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CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

3. CÂMARA CASCUDO E A LITERATURA ORAL

Márcia Abreu conclui sua análise com uma critica a obra “Cinco livros do povo”, estudo de Câmara Cascudo dedicado à transferência do cordel português para o Brasil. Para Márcia Abreu, nenhuma das cinco narrativas mencionadas por Câmara Cascudo faz parte do rol dos folhetos impressos no Nordeste.

Não se pretende resolver aqui essa divergência interpretativa a respeito das origens do folheto brasileiro. Tal confronto só nos interessa na medida em que possa esclarecer nossa hipótese de trabalho sobre as especificidades e características da leitura e das apropriações de Ariano Suassuna. Ou seja, talvez tanto Cascudo quanto Márcia Abreu tenham razão, e a divergência entre ambos possa ser vista como diferentes percepções teóricas do objeto, já que um se preocupa mais com a linguagem, e outro com a forma do cordel. São dois lados da mesma moeda cuja aproximação pode auxiliar na compreensão da obra de Ariano Suassuna.

Como foi visto, Márcia Abreu questionou a origem portuguesa do folheto nordestino, essa tese tida por verdade absoluta em várias áreas, como a História da literatura e a crítica literária.

Câmara Cascudo, um dos maiores defensores da permanência da cultura de Portugal no Brasil, dedicou apenas um livro à tese da proveniência portuguesa do folheto nordestino: o já mencionado “Cinco livros do povo”. A temática do folheto nordestino pouco aparece nos outros três livros do autor dedicados à literatura, quais sejam: “Contos

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tradicionais do Brasil”, “Vaqueiros e cantadores”, e “Literatura oral no Brasil”. Nestes

três livros em que trata do relato oral, Câmara Cascudo sublinha a tese da proeminência da cultura portuguesa no Brasil.

Por exemplo, no livro “Literatura oral no Brasil”, a obra mais elaborada de Câmara Cascudo sobre o tema do relato oral, o problema das origens do folheto do Nordeste aparece no capítulo dedicado a permanência da tradição oral portuguesa no Brasil:

"Há uma literatura popular impressa, literatura de cordel, que os franceses denominam de COLPORTAGE, que Charles Nizard estudou na França e que Teófilo Braga esboçou em Portugal. Ninguém decidiu sobre a velocidade inicial desses livrinhos. Saíram do povo ou foram incluídos, pela leitura, na oralidade anônima? Foram temas dados pelo povo ou constituíram trabalho individual, posteriormente tornado popular? Esses livros vêm do século XV, do século XVI, do século XVII e continuam sendo reimpressos em Portugal e Brasil, com um mercado consumidor como nenhuma glória intelectual letrada ousou possuir".

"Nenhum desses livrinhos deixou de influir, na acepção da simpatia. São lidos, decorados, postos em versos, em música, cantados, nos dois continentes. Alguns pormenores reaparecem numa ou outra estória, mesmo anterior, numa convergência. Essas modificações são índices da popularidade do livro e sua repercussão, entre analfabetos que guardam os tesouros dos contos, facécias, cantigas, fábulas"165.

Ou seja, Cascudo não vê problemas em analisar o folheto impresso em meio a um estudo sobre a literatura oral porque, para ele, o relato oral precedo o texto impresso:

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CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2ª ed., Rio de Janeiro : J. Olympio; Brasília : INL, 1978, p. 170.

