: Taurus

Ediciones, 1986, p. 632. Ver H. J. C. Grimmelshausen. Les aventures de Simplicius Simplicissimus. Paris: Aubier, 1988.

293

MARAVALL, José Antonio. A literatura picaresca desde la história social. Madrid: Taurus Ediciones,

1986, p. 636.

294

QUEVEDO, Francisco de. El Buscón. Buenos Aires: Losada, 1879, p. 89

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decide deixá-lo. Antes, porém, decide aplicar-lhe uma burla. Lázaro conta como empreendeu essa trapaça. Depois de mendigar na chuva, ao anoitecer o cego propôs a Lázaro acolherem-se em uma pousada. Tinham, porém, que cruzar um riacho. Lázaro planeja então sua burla:

Tio o arroio está muito largo; mas se quereis, vejo por onde atravessamos mais de pronto sem nos molharmos, porque se estreita muito ali e, saltando, passaremos a pé enxuto. Pareceu-lhe bom conselho(...) (...) Eu, que vi o apronto a meu desejo, tirei-o de debaixo dos portais e levei-o direto a um pilar ou poste de pedra que na praça estava, sobre o qual e sobre outros calcavam-se os balcões daquela casa, e lhe digo: Tio, este é o passo mais estreito que há no arroio. Como chovia grosso(...), acreditou-me e disse:

Põe-me bem direito e salta o arroio. Eu o pus bem direito em frente do pilar, e dou um salto e ponho-me detrás do poste, como quem espera tope de touro, e disse-lhe:

Sus! Saltai tudo o que possais, porque deis, deste, cabo da água.

Apenas acabara de dizê-lo, quando se abalança o pobre cego como bode e com toda sua força arremete, tomando um passo atrás para fazer maior salto na corrida, e dá com a cabeça no poste, que soou tão forte como se dera com uma grande cabaça, e caiu logo para trás meio morto e fendida a cabeça.

Como? Cheirastes a lingüiça e não o poste? Cheirai! Cheirai! lhe disse eu295.

É, porém, como pregoeiro que Lázaro manifesta declaradamente a defesa da burla. Ele conta que depois de ter deixado o amo capelão, foi contratado por um aguazil. Mas achando o trabalho perigoso, resolveu por-se a caminho de meios mais proveitosos. Conseguiu um cargo de pregoeiro296, que entre outras coisas se ocupava de acompanhar os prisioneiros penalizados pela justiça: o pregoeiro anunciava os delitos publicamente. Quando realizava uma de suas tarefas corriqueiras Lázaro relembra como evoluiu na ciência de burlar:

295

Na tradução a expressão dita por Lázaro, “Cheirai! Cheirai!”: no original Olé! Olé! significa aplauso, entusiasmo. Cf. ANÔNIMO. A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Op. cit. p.71-73 .

296

Pregoeiro era aquele que acompanhava enforcamentos e açoitamentos pelas ruas, apregoando causas e delitos. Cf. ANÔNIMO. A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Op. cit. p. 177.

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“No qual ofício, um dia em que enforcávamos um larápio em Toledo, e levava uma boa soga de esparto, conheci e me dei conta da sentença que aquele meu cego amo havia dito em escalona, me arrependi do mal pago que lhe dei, pelo muito que me ensinou. Que depois de Deus, ele me deu indústria para chegar ao estado que agora estou”297

Com essa defesa da burla, Lázaro ironiza a corrupção da sociedade espanhola de Carlos V298 .

O engano, a mentira, e a ganâncias se alastram por todo tecido social: as taberneiras vendem gato por lebre, os estudantes passam o tempo aplicando golpes nos incautos, os vendeiros roubam no peso e na conta.

Também os representantes da lei não ficam atrás. A corrupção é a norma de todo sistema judiciário. Guzman de Alfarrache fala de como a justiça tornou-se fraudulenta no governo de Carlos V:

Quién há de creer haya em el mundo juez tan malo y descompuesto o desvergonzado, que tal seria el que tal hiciese, que rompa la ley y lê de la vara um monte de oro? Bien que por ahí dice algunos que esto de pretender ofícios y judiciaturas va por ciertas indirectas y destiladeras ó, por mejor decir, falsas relaciones com que se alcanzan, y después de constituídos em ellos, para volver algunos á poner su cadal em pie, se vuelven como pulpos. No hay poro ni conyuntura em todo su cuerpo, que no sean bocas y garras. Por alli lês entra y agaran el trigo, la cebada, el vino, el aceite, el tocino, el pano, el lienzo, sedas, joyas y dineros299.

