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DIFERENÇAS ENTRE O CORDEL PORTUGUÊS E O FOLHETO BRASILEIRO

CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

1. DIFERENÇAS ENTRE O CORDEL PORTUGUÊS E O FOLHETO BRASILEIRO

Em tese recente, Márcia Abreu sustentou a hipótese da "impossibilidade de vinculação" da literatura de folhetos nordestina à literatura de cordel lusitana. Para tanto, a autora procura salientar as discrepâncias entre esses dois gêneros literários. Seu principal argumento explora uma contradição: ao contrário do folheto brasileiro, nem todo cordel português é "literatura popular"141.

O problema se manifesta já na conceituação da literatura de cordel portuguesa. Para Márcia Abreu, como “não se deve aceitar que toda literatura de cordel [portuguesa] seja popular”, seu conceito normalmente tem que ser atribuído as características físicas dos cordéis, e à maneira de vende-los. A literatura de cordel lusitana deve ser vista, assim, como uma fórmula editorial para vender o texto escrito à amplos setores da população:

"A chamada `literatura de cordel´ é uma fórmula editorial que permitiu a divulgação de textos de origens e gêneros variados para amplos setores da população. Essa fórmula editorial não é uma criação portuguesa, já que se encontram publicações similares em quase todos os países europeus -- basta que se pense nos CHAPBOOKS ingleses, na LITTÉRATURE de COLPORTAGE francesa, nos PLIEGOS SUELTOS espanhóis etc."142.

Para a autora, enquanto o folheto nordestino possui uniformidade, isso não se verifica no cordel europeu. Veja-se esta conceituação do cordel português que ressalta os vários pontos de diferenciação:

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 17, 22.

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"O que importa reter é a completa falta de unidade no interior da produção dita `de cordel´, sob qualquer aspecto considerado -- exceção feita à materialidade dos livros. Recapitulando: o termo `literatura de cordel portuguesa´ abarca textos em verso, prosa, de diversos gêneros, oriundos de várias tradições culturais, produzidos e consumidos por amplas camadas da população. O sucesso dessa fórmula editorial -- divulgação de material impresso a baixos custos -- atrai para esse tipo de publicação os mais diversos textos, destinados ao mais variado público. Desta forma, é possível entender o porquê da existência de gêneros tão variados, autores de praticamente todos os estratos sociais, traduções das mais variadas línguas, adaptações de autores eruditos, ou seja, `folhetos de todo o feitio e assunto´, como disse Cardoso Marta, no interior da literatura de cordel. Somente pela percepção de que se trata de uma linha editorial é possível entender a existência de um imenso volume de traduções e adaptações para o português de obras de Molière, Corneille, Voltaire, Goldoni, Metastásio, responsáveis por um conjunto significativo dos textos de cordel publicados em Portugal. Seria difícil supor que em um universo de produção e de circulação exclusivamente populares a prática das traduções fosse tão corrente. Os textos veiculados sob a forma de folhetos de cordel não foram, na grande maioria dos casos, escritos visando esse tipo de publicação”143.

Para Márcia Abreu, portanto, o folheto do nordeste não provém do cordel português, pois são inúmeras as diferenças entre as duas formas literárias. Quando a autora observa o folheto do Nordeste do Brasil, constata os seguintes nuances diferenciadores:

"Assim, entre o final do século XIX e os anos 1920, a literatura de folhetos [brasileira] consolida-se: Definem-se as características gráficas, o processo de composição, edição e comercialização e constitui-se um público para essa literatura. Nada nesse processo parece lembrar a literatura de cordel portuguesa. Aqui, havia autores que viviam de compor e vender versos; lá, existiam adaptadores de textos de

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sucesso. Aqui, autores e parcela significativa do público pertenciam às camadas populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da qual criaram sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se extraiu os cordéis pertenciam, de longa data, à cultura escrita. Aqui, boa parte dos folhetos tematizavam o cotidiano nordestino; lá, interessavam mais as vidas de nobres e cavaleiros. Aqui, os poetas eram proprietários de sua obra, podendo vendê-la a editoras, que por sua vez também eram autores de folhetos; lá, os editores trabalhava fundamentalmente com obras de domínio público"144.

O ponto central de divergência entre as duas produções, para a autora, diz respeito a uma característica do texto do folheto nordestino: a rima.

"Nisso resida a característica fundamental dos folhetos nordestinos, que se pautam por regras rigidamente estabelecidas quanto à rima, à métrica e à estruturação do texto, regras estas conhecidas pelos autores e pelo público".

"A obrigatoriedade de se utilizar uma forma fixa parece ser uma criação local, pois não há, em Portugal, tal uniformidade "145.

A autora trabalha essa tese da distinção entre o cordel português e o folheto nordestino de várias formas, recorrendo em particular à análise das diferenças entre produtores e receptores daqueles textos: para tanto a autora lança mão do conceito de “literatura popular”.

Segue assim, o problema da conceituação e do entendimento do que seria o “popular”? Conforme se verá a seguir, para realçar seu argumento Márcia Abreu procura fazer uma história social de autores e receptores do cordel português.

Márcia Abreu narra, por exemplo, que "a primeira notícia que se tem sobre a literatura de cordel lusitana vincula-se ao nome de Gil Vicente, que publicou, sob esta forma [de

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 104, 105.

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cordel], algumas de suas peças". Mesmo após a publicação de suas obras completas, em 1562, as histórias de Gil Vicente continuaram por circular em folhetos, folhas volantes e literatura de cordel, apesar de sua produção se orientar para a encenação na corte, e não para essa publicação barata. Alguns discípulos da "Escola vicentina", como Baltasar Dias, Afonso Álvares e Ribeiro Chiado publicaram sob a forma de literatura de cordel. Baltasar Dias é tido como o autor mais significativo da literatura de cordel portuguesa: natural da ilha da Madeira, ele era cego e pobre. A despeito da existência desse “indivíduo `bicultural´”, "os autores que continuaram a ser editados nos séculos seguintes são, de alguma forma, membros da elite, econômica ou cultural, leiga ou religiosa”, como Dom Francisco Manuel de Melo, Frei Antonio da Estrela e Frei Rodrigues de Deus146.

Alguns cordéis do século XVII que parecem ter tido sucesso, pois eram vendidos por cegos papelistas no início do século XVIII, são "Auto do fidalgo aprendiz", "Trovas da

menina formosa", e "Tratado dos passos que se andam na Quaresma". Foram várias vezes

reeditadas também as obras de Francisco Lopes, como "Auto e colóquio do nascimento de

Cristo" (1646), e "Santo Antônio de Lisboa" (1610)147

.

No século XVIII assiste-se a um reflorescimento dos cordéis, através de traduções de romances tradicionais. Cordéis como "História da donzela Teodora" (1712), "História do

imperador Carlos Magno" (1728), "Princesa Magalona" (1732), e "História de Roberto do Diabo" (1732), sugerem que as traduções desempenham um papel importante no mundo do

cordel. O público tem preferência pelas adaptações, ao "`gosto português´", de autores estrangeiros como Molière:

Além dos textos citados, há, por exemplo, "as comédias `Esgaranelo, ou o casamento por força´, uma imitação de Molière que contou com dez edições lusitanas ou o `Capitão Belizário´ -- traduzido por Nicolau Luis a partir de um original italiano -- variadas vezes publicado nos séculos XVIII e XIX. Corneille, Molière, Voltaire, Goldoni, Metastásio foram traduzidos e adaptados à sociedade"148.

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 27, 28, 35, 39.

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 38.

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Para Márcia Abreu, a diferença entre o cordel português e o folheto brasileiro não está somente na diferença sócio-cultural dos autores, no caso brasileiro criados por poetas quase- analfabetos. A diferença também se evidencia na recepção, ou seja, em leitores de diferentes camadas sociais. Segundo a autora, o século XVIII põe "a dificuldade de se tentar identificar o cordel com uma literatura produzida e consumida pelos setores ditos ‘populares´". Ou seja, atores do teatro, autores e tipógrafos não eram provenientes apenas de baixa condição social. O público consumidor do cordel "não era basicamente popular": "o público do teatro de cordel, ou pelo menos parte dele, era composto pela burguesia urbana"149.

Esse raciocínio de Márcia Abreu, segundo o qual nem todo cordel português (ou nem todo livro azul europeu) é "literatura popular", tem sido amplamente debatido por recentes pesquisas sobre a bibliotèque bleue, como as de Roger Chartier. Destaque-se apenas duas questões que serão desenvolvidas em outra parte:

1] o problema da noção de forma popular de cultura: a autora não explicita ou trabalha esse conceito, que não aparece em sua obra: opta pelo termo “literatura popular”. Ou seja, ao sustentar que nem todo cordel português é "literatura popular", a autora se contrapõe ao folheto do Nordeste do Brasil, criado por poetas quase-analfabetos, e também recebido por leitores semi-analfabetos. A autora parece contrapor cultura dominante e cultura dominada em dois pólos opostos, interpretação que pode gerar problemas, pois lembra uma concepção tradicionalista que via a forma popular de cultura como mero reflexo, ou até mesmo degeneração da cultura letrada;

2] Está fora da perspectiva analítica da autora considerar o uso e universalização do relato oral pelos escritores letrados cultos, em particular espanhóis, dos século XVI e XVII. José Antonio Maravall utiliza-se do conceito de “Barroco” para caracterizar a Espanha dos anos 1600-1640, o império Habsburg do qual Portugal integrara-se desde 1580. Neste período uma renovação cultural é tão evidente, apesar das flagrantes bancarrotas econômicas do império, que a historiografia espanhola não vê contradição em utilizar-se do jargão “o Século

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de Ouro”. Escritores como Cervantes e Lope de Vega utilizaram elevado percentual de relatos orais em suas comédias, o que mostra que o desafio de utilizar a literatura oral não intimidou os escritores do Renascimento. É o caso, por exemplo, de comédias como “Pedro

Urdemales”, de Cervantes.

Em resumo, se no Brasil foi improvável a importação física do livro azul europeu, a circulação da tradição da literatura oral parece ser um fato nas sociedades nas quais a cultura escrita não é predominante150. Seria uma tarefa para os futuros pesquisadores cotejar, portanto, a tradição da literatura oral com os folhetos nordestinos, na busca de evidenciar que os relatos orais foram registrados nos folhetos impressos no Nordeste do Brasil. Neste capítulo pretende-se apenas sugerir uma alternativa de influência do folheto brasileiro não considerada por Márcia Abreu.

Márcia Abreu nota ainda que “o que uniformiza essa produção e que a torna, num certo sentido, popular não é o texto, os autores ou o público e sim a sua materialidade – sua aparência e seu preço”151. Esse tema é, aliás, amplamente analisado por Roger Chartier, para quem:

“Parece claro que a quase totalidade das obras que compõem o fundo francês da livraria de colportage não foi escrita para um tal fim. A bibliothèque bleue é uma fórmula editorial que vai beber no repertório dos textos já publicados, aqueles que mais parecem convir às expectativas do grande público que ela quer atingir. Donde duas precauções necessárias: não tomar os livros de capa azul como `populares´ em si mesmos, pois eles pertencem a todos os gêneros da literatura erudita; considerar que eles já possuíam uma

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Márcia Abreu não desconhece este aspecto, apenas privilegia um viés mais formal do impresso para sua análise Para ela, “As apresentações orais de narrativas, poemas, charadas, disputas não são peculiares ao Nordeste brasileiro. Todos os povos as conhecem, principalmente aqueles nas quais a cultura escrita não é dominante. Índios, negros e portugueses contavam histórias e faziam jogos verbais oralmente, não sendo portanto de estranhar que esta prática tenha se difundido por todo o Brasil, assumindo, entretanto, formas específicas em cada região. No Nordeste têm grande relevância as cantorias, espetáculos que compreendem a apresentação de poemas e desafios. O estilo característico da leitura de folhetos parece ter iniciado seu processo de definição nesse espaço oral, muito antes que a impressão fosse possível”. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 73-74.

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primeira existência editorial, às vezes muito antiga, antes de ter ingressado no repertório de livros para um grande número de leitores”152.

Roger Chartier esclarece, em outra passagem:

“o livro da biblioteca azul se distingue, pois, dos outros, primeiro por seu aspecto físico: é um livro geralmente em rústica, geralmente coberto de papel que, muitas vezes (mas não sempre) é azul. Se distingue também por seu preço”153.

2. CÂMARA CASCUDO E AS ORIGENS IBÉRICAS DO FOLHETO NORDESTINO