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"Não é bem lógico indicar uma fonte impressa como origem duma estória popular. Creio mais num tema anterior que influencia as duas personalidades distintas. Certamente a fonte impressa suprirá as deficiências das falhas na transmissão oral. Ao lado do povo que sabe e conta as estórias de Trancosa e de Fadas, os livros mantém em circulação os mesmos assuntos no público infantil sucessivamente renovado. Sílvio Romero ouviu no Rio de Janeiro `A mulher gaiteira´, XV do CONTOS POPULARES do Brasil. É a Novela XXXV do HEPTAMERON da rainha Margarida de Navarra. Meu tio-avô Martinho Ferreira de Melo contava ter sonhado com uma alma do outro mundo que lhe oferecera um tesouro. Não tendo com que assinalar o depósito, tio Martinho dizia tê-lo feito com as próprias fezes. Neste momento acordou-se. Só a última parte do sonho era verdadeira. Seguramente a tradição verbal dessa anedota fora tornada caso pessoal para maior efeito hilariante. É a nº 129 nas FACEZIE de Poggio, e data de 1450. Gian Francesco Poggio Breacciolini (1380-1459) a retirara do anedotário da época. Uma anedota divulgadíssima no Brasil é inteiramente a novela VI da jornada IX do DECAMERONE, também espalhada no idioma inglês. Geoffrey Chaucer divulgara- a no THE REEVE´S TALE, o conto do Mordomo, o IIIº no CANTERBURY TALES... Minha mãe conta a estória de Valdivinos que morreu assassinado num recanto deserto e duas garças testemunhas denunciaram os matadores. É o tema dos grous de Ibicus, o poema de Antipater de Sidon, (745 dos EPIGRAMAS FUNERÁRIOS) e raro será o sermonário que o não haja registrado. Teria o episódio provindo da forma culta que lhe deu Antipater de Sidon? Não me parece possível ter sido este o seu impulso difusor. Há uma continuidade na transmissão das estórias orais sem prejuízo da fixação culta que também é divulgadora"166.

Apesar da riqueza da linguagem de Câmara Cascudo dar margens a interpretações e leituras excessivamente amplas de sua obra167, sobressai em suas pesquisas uma maior

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CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Op. Cit., p. 14.

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Tornou-se um lugar comum nos textos de crítica literária sobre Ariano Suassuna empregar-se conceitos como feudalismo, senhorio ou medievalismo ao Nordeste brasileiro do século XX. Não escapa a essa regra o excelente trabalho de VASSALLO, Ligia Maria Pondé. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna.

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preocupação com o relato oral, sendo “Cinco livros do povo” uma exceção. Não se quer, com tal constatação, eximir Câmara Cascudo das críticas de Márcia Abreu. Só se pretende acentuar, com isso, que o problema da forma de difusão da literatura oral, tema amplamente estudado por Cascudo, talvez exija outros métodos de análise.

Em seus estudos, Câmara Cascudo também não demonstra maiores preocupações com a relação entre tradição oral e literatura culta: "As duas literaturas raramente têm um canalzinho de comunicação. Vezes esse barro popular vai ao Paço do Rei num Gil Vicente, a mais espantosa síntese do tradicional e folclórico que existe numa literatura qualquer”.Ou seja, a maior preocupação de Cascudo parece ser desvendar os meandros da literatura oral:

"Assim, as estórias mais populares no Brasil, não são as mais regionais ou julgadamente nascidas no país mas aquelas de caráter universal, antigas, seculares, espalhadas por quase toda a superfície da terra. O mesmo para todos os demais gêneros na literatura oral, no plano da tradição e da novidade".

"Não há nessa afirmativa um exclusivismo total. Naturalmente teremos alguma coisa sugestiva e curiosa que não recebemos de fora. Mas, possivelmente, foi feita com elementos importados em sua maioria. A mais alta percentagem viera nas memórias dos colonos, sem pagar direitos alfandegários mas visível em sua procedência alienígena"168.

O conto brasileiro tem, para Cascudo, forte ascendência portuguesa: "a proporção entre os elementos indígenas, africanos e brancos no Folclore brasileiro, é 1.3.5. Contos indígenas e

Rio de Janeiro : Tese de Doutorado em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988, p. 2. Talvez o próprio Câmara Cascudo tenha contribuído para isso, ao pensar uma continuidade secular ininterrupta das estórias orais no Brasil. Segundo ele diz, o "depoimento testemunhal" no Brasil é comum desde os tempos coloniais, já que "a vida nas povoações e fazendas era setecentista nas duas primeiras décadas do século XX", época em que "todos sabiam contar estórias". CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Op. Cit.,

p. 12.

