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Burnet: o duplo ensinamento dos acusmáticos e matemáticos

HISTÓRIA DA CRÍTICA: DE ZELLER A KINGSLEY

1.4 Burnet: o duplo ensinamento dos acusmáticos e matemáticos

Iniciador de uma brilhante tradição de scholars anglo-saxões que se dedicaram aos estudos sobre as origens da filosofia antiga, Burnet, em sua obra Early Greek Philo- sophy (1908), é ainda devedor da lectio inaugural operada por Zeller: com efeito, de- senvolve sua teoria tendo como pressuposto a clara separação entre a dimensão religiosa de Pitágoras e o desenvolvimento sucessivo do movimento, assim como certa distância entre as preocupações políticas e aquelas científicas das koinoníai pitagóricas. Sobre esse piso comum, Burnet elabora uma lectio própria que não desdenha as recentes posi- ções menos céticas, como aquela de Rohde (Burnet 1908: 91 n1), inaugurando uma li- nha interpretativa, baseada na célebre distinção no interior do movimento pitagórico, entre os acusmáticos e os matemáticos. Distinção esta que se tornará tradicional na his- tória da crítica e distingue, de um lado, o interesse por parte de alguns nos tabus tradi- cionais de uma religiosidade arcaica (os akoúsmata e sýmbola) e, do outro, a franca de- dicação à pesquisa de princípios científicos, notadamente matemáticos. Distinção, en- fim, já presente nas fontes relacionadas à menção à didaskalía dítton, ao duplo ensina- mento de Pitágoras em Porfírio e à distinção entre os Pitagoréus e os Pitagóristas (estes últimos imitadores dos primeiros, e que corresponderiam aos acusmáticos) em Jâmblico (Porph. VP: 37, Iambl. VP: 80).37 É preciso notar que, apesar de os usos sucessivos des- sa distinção inicial tenderem a sublinhar o gap entre os dois grupos, a bem ver, essa mesma distinção não pressupõe, nas intenções iniciais de Burnet – assim como nas Vi- das anteriormente citadas –, alguma separação definitiva entre dois lados no interior do mesmo pitagorismo das origens. Ao contrário, o mesmo Burnet identifica em dois luga- res pontos de contato: a) na complexa figura do próprio Pitágoras, que estaria na origem

37 Cf. para uma discussão sobre as fontes da distinção entre acusmáticos e matemáticos a seção 1.2, a

de ambas as didaskalíai (Burnet 1908: 107); b) no conceito de kathársis, de purificação, que conecta o aspecto religioso e aquele científico, uma vez que ciência também se tor- na, ela própria, um instrumento de purificação:

Precisamos considerar que há aqui um reavivamento da filosofia reli- giosa, principalmente porque se sugere a ideia de que a filosofia seja acima de tudo um “estilo de vida”. Mesmo a ciência era uma purifica- ção, uma maneira de fugir da “roda”. Esta é a visão expressada tão fortemente no Fédon de Platão, o qual foi escrito sob a influência das doutrinas pitagóricas (Burnet 1908: 89).38

Assim, não é possível concordar com a acusação um tanto sumária de De Vogel, pela qual “Burnet não presta atenção para o caráter ético-religioso do bíos fundado por Pitágoras e para a conexão essencial deste aspecto com os assim chamados princípios científicos” (1964: 11).39 Ao contrário, é exatamente pelo conceito de purificação que essa conexão é afirmada e compreendida em sua profundidade teórica, para além da realidade histórica concreta do movimento.40

Contudo, é certamente merecedora de críticas, em Burnet, uma abordagem for- malmente apriorística da questão das fontes: por ela, tudo o que é arcaico seria religioso, enquanto tudo o que é mais recente seria científico. Assim, o pitagorismo das origens estaria ligado a modos de pensamento primitivos, facilmente detectáveis na tradição dos akoúsmata e sýmbola:

Seria fácil multiplicar as provas de uma conexão próxima entre o pita- gorismo e os modos de pensamento primitivos, mas o que foi dito é já suficiente para nosso propósito. O parentesco de homens e animais, a abstinência da carne e a doutrina da transmigração estão todas juntas e formam um conjunto perfeitamente inteligível (Burnet 1908: 106).41

38 Orig.: “We have to take account of the religious Philosophy as revival here, chiefly because it sug-

gested the view that a philosophy was above all a ‘way of life’. Science too was a ‘purification’, a means of escape from the ‘wheel’. This is the view expressed so strongly in Plato’s Phaedo, which was written under the influence of Pythagorean ideas”.

39 Orig.: “Burnet had no eye for the ethico-religious character of the bíos founded by Pythagoras and for

the essencial connection of this aspect with the so-called scientific principles”.

40 Burnet cita (1908: 98 n3) e desenvolve aqui a intuição sobre a unidade entre ciência e religião pela

kathársis que já havia sido de Döring (1892).

41 Orig.: “It would be easy to multiply proofs of the close connexion between Pythagoreanism and primi-

tive modes of thought, but what has been said is really sufficient for our purpose. The kinship of men and beasts, the abstinence from flesh, and the doctrine of transmigration all hang together and form a perfect- ly intelligible whole”.

O divisor de águas da questão das fontes torna-se, em Burnet, o matemático A- ristoxeno, que inaugura esta distinção entre o grupo mais iluminado da escola e a parte supersticiosa e – daqui para frente – herética do pitagorismo. Nas palavras do próprio Burnet:

À época deles, a parte simplesmente supersticiosa do pitagorismo foi abandonada, com a exceção de alguns zelotas que a direção da Socie- dade recusava-se a reconhecer. Eis porque ele apresenta o próprio Pi- tagóras em luz tão diferente seja das tradições mais antigas como das mais recentes; é porque ele nos concedeu o ponto de vista da seita mais iluminada da Ordem. Aqueles que colaram fielmente às velhas práticas eram agora considerados heréticos, e todo tipo de teorias era colocado na situação de ter de dar razão de sua existência (Burnet 1908: 106).42

A maior purificação é a ciência desinteressada (disinterested science), e, portan- to, o ser humano que a ela se dedicar devotamente, isto é, o filósofo, poderá se livrar do ciclo da geração (1908: 107). Contudo, não foge obviamente a Burnet que a grande questão é quanto dessa visão pós-aristoxênica é atribuível ao próprio Pitágoras:

Seria imprudente afirmar que Pitágoras havia se expressado exata- mente desta maneira; mas todas essas ideias são genuinamente pitagó- ricas, e é somente dessa forma que podemos cobrir a distância que se- para Pitágoras, o homem da ciência, do Pitágoras, o mestre religioso (1908: 107-108).43

A ponte que pretende separar os dois Pitágoras, o homem da ciência e o mestre religioso, é o problema central que acompanha, daqui para frente, a história da crítica do espinhoso problema da complexidade multifacetada do pitagorismo.

Ao mesmo tempo em que Burnet declara a necessidade de superá-la, para encon- trar em Pitágoras a origem das duas vertentes, está de fato pressupondo a existência delas: pois que haja uma distância a ser superada entre pensamento científico e pensa- mento religioso, tanto na antiguidade quanto hoje, é esta mesma uma afirmação a ser

42 Orig.: “in their time, the merely superstitious part of Pythagoreanism had been dropped, except by

some zealots whom the heads of the Society refused to acknowledge. That is why he represents Pythago- ras himself in so different a light from both the older and the later traditions; it is because he gives us the view of the more enlightened sect of the Order. Those who clung faithfully to the old practices were now regarded as heretics, and all manner of theories were set on foot to account for their existence”.

43 Orig.: “It would be rash to say that Pythagoras expressed himself exactly in this manner; but all

these ideas are genuinely Pythagorean, and it is only in some such way that we can bridge the gulf which separates Pythagoras the man of science from Pythagoras the religious teacher”.

provada e, certamente, é um preconceito hermenêutico, tanto amplamente em uso quan- to indemonstrado.

Assim, em conclusão ao seu capítulo dedicado ao pitagorismo, Burnet reconhece ter elaborado sua reconstrução da figura de Pitágoras “simplesmente atribuindo a ele aquelas porções do sistema pitagórico que parecem ser as mais antigas” (1908: 123).44 Todavia, a definição do que é o mais antigo corresponde à quase totalidade do problema a ser enfrentado, e não pode ser resolvida sucintamente com uma cronografia positivis- ta, como Burnet parece querer.

Ainda assim, é o caso de voltar a anotar aqui: o esforço de Burnet para manter juntas as diversas tradições sobre Pitágoras é fundamental para compreender as sucessi- vas intervenções hermenêuticas sobre a literatura pitagórica, que, de Cornford a Guthrie, desenham lentamente o caminho da composição da diversidade de tradições em que tanto a figura de Pitágoras quanto o imediato desenvolvimento do movimento encon- tram-se mergulhados.