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CÂMARA CASCUDO E AS ORIGENS IBÉRICAS DO FOLHETO NORDESTINO As conclusões de Márcia Abreu também evidenciam que há um problema de

CAPÍTULO 2 – TEXTO CULTO E LITERATURA ORAL: LEITURAS E APROPRIAÇÕES

2. CÂMARA CASCUDO E AS ORIGENS IBÉRICAS DO FOLHETO NORDESTINO As conclusões de Márcia Abreu também evidenciam que há um problema de

terminologia e imprecisão conceitual em alguns estudiosos do folclore brasileiro, particularmente nos textos de Câmara Cascudo. Isso é perceptível quando se constata que textos como Lazarillo ou o Quijote não são livros azuis. Tal distinção não é evidente em Câmara Cascudo. Ao abordar tais obras como livros populares, Câmara Cascudo mescla literatura oral com texto culto: a confusão parece ter origem no fato de que tanto Cervantes, quanto o autor anônimo do Lazarillo, utilizaram-se amplamente do relato oral que circulava de boca em boca na Espanha do Renascimento.

Dubiedades como essa talvez tenham gerado algumas generalizações interpretativas nas gerações posteriores à Câmara Cascudo. São tais generalizações, consagradas na obra de Cascudo “Cinco livros do povo”, que Márcia Abreu aparentemente deseja questionar. Neste estudo, Câmara Cascudo sustenta a hipótese da origem ibérica do folheto do Nordeste do Brasil.

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CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília : UnB, 1999, p. 20.

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Esse diálogo não explícito entre Márcia Abreu e Câmara Cascudo evidencia-se quando a autora expõe outras dificuldades para vincular as duas formas literárias.

Ao analisar a remessa de cordéis para o Brasil, através de um "Catálogo para Exame

dos Livros para Saírem do Reino com Destino ao Brasil", do Arquivo Nacional da Torre

do Tombo, Márcia Abreu nota que no "Catálogo" aparecem apenas títulos, e são imprecisos. Não se sabe, pois, se o que veio para o Brasil é livro ou cordel, nem qual edição:

“A história de Carlos Magno, por exemplo, é referida nos pedidos como `Actos de Carlos Magno´, `História de Carlos Magno´, `Carlos Magno em Lisboa´, `Autos de Carlos Magno´, ou simplesmente `Carlos Magno´. Nenhuma destas indicações corresponde a um título de Livros. Corriam em Lisboa a `História do imperador Carlos Magno e dos doze pares da França´, em duas partes, traduzidas por Jerônimo Moreira de Carvalho, além da `Verdadeira terceira parte da história de Carlos de Magno´, escrita por Alexandre C. G. Flaviense e da `História nova do Imperador Carlos Magno´. Apenas esta última foi publicada sob a forma de folheto de cordel, resumindo as aventuras publicadas em livro. É impossível saber que versão era lida no Brasil, embora seja plausível supor que dentre as requisições algumas dissessem respeito ao envio de folhetos e não de livros” 154.

O interessante aqui é que a autora praticamente dialoga com Câmara Cascudo, mas evita o tema das apropriações da literatura oral pela cultura letrada. Embora Márcia Abreu informe que analisa, dentre os livros da literatura de cordel portuguesa, a "parte tida como mais significativa pelo público"155, limita porém seu foco de atenção a algumas obras analisadas por Câmara Cascudo no seu estudo "Cinco livros do Povo". Márcia Abreu exclui, desse modo, o tema da literatura oral, longamente pesquisado por Cascudo, e sintetizado em pelo menos três livros clássicos sobre o relato oral no Brasil.

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 52.

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Márcia Abreu relaciona os títulos presentes no catálogo que talvez sejam cordéis portugueses que vieram para o Brasil. Ela sublinha uma vez mais que não há como provar se tais títulos são de cordeis ou de livros. O problema é que são títulos genéricos, originalmente publicados na forma de livros com "origem letrada", "escritos por autores eruditos, com vistas à circulação entre as elites". Nas palavras da autora:

“Se essa suposição for correta, os cordéis mais enviados ao Brasil narravam as histórias de `Carlos Magno´, `Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno´, `Belizário´, `Magalona´, `D. Pedro´, `Imperatriz Porcina´, `Donzela Teodora´, `Roberto do Diabo`, `Paixão de Cristo´, `D. Inês de Castro´, `João de Calais´, `Santa Bárbara´ e `Reinaldo de Montalvão´. É difícil assegurar que os pedidos se refiram à literatura de cordel, pois todas essas narrativas foram originalmente publicadas sob a forma de livros, escritos por autores eruditos, com vistas à circulação entre as elites” 156.

Para a autora, a transferência do cordel português deu-se somente pela via da importação física do livro azul. Mas por que deixar de lado a hipótese da circulação da literatura oral? Já que o próprio Câmara Cascudo analisa essa possibilidade para justificar essa transferência cultural.

