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CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

4. A LITERATURA ORAL COMO PROBLEMA

Aqui surge um novo problema: a proeminência do relato oral tanto para a literatura de folhetos do Nordeste quanto para a literatura ibérica dos séculos XVI e XVII175.

Lançar mão do relato oral ibérico na busca das fontes intelectuais de Ariano Suassuna justifica-se, portanto, não somente pela transferência desses contos orais para o Brasil, mas também pela apropriação que os escritores cultos do Renascimento espanhol, como Cervantes, fizeram da literatura oral.

Como uma das preocupações desse capítulo é, portanto, refletir sobre as eventuais relações entre o relato oral ibérico e o folheto nordestino, são necessários dois esclarecimentos: 1º)

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 74, 79.

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Os cânones da História da literatura portuguesa argumentam que a novela picaresca é um gênero literário inexpressivo em Portugal. Uma das exceções é uma recente dissertação de mestrado, que trata o tema da literatura picaresca em Portugal em Gaspar Pires de Rebelo, escritor do século XVIII. O caráter pouco expressivo do gênero picaresco em Portugal, algo que contrasta com o florescimento da literatura oral e do texto culto na vizinha Espanha no Século de Ouro, pode ser compensado quando se constata a riqueza da literatura oral no período do Renascimento, tanto de Portugal quanto de Espanha. Ou seja, quando o escritor Ariano Suassuna alardeia a sua apropriação da literatura picaresca ibérica, quer com isso sublinhar não apenas a sua leitura de textos clássicos da literatura culta espanhola, como o Lazarillo ou o Quijote. Para o escritor, não se pode também perder de vista a influência que a literatura oral do Renascimento de Espanha e Portugal exerceram, tanto sobre o folheto nordestino, quanto sobre sua própria produção intelectual. O autor clássico nesta área é PALMA-FERREIRA, JOÃO. Do pícaro na literatura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa; Secretaria de Estado da Cultura/MEC, 1981. PALMA-FERREIRA, JOÃO. Novelistas e contistas

portugueses do século XVI. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1983. PALMA-FERREIRA, JOÃO. Temas de literatura portuguesa. Lisboa : Editorial Verbo, 1983. Ver também a obra clássica de SARAIVA,

Antônio J.; LOPES, Oscar. Historia da literatura portuguesa. 17ª ed., Porto : Porto Editora, s/ data. Há uma rápida reflexão de Saraiva sobre o pícaro no Oriente, ver: SARAIVA, Antônio J. “Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial”. Lisboa : Jornal do Fôro, 1961, 11-13; 60-81. Ver também

GUERREIRO, M. Viegas. Para a história da literatura popular portuguesa. 2ª ed. Lisboa : Instituto de Cultura Portuguesa; Secretaria de Estado da Cultura/MEC, 1983. E ainda GONÇALVES, Artur Henrique Ribeiro. Uma

novela pícara portuguesa: `O desgraciado amante´, de Gaspar Pires de Rebelo. Lisboa : Universidade Nova de

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Por que privilegiar a literatura oral do período do Renascimento? E, 2º) Por que o maior destaque à plataforma do conto folclórico espanhol?

Primeiramente, a literatura oral do Renascimento pode auxiliar a esclarecer o modo como Ariano Suassuna leu a novela picaresca. Como ressalta a historiografia do período, a “cultura oral dos analfabetos” dos séculos XVI e XVII adquiriu tamanha difusão que era conhecida e narrada por todos os grupos sociais, como demonstram os textos cultos de Cervantes ou Lopes de Vega176: "todos os escritores espanhóis do Século de Ouro escrevem, em ocasiões, como falam"177. Ou seja, como a literatura oral do Renascimento invadiu a cultura letrada do século XVI178, pode-se ponderar que Suassuna identificou, na novela picaresca espanhola, contos da tradição oral brasileira.

Quanto à 2ª questão, o uso de catálogos de contos folclóricos espanhóis, e de sua historiografia, justificam-se pelo objetivo de esclarecer o modo como Ariano Suassuna se apropriou da literatura ibérica.

Além disso, os estudos sobre o conto folclórico do Século de Ouro de Espanha estão mais adiantados. Trabalhos recentes (Daniel Devoto, Fernando de la Granja) “demonstram que a plataforma de referência [do relato oral] na época moderna é muito mais extensa do que se poderia pensar”. “Não cabe dúvida que o conto tradicional, tal qual o romance, seguiu os conquistadores" na América hispânica. A tradição espanhola é “em vários momentos iluminada pelo estudo do folclore americano”. E o caráter folclórico de uma série de contos que aparecem nos textos espanhóis do Século de Ouro pode ser explicado pela tradição árabe, sefardita, brasileira e pelo “folclore narrativo português, gêmeo do espanhol”179. Na busca de reunir o corpus dos contos folclóricos que viveram na Espanha

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CHEVALIER, Maxime. Cuentecillos tradicionales en la España del Siglo de Oro. Madrid : Editorial Gredos, 1975, p. 17 e seguintes.

177

CHEVALIER, Maxime. Folklore y literatura. Op. cit., p. 77.