E Guzman de Alfarrache diz, a respeito do escrivão:

297

ANÔNIMO. A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades . Op. cit.p. 179.

298

PARR, James A.. La estructura satírica del Lazarillo. In: La Picaresca: orígenes, textos y estruturas.

Madrid: Fundacion Universitária Espanhola, 1979, p.379-381.

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“Porque informan y escribe lo que les antoja y, por dos ducados ó por complacer al amigo y aún á la amiga, que negocian mucho los mantos, quitan lãs vidas, lãs honras y lãs haciendas, dando puerta á infinito número de pecados”300.

8.4. O Anticlericalismo

Além de denunciar a fome, a avareza, e as trapaças da sociedade espanhola de Carlos V, Lázaro denuncia ainda a corrupção que havia dentro da igreja. Uma retórica anticlerical permeia a maior parte da obra, mais especificamente no tratado II, IV, V, VI e VII, sintetizada pelos amos de Lázaro301.

Na Espanha do século XVI e XVII, a Igreja ocupa um lugar eminente. Associada à Guerra da Reconquista, ao exercício do poder, administradora de uma parte das obras assistenciais e proprietária de terras, a igreja é um dos principais poderes de sustentação da sociedade absolutista302.

Benassar aponta cifras do número de eclesiásticos na Espanha. Em 1591, registram-se cerca de 91.000 eclesiásticos na Espanha. Com cerca de oito milhões de habitantes, o clero representa cerca de 1,15 em cada 100 habitantes. No início do século XVII, porém, a população diminui e o número de eclesiásticos começa a aumentar, e chega a alcançar um percentual de dois religiosos para cada 100 habitantes, em 1640303.

Até o final do século XVI a Espanha contava com oito arcebispados - Toledo, Sevilha, Santiago de Compostela, Granada, Burgos, Tarragona, Zaragossa, Granada, Burgos e

300

ALEMÁN, Mateo . Guzman de Alfarrache. Op. cit. p. 38.

301

Lázaro teve nove amos e cinco deles foram eclesiáticos. Quando o amo não é um religioso há sempre uma observação acerca da Igreja. No terceiro tratado chama a atenção para o distanciamento entre o clero e a população. “Canónigos y señores de la Iglesia muchos hallo; mas es gente tan limitada que no los sacáran del paso todo el mundo”. No tratado quarto a crítica é dirigida contra a avidez, a ausência de caridade e a sensualidade do clero. Destaca o culto ao dinheiro e a falta de fé o qual é simbolicamente representado quando o clero de Maqueda põe sobre o altar o dinheiro da coleta para poder tê-lo constantemente diante dos olhos. Cf. SOUILLER, Didier. La novela picaresca. México: Fondo de Cultura, 1985, p. 39. Ver também ANÔNIMO. A

vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Op. cit.

302

BENNASSAR Bartolomé. La Espana del Siglo de Oro. Barcelona: Editorial Crítica, 2001, p. 194.

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Valencia. E quarenta e oito bispados, incluindo os bispados das ilhas Baleares e Canárias. Em 1597, a renda total dos arcebispados e bispados era de 1.204.000 ducados, 250.000 dos quais correspondiam ao arcebispado de Toledo e 100.000 ao de Sevilha. Elas representavam a terceira parte das rendas da alta nobreza. Os cabildos das catedrais e das colegiatas eram muito ricos e reuniam cerca de 7000 cônegos. Somente o cabildo de Toledo contava com 60 cônegos e uma centena de beneficiários, 200 capelães e maestros de música. Segundo Domingo Ortiz a renda dos monastérios era alta e correspondia a sexta parte da renda de todo o país. Num período de grande crise na Espanha, a concentração de renda do clero explica a grande migração de nobres para a Igreja. Assim, por ser um segmento importante e detentor de grandes privilégios e de riqueza, a igreja passa a ser objeto de contestações, fato exacerbado pelo contexto das críticas dos teólogos da Reforma304.

No século XVI, surgem no meio intelectual espanhol as idéias do humanista e reformador Erasmo de Roterdã305. A primeira tradução para o castelhano do livro Elogio a

Loucura apareceu em 1511. Neste livro Erasmo de Roterdã rechaça a intolerância escolástica

e critica a avareza e os vícios do clero306.