Dos textos mencionados por Márcia Abreu, apenas 3 foram escritos em Portugal: as

Histórias de D. Pedro, Santa Bárbara e a Paixão de Cristo. Todas têm "origem letrada" e

circularam "inicialmente, no interior da `cultura letrada´". Todos esses textos foram, pois, adaptados para a forma de literatura de cordel portuguesa. Márcia Abreu estranha que nenhuma dessas obras "foi [originalmente] composta tendo em vista esse tipo de edição"157 (o cordel português).

Márcia Abreu traz novos elementos a seu argumento quando analisa o enredo dos cordéis portugueses. Segundo ela, em tais enredos há pontos comuns que se repetem de uma história para outra. Por exemplo, o caráter dos personagens fundam-se em inúmeros

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ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 54.

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atributos morais, a trama contrapõe herói x vilão, a narrativa encadeia-se através de ações, e não há ambientação ou cenário. As histórias concentram-se, pois, na luta entre o bem e o mal. No texto "História nova do imperador Carlos Magno e dos doze pares da França", Reinaldos, o benfeitor, é bom e piedoso: tem coragem, lealdade, justiça, fidelidade. Já os reis e imperadores são levados a acreditar naquilo que os malfeitores lhes dizem, e agem de forma equivocada: não têm, portanto, os atributos da dúvida e da reflexão158.

Idêntica caracterização repete-se em "O capitão Belizário". Belizário, herói de Roma, recebe o trono como prêmio após vencer os Persas. O que provoca ciúmes de Filipe (legítimo herdeiro) e Onória, que passam assim a perseguir Belizário e Porcia. Ou seja, enquanto os vilões revelam-se ciumentos, vingativos, rancorosos, mentirosos, os protagonistas são generosos, justos, corajosos, imparciais, benevolentes e fiéis. Já na "História verdadeira da princesa Magalona", o malfeitor é o destino, mas o cordel se caracteriza pela exaltação da retidão moral. Nas outras histórias, enfim, como o "Acto do

infante D. Pedro", a "Astúcias de Bertoldo e Vida de Cacasseno", ou a "História da donzela Teodora", a retidão moral também é exaltada159

.

Para concluir a análise do enredo de alguns dos principais cordéis, Márcia Abreu nota que todas as histórias passam-se entre nobres. Pobres e ricos vivem em comunhão: não há desnível ou desigualdade pois todos vivem em harmonia. E há uma característica que permeia todos os outros cordéis: "Os pobres são felizes quando conhecem seu lugar"160.

Aqui evidencia-se a importância do relato oral ibérico, não considerado pela autora. Por exemplo, o autor anônimo do Lazarillo, além de Cervantes e Lope de Vega, inspiraram-se no conto folclórico de Pedro Urdemales. Trata-se de herói popular cujas principais características são servir mais de um amo e praticar burlas e pequenos furtos para escapar da fome que incomoda seu estômago. É uma característica oposta àquela encontrada no cordel português por Márcia Abreu: qual seja, a harmonia e felicidade dos

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Cf. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 56-59.

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Cf. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 59-63.

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miseráveis. A autora diz, por exemplo: um "caso mais extremo ocorre com Bertoldo, que morre ao aderir a um nível de vida superior ao seu: sua morte é causada pela inadequação de seu organismo às comidas finas"161. Já na literatura oral (ibérica) do século XVI, ao contrário, a sátira é um dos elementos mais destacados pelos estudiosos desse gênero: relatos folclóricos tem caráter familiar e jocoso162. A fome do Lazarillo ou do Sancho são vistas da perspectiva do riso, da sátira. Tais autores fazem assim uma crítica às estruturas sociais sem recorrer à dramatização: contra a feiúra da miséria, da fome, contrapõe-se o antídoto do riso. Considerar o relato oral do Renascimento ibérico poderia, assim, enriquecer a compreensão sobre a natureza da permeabilidade cultural na época Moderna.

Para Márcia Abreu, o cordel português possui também características formais que se repetem. As histórias passam-se, por exemplo, em espaço pouco caracterizado ou indeterminado. Ou seja, a história pode se desenrolar em qualquer espaço. O tempo é também pouco marcado: o passado é indeterminado, quase atemporal. Outro atributo dos cordéis europeus é que não há preocupação com problemas políticos, sociais ou econômicos:

"pode-se pensar que essas histórias retratam um mundo ideal, para o qual não cabe a crítica social, pois nele imperam valores morais claramente delimitados, tem-se certeza de que a justiça será feita, premiando os bons, e onde há uma ordem política também ideal, capaz de unir pobre e ricos na busca da justiça e da bondade. Os cordéis lusitanos, enviados ao Brasil, dizem a seus leitores que não há por que se preocupar com questões políticas, econômicas ou sociais, já que a preocupação central deve ser a busca do Bem"163.

161

Cf. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Op. cit., p. 66.

162

"Os relatos folclórico que nós conseguimos reunir [para o Século de Ouro espanhol] espremendo nos textos são quase todos de caráter familiar jocoso”. CHEVALIER, Maxime. Folklore y literatura. Op. cit., p. 30.

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Os cordéis portugueses também aproximam-se aos contos de fadas: "os valores pregados pelos textos [qualquer época e qualquer local] podem ser entendidos, pelos leitores, como norteadores de conduta no tempo presente"164.