178

Cf. CHEVALIER, Maxime. Cuentos folklóricos en la España del Siglo de Oro. Barcelona : Editorial

Critica, 1983, p. 11-12.

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CHEVALIER, Maxime. Cuentos folklóricos en la España del Siglo de Oro. Barcelona : Editorial Critica, 1983, p. 12. Cascudo analisa os elementos que constituíram a literatura oral portuguesa: "A tradição movia a estória, a facécia, o mito e a fábula, admitindo a absorção de elementos letrados, vindos dos PLIEGOS SUELTOS, dos romanceiros aristocráticos e dos livrinhos vendidos nas feiras e adros de igrejas pelas cegos, este

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do Século de Ouro, essa historiografia usa como fonte os textos redigidos no século XVII pela literatura culta, e que figuram nas seguintes coleções e índices:

-- coleções de contos folclóricos portugueses e brasileiros; -- coleções de contos folclóricos formados na América hispânica; -- coleções de contos folclóricos recolhidos entre os sefarditas; -- coleções de contos folclóricos árabes;

-- coleções de contos folclóricos recolhidos na Espanha180.

desde o tempo del-rei D. João V. Pela ordem de sua importância, a literatura oral portuguesa, como qualquer outra na espécie, resulta do:

a) fundamento comum das estórias populares, de várias procedências, amalgamadas, fundidas, num processo inconsciente e poderoso de aculturação.

b) influência dos livros e folhas de literatura popular, com elementos da tradição e o contingente da imaginativa individual do autor. Esta ainda podia provir de influência livresca, adaptada ao espírito local. Um dos livrinhos mais populares em Portugal, desde o séc. XVI, assim como no Brasil, é a HISTÓRIA DA IMPERATRIZ PORCINA, MULHER DO IMPERADOR LODÔNIO DE ROMA, EM A QUAL SE TRATA COMO O DITO IMPERADOR MANDOU MATAR A ESTA SENHORA, etc. do cego Baltazar Dias, que viveu sob el-rei dom Sebastião. Continua sendo reeditado em Portugal e Brasil, em versos setissílabos, segundo praxe secular. Teófilo Braga informa que Baltazar Dias romanceara poeticamente um episódio do SPECULUM HISTORIALE, de Vicente de Beauvais. Um estudioso de Wallenskold, analisando o tema grandemente conhecido de Crescentia, THE SLANDERED WIFE, a esposa caluniada (Mt. 712 de Aarne-Thompson), evidenciou a quase universalidade do assunto e sua antiguidade.

c) reminiscência dos sermonários, apologéticos, hagiolários, leituras místicas, tornadas acessíveis durante as missões, pregações de Semana Santa, festas ao Orago, desobrigas quaresmais, etc.

d) recordação de elementos existentes na Novelística, atos e episódios possivelmente evocados nas casas senhoriais e divulgados, com ampliações e deturpações, pela famulagem. Há episódios do PALMERIN DE OLIVA, novela cavaleiresca, com edição espanhola em 1511, numa estória tradicional portuguesa, PALMEIRIZ D´OLIVA. Dois outros contos populares, registrados pelo mesmo autor (n. 97 e n. 182), estão no LAZARILLO DE TORMES (1553, caps. V e XV). É mais lógico haver Diego Hurtado de Mendoza aproveitado temas chistosos, ouvidos na Universidade de Salamanca, onde escreveu o LAZARILL em 1521, que os ter inventado. Se é que seja o autor". CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Op. cit., p. 172-173.

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CHEVALIER, Maxime. Cuentos folklóricos en la España del Siglo de Oro. Barcelona : Editorial Critica, 1983, p. 12, 13. CHEVALIER, Maxime. Folklore y literatura. Op. cit., p. 17. As versões orais contemporâneas podem, eventualmente, ajudar a esclarecer o corpus dos contos orais do Renascimento: “existe

narrações do Século de Ouro, porém, que procedem de fábulas esópicas ou de alguma das numerosas coleções de novelas italianas dos séculos XIV, XV ou XVI, e que correspondem a contos folclóricos arraigados na tradição espanhola e hispano-americana, das quais se recolheram numerosos versões orais na época contemporânea”. CHEVALIER, Maxime. Cuentos folklóricos en la España del Siglo de Oro. Op. Cit., p. 29-30. Já Câmara

Cascudo caracteriza, da seguinte forma, as origens do conto tradicional português: "Essa literatura foi crescendo e veio, de onda em onda, até o vagalhão em tempo de Mouros. Tudo se juntou, mistorou, coloriu. Vinham elementos locais, gregos, cartagineses, romanos, álamos, visigodos, vinte, trinta tintas para a mesma paleta. Os animais que iam morrendo, os chefes que foram esquecidos, passaram para os bichso vivos e os amos mandões.

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Ao contrário do folheto nordestino, o estudo da literatura oral não pode se limitar as fronteiras nacionais precisamente devido a plataforma de referência dos contos na época moderna.

Cabe agora esclarecer melhor alguns conceitos como conto, novela, gracioso, conto folclórico e seus variados matizes, como o cuentecillo e o conto novelado. Ou seja, quais as relações entre o relato oral e a literatura ibérica culta?