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CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

6. SUASSUNA E A PERMEABILIDADE DAS CULTURAS BRASILEIRA E IBÉRICA

6.2. O enterro do cachorro

Já "O primeiro ato do Auto da Compadecida é baseado no folheto O enterro do

cachorro, folheto do ciclo cômico, satírico e picaresco, publicado por Leonardo Mota sem

indicação de autoria". O fato de não possuir autoria é um forte indicador de tratar-se de conto oral que, passando de boca em boca, acabou por ser registrado para a linguagem escrita. Suassuna diz ainda que o pesquisador Evando Rabelo informou-lhe que tal folheto "é um fragmento de outro, O dinheiro, de autoria de Leandro Gomes de Barros". O que pode indicar que Leandro Gomes de Barros retira sua matéria-prima bruta da literatura oral, ou mesmo de outros fragmentos impressos, mas cujo núcleo central temático circula através da tradição oral. Suasssuna parece precisamente querer reforçar este argumento ao acrescentar que outro pesquisador [Enrique Martinéz Lopéz, professor de literatura hispânica da Universidade da Califórnia] concluiu que essa história do testamento do cachorro "é um conto popular de origem moura", que teria emigrado com os árabes do norte da África para a Península Ibérica. Suassuna acrescenta:

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SANTIAGO, Silviano. "Introdução", nota 3. In.: Seleta. Op. cit., p. 35.

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SUASSUNA, Ariano. “Um plagiário confesso”. Diário da Noite, 27 abril 1957.

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"Quando escrevi a peça, ignorava esse fato, que, aliás, é comum na Literatura popular e na erudita que dela se origina, que nada significa contra o caráter perfeitamente nordestino e brasileiro da versão de Leandro Gomes de Barros na qual me baseei"217.

Suassuna nota ainda que o conto oral O enterro do cachorro tem também versões no bumba-meu-boi e no mamulengo, e constitui portanto peça popular encenada nas ruas e nas festas do interior do sertão. Suassuna menciona esse aspecto quando analisa a versão de Leandro Gomes de Barros da história do enterro do cachorro. Para Leandro o dono do cachorro é um inglês. Esse personagem suborna o padre e o bispo para conseguir que seu cachorro tenha um enterro cristão, com palavras em latim ditas pelo ministro da Santa Igreja. Suassuna troca esse personagem pelo padeiro e sua mulher, que representam "a burguesia urbana das pequenas cidades do Sertão", num exemplo de "substituição e desdobramento". Segundo Suassuna, trata-se ainda de "uma aproximação com dois personagens do Bumba- meu-boi, o 'Doutor' e a 'Catarina'". Ressalte-se ainda que a dupla João Grilo e Chicó "vem, é claro, do 'Mateus' e do 'Bastião' do Bumba-meu-boi, do 'Palhaço' e do 'Besta' do circo, etc". E o "Capitão" do Bumba-meu-boi ajudou a compor, parcialmente, o personagem do Major Antônio Morais218.

Essa informação reforça o caráter da oralidade da origem dessas estórias, pois tanto o circo e o mamulengo quando o bumba-meu-boi privilegiam narrativas não-escritas. Claro que se poderia perguntar se essa versão circense do conto O ENTERRO DO CACHORRO (refiro- me à variante do mamulengo e do Bumba-meu-boi) não é mera influência da leitura do folheto de Leandro Gomes de Barros (ou ainda do fragmento homônimo que consta na coletânea de Leonardo Mota, cf. já foi dito acima)? Tal dúvida, porém, parece menor ao se

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SUASSUNA, Ariano. "A compadecida e o romanceiro nordestino". In.: Literatura popular em verso:

estudos. Op. cit., p. 185.

218

SUASSUNA, Ariano. "A compadecida e o romanceiro nordestino". In.: Literatura popular em verso:

estudos. Op. cit., p. 186-187, 188. Os dois personagens centrais, além de inspirados em pessoas reais, têm

também influência da "literatura oral picaresca do Nordeste", ou dos mitos do "nosso novelário popular". João Grilo baseia-se em duas pessoas: um sujeito de alcunha "Piolho", que morava em Taperoá. E num gazeteiro de Recife chamado João, cujas "quengadas", trapaças e espertezas aproximam-se do tipo picaresco. Já Chicó foi inspirado num mentiroso que tem o mesmo nome: Chicó de Berto. Um processo idêntico foi a construção de personagens como o Palhaço, Severino de Aracaju e o Major Antônio Morais. Este último "partiu de pedaços de pessoas reais e do Duque invejoso e mau da HISTORIA DO CAVALO QUE DEFECAVA DINHEIRO, assim como também, um pouco, do 'Capitão' do Bumba-meu-boi". SUASSUNA, Ariano. "A compadecida e o romanceiro nordestino". In.: Literatura popular em verso: estudos. Op. cit., p. 187, 188.

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notar que há versões desse relato oral em “coleções orientais, latinas, francesas, alemãs e espanholas”219. A riqueza de todas essas versões nordetinas utilizadas por Suassuna reside, precisamente, no fato de elas reforçarem a hipótese da exportação, circulação e permeabilidade cultural da literatura oral: aqui com um exemplo privilegiado de forma de apropriação entre a cultura letrada e a cultura não-letrada.

Um exemplo deste truque do testamento do cachorro em coleções de relato oral na Espanha do século XVI denomina-se El testamento del asno. Trata-se da história de um camponês que, grato pelos lucros obtidos com um jumento, conseguiu enterra-lo dentro da igreja. O padre foi contra, mas o rústico camponês convenceu o sacristão ao exibir alguns escudos (dinheiro). O padre descobriu o feito, e denunciou aos superiores em Granada, que enviaram um inspetor para punir os criminosos. O sacristão e o camponês, com medo, pediram ajuda a um camponês que era mais perspicaz. Este pediu um pouco de trigo e 100 escudos para resolver o problema. Foi a igreja e disse ao inspetor que o burro foi ali enterrado porque merecia. O burro era prudente e havia feito um testamento e deixado 100 escudos para o inspetor. O inspetor olhou, viu e disse: “Burro que tal faz, descanse em paz”. E encerrou o caso220.

Esse conto folclórico reitera, uma vez mais, nossa preocupação inicial de sublinhar a importância da circulação da literatura oral para a dramaturgia de Ariano Suassuna.