304

Ver os seguintes livros: ORTIZ Antonio Dominguez. “El Antiguo Régimen: Los Reyes Católicos y los Austrias”. Historia de Espana. t. III. Madrid: Aliança, 1973. __________, Las Classes privilegiadas em la

Espana del Antiguo Régimen. Madrid: Istmo, 1973.

305

Humanista holandês (de Rotterdam, nasceu provavelmente em 28-X-1469 - Basiléia, 12-VII-1536). Foi ordenado sacerdote em 1492, mas logo abandonou o hábito. Aprofundou seus estudos clássicos em Paris, e viajou pela Inglaterra, onde encontrou Thomas Morus, cuja amizade conservou. Residiu depois na Itália. Passou a vida inteira estudando e ensinando. Aperfeiçoou, sobretudo, o conhecimento do latim e dos em escritores da Antigüidade, adquirindo ampla erudição de humanista e filólogo. Foi dispensado dos votos monásticos pelo papo Júlio II. Em 1521, fixou em Basiléia. Em 1516, publicou uma edição grega do Novo Testamento, acompanhada de uma versão latina. Escreveu o Elogio da Loucura (1509), obra que teve êxito extraordinário, por seu caráter satírico sobre a necessidade da reforma da Igreja. Quando se fixou em Basiléia, mundialmente famoso, manteve intensa correspondência com os grandes intelectuais da época. Sempre se manifestando interessado pelos problemas religiosos, inclinava-se por uma reforma dos costumes, mas não da fé. Criticou os abusos dos eclesiásticos. Apesar disso, a violência de Lutero colocou-o de sobreaviso, e negou-se a colaborar com os reformadores, criticando seus excessos e algumas de suas doutrinas, no livro De libero arbitrio. HuRmanista antes de tudo, exerceu e seu tempo influência profunda, inclusive literária, abrindo a Europa à erudição clássica, à propagação das línguas antigas. Por volta de 1520, todos os meios cultos europeus pareciam erasmianos, sobretudo a Espanha, antes de a Inquisição intervir contra suas teses. Cf. ROTTERDAN, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martin Claret. 2002, p. 86-87.

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As idéias erasmistas chegaram a provocar um movimento popular na Espanha. Maravall considera que as bases da revolta popular, porem, não estavam só vinculadas a uma crítica religiosa, mas estavam fincadas na crítica do regime social e econômico.

A sátira anticlerical e nobiliárquica já fazia parte da tradição espanhola da época. Enquanto a consciência evangélica realizava e punha em cheque as ações contraditórias de seus representantes, o humanismo afirmava que a nobreza era uma questão de virtude e não de hereditariedade. O erasmismo preparou um clima de rebeldia que iria impulsionar as classes humildes a tomarem consciência de seu “derecho a ser rebeldes por que se sienten en

un nuevo clima moral y jurídico”307

. No livro, o papa é descrito como um louco308.

Os humanistas erasmistas produziram, entre 1530 e 1560, uma literatura que satirizava a corrupção moral e religiosa da Espanha. Entre os escritos erasmistas estão Eremitae, escrito por Juan Maldonado, em 1538, além do Lazarillo e, em 1599, Guzman de Alfarrache.

Assim compreende-se a ironia presente na fala de Lázaro quando ele descreve o escândalo das indulgências que envolvem seu quinto amo: o vendedor de bulas. Lázaro diz que este foi o seu amo “mais desenvolto e desavergonhado, e o maior tirador destas que

jamais vi e nem espero ver”309

.

Nesta parte Lázaro descreve, a associação entre o buleiro310 e o aguazil311 para enganar os fiéis inocentes através da simulação de um castigo divino.

307

CASTRO, Américo. “ Perspectiva de la novela picaresca y El Lazarillo de Tormes. O que este autor chama “ humanismo profano” outros autores, como, Quentin Skinner e J. Pocock considera “ humanismo cívico” SKINNER, Quentin. Fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 102 – 103.

308

Cf. SKINNER, Quentin. Fundações do pensamento político moderno. Op. cit. p. 311.

309

Cf. ANÔNIMO. A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Brasília: Círculo de

Estudos Clássicos de Brasília, 2002, p. 153.

310

O buleiro era um religioso encarregado de vender as bulas da Santa Cruzada. As bulas eram documentos em que se punham as regras de Deus para alcançar a vida eterna. Elas foram criadas para contribuir com os gastos das cruzadas. Em 1500, Carlos V reclamou-as ao Papa com a escusa de combater os mouros Cf.