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africanos justapõem-se de maneira indecifrável.... Vezes dispensamos argumentar que o português está na África..."169.

Da perspectiva desta pesquisa permanece o problema de compreender como uma tradição oral européia do século XVI se transfira e permaneça por tanto tempo na cultura brasileira. Para Câmara Cascudo, a passagem da tradição oral portuguesa para o Brasil deu-se através da conquista portuguesa:

"A tradição [da literatura oral portuguesa] manteve no espírito português esse CORPUS. E, no século do Descobrimento, no fecundo século XVI, partindo-se da expedição geográfica de 1501, as estórias populares de Portugal são semeadas no Brasil, para uma floração sem fim...

O português emigrava com o seu mundo na memória. Trazia o lobisomem, a moura encantada, as três cidas de amor, a Maria Sabida, doce na morte, agra na vida, as andanças do Malazarte fura-vida, todo o acervo de estórias, bruxas, fadas, assombrações, homem de sete dentaduras, moleque da carapuça vermelha, hiras, alamoas, cabra-cabriola, gigantes, príncipes, castelos, tesouro enterrado, sonho de aviso, oração-forte, medo do escuro..."170.

Ainda que se reconheça o exagero da frase uma "floração sem fim", pois um conto ter sido tradicional no século XVI não lhe garante a permanência, o fato é que a ascendência da tradição oral sobre o folheto do Nordeste do Brasil é destacada pela própria Márcia Abreu, quando a autora apresenta uma digressão sobre o que ela denomina “espaço de comunicação oral”.

Márcia Abreu nota que as características comuns do cordel português se justificam pela "`descoberta´ de fórmulas de sucesso" comuns as composições orais. Ela acrescenta: "Isso não quer dizer que a literatura de cordel portuguesa seja uma literatura oral. Pelo

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CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil (folclore). Rio de Janeiro : Edições de

Ouro, 1952, p. 20.

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contrário...". Essa é, enfim, uma das poucas passagens em que a autora menciona o aspecto da oralidade. Mas ela não se reporta à literatura oral:

"A aproximação com as narrativas orais é, portanto, parte das estratégias de criação ou de adaptação de narrativas visando a assimilação dos folhetos por públicos não completamente familiarizados com a escrita"171.

Mas a autora procura ressaltar também que os cordéis portugueses não se comportam como narrativas orais.

"os cordéis não se comportam totalmente como narrativas orais, sobretudo do ponto de vista lingüístico: os textos são construídos com períodos longos, com sintaxe distinta da fala coloquial, sem apoios para a memória, como recorrências sonoras ou ritmos marcados"172.

Márcia Abreu vê na cantoria a origem, também, do folheto do Nordeste do Brasil. Desse modo a autora ressalta a importância do espaço de comunicação oral, em que “apresentações orais de narrativas, poemas, charadas” existiu em todas as sociedades, em particular onde a cultura escrita não é dominante. A autora acredita que “o estilo característico da leitura de folhetos parece ter iniciado seu processo de definição nesse espaço oral, muito antes que a impressão fosse possível”173.

Apesar da importância desse “espaço de comunicação oral”, anterior ao folheto impresso no Nordeste, Márcia Abreu não leva adiante o raciocínio para procurar observar as possíveis relações entre o relato oral ibérico e o folheto impresso brasileiro. Isso poderia ressaltar a sobrevivência da literatura oral nos textos letrados, ainda mais quando a própria

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 69, 70, 71.

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 71.

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autora constata que o caráter fortemente oral do folheto nordestino é a sua marca fundamental, "tanto no que tange à composição quanto a transmissão". Nos desafios, saber romances de memória era obrigação de todo cantador174.