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IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE

3.4 Platão e orfismo

O lugar mais generoso de referências e, ao mesmo tempo, mais sensível para a discussão da atribuição das teorias da imortalidade da alma e sua metempsicose ao pita- gorismo é certamente a obra de Platão. Todavia, mesmo o testemunho platônico não está isento de problemas e incertezas. A falta de citações diretas do pitagorismo nos textos platônicos dedicados a essas teorias, por exemplo, consolidou desde cedo uma hipótese pela qual elas se refeririam mais propriamente ao orfismo, em vez do pitago- rismo.269 É obviamente impossível, na economia destas páginas, esgotar exaustivamente as múltiplas facetas da relação entre Platão e o orfismo, que vai bem além da problemá-

268 A esses argumentos, Philip (1966: 156) acrescenta mais um: os vetos alimentares, que aproximam

Empédocles ao pitagorismo, dependem diretamente, a seu ver, da crença na transmigração que ambos partilhariam.

269 Defendem a atribuição das doutrinas ao orfismo Bluck (1964: 274-276), Boyancé (1972: 85 n4); e

tica da imortalidade da alma.270 Será o caso de limitar-se aqui a discutir as relações entre pitagorismo e orfismo no interior da problemática da metempsicose, deixando de lado outras possibilidades de abordagem dessa complexa questão, como aquela cosmológica ou política. Contudo, mesmo para as finalidades mais internas à nossa discussão, será preciso fazer continuamente referência à problemática mais geral.271

A dificuldade de tecer as relações entre Platão, pitagorismo e orfismo, antes mesmo do que nas sempre lembradas características dialógicas da obra platônica ou nas questões apontadas no capítulo anterior a respeito da tradição e sua categorização do pitagorismo, reside mais imediatamente na incerta determinação do que possa ser consi- derado orfismo. Em relação, por exemplo, às fontes literárias para esse assunto, é o pró- prio Platão a revelar a confusão representada pela existência de grande pletora de livros que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp. II, 364e).272 A dificuldade represen- tada pela pseudoepigrafia, comum a toda a literatura antiga, torna-se ainda mais dramá- tica no caso de Orfeu.273 Por outro lado, já Wilamowitz perguntava se o fato de existi- rem obras atribuídas a Orfeu implicava necessariamente também a existência histórica de órficos (1932: 192-199). Sua resposta foi negativa e, desde então, a crítica acostu- mou-se prudentemente a considerar a presença do orfismo no interior da obra platônica como algo indissociavelmente ligado à releitura que Platão teve desse movimento; com isso, porém, acabou por ser negada, em princípio, qualquer possibilidade de Platão ser considerado como fonte confiável para o orfismo pré-platônico.274 Todavia, recentes descobertas arqueológicas, de maneira especial aquela que trouxe à luz o papiro Derve- ni, contribuíram para confundir as águas paradas da tradição interpretativa, apontando

270 É certamente o caso de remeter para isso a Bernabé (1998: 2002 e no prelo). Cf. também Masaracchia

(1993), Brisson (2000b) e Pugliese Carratelli (2001).

271 Cf. acima para uma discussão historiográfica da questão do orfismo e do pitagorismo (1.8).

272 A expressão usada por Platão é βίβλων ὅ αδον: com o termo ὅ αδον a indicar mais propriamente

tumulto, como aquele dos combatentes em batalha (Cf. Il. IX, 573). Outra memória da grande e confusa

literatura atribuída a Orfeu há também no Hipólito de Eurípides (“a fumaça dos muitos escritos”, v. 954).

273 É certamente o caso de recordar a introdução à monografia Orphica de Hermann (1805), um dos pri-

meiros estudiosos modernos do orfismo, que assim começa: “si mea sponte eligendus mihi fuisset scrip-

tor in quo edendo operam meam collocarem, in quemcumque alium facilius quam in Orpheum incidis- sem” (1805: v). A ele ecoa West (1983: 17), quando afirma que aquele de Orfeu foi o nome favorito pelos

poemas pseudoepigráficos de natureza religiosa, metafísica ou esotérica.

274 A posição cética de Brisson é, neste sentido, paradigmática (2000a: 253). Uma saída metodológica

para o problema é certamente aquela proposta por Bernabé (2002: 239): “chaque foi que l´on parle

d´influence orphique chez um auteur, on doit citer des textes soumis à une critique profonde et à une herméneutique minutieuse, pour éviter les lieux communs et les affirmations vides. Le travail reste em grande partie à faire et il est urgent de l´entreprendre”. Mostrar os textos, portanto, eis o imperativo.

para clara anterioridade a Platão de temas e referências órficas, cuja existência pré- platônica era normalmente colocada em dúvida.275

3.4.1 “Compreender o lógos de seu ministério”

Para além das pré-compreensões da crítica e da mais recente documentação ar- queológica, todavia, é, em verdade, ainda o próprio testemunho de Platão a desencorajar um ceticismo exasperado em relação à existência de órficos e de um movimento a estes conexo.276 No Crátilo (400c), Platão refere-se aos oi amphí Orphéa, indicando com a expressão os autores das doutrinas órficas; em República, descreve-os como agyrtái e mantéis, sacerdotes itinerantes e adivinhos (Resp. II, 364b-c), com uma conotação bas- tante negativa, que os autores aproximam facilmente aos orpheotelestai, os iniciados ao orfismo, que aparecem como impostores em autores como Teofrasto, Filodemo e Plu- tarco.277 Um bíos orphikós é lembrando nas Leis (VI, 782c), no contexto da discussão sobre o vegetarianismo. Frequentemente, no interior da obra platônica, é recordada a antiguidade (e, portanto, anterioridade ao próprio Platão) de suas doutrinas;278 assim como são citados ou parafraseados textos órficos.279 É impossível negar, portanto, que órficos e orfismo possuam lugar relevante e bastante significativo no interior do corpus platônico.

No entanto, a presença do orfismo na obra platônica é especialmente visível quando nela se faz referência a teorias sobre a alma. Os diálogos são de fato repletos de mitos, reflexões morais, imagens literárias que pressupõem ou enfrentam diretamente as temáticas relativas à imortalidade e à metempsicose da alma.

É esse certamente o caso de uma celebre página do Mênon, na qual Platão atribui a autoria da teoria metempsicose a “grandes sacerdotes e sacerdotisas, que se preocu- pam em compreender o lógos de seu ministério” (Men. 81a). O conteúdo desse logos é

275 Sobre o papiro Derveni, cf. o que foi dito acima 1.8.

276 Ainda que o termo Ὀρφικοί não seja registrado como tal no interior do corpus platônico, ele já aparece

em Heródoto (II, 81, vide infra).

277 Cf. para as citações Vegetti (1998: 229) e Burkert (1972: 125 n30 e 1982: 4 n13). 278 Cf. Phlb. 66c; Leg. 715e.

explicitamente afirmado em seguida: “ora a alma chega a um seu fim – este que é cha- mado morrer –, ora ela renasce, mas jamais é destruída por completo” (81b). Será o caso de examinar mais de perto a passagem em seu contexto. O tema do diálogo entre Sócra- tes e Mênon verte sobre a virtude, em chave mais propriamente de teoria do conheci- mento. O problema em pauta é aquele de como reconhecer a verdade quando já não a se conheça antes: trata-se da questão, central para a filosofia platônica, da anamnese. Nes- se contexto, Sócrates dialoga com Mênon nos seguintes termos:

SOCR. Pois ouvi dizer de homens e mulheres sábios das coisas divi- nas. MEN. O que eles diziam? SOCR. Coisas verdadeiras – parece-me – bonitas. MEN. Quais? E quem são estes que as falaram? SOCR. Sa- cerdotes e sacerdotisas, que se preocupavam em explicar o lógos do próprio ministério. E estas mesmas coisas [b] diz Píndaro e muitos ou- tros poetas, os poetas divinos. É isso que ele dizem, mas veja se te pa- rece que eles dizem a verdade: dizem, portanto, que a alma humana é imortal, e que ora ela tem seu fim, que se diz morrer, ora renasce, e que jamais é destruída; eis porque – dizem – precisa viver a vida o mais santamente possível.

Pois as almas daqueles de quem aceita expiação por uma antiga falta, Perséfone devolve, no nono ano, ao sol lá de cima. Delas brotam reis ilustres e homens poderosos e excelentes na sabedoria. E pelo resto de seus dias, como heróis imaculados, são invocados pelos homens.

A alma, portanto, por ser imortal e diversas vezes renascida, tendo vis- to o mundo deste e do outro lado, em uma palavra todas as coisas, não deixou de aprender nada. Não deve maravilhar que, portanto, pode chamar à mente novamente o que antes conhecia da virtude e do resto todo. Pois de fato a natureza é congênere (Men. 81a-c).280

280 Orig.: “{Σ‡.} Ἔγωγε· ἀκήκοα γὰρ ἀνδρῶν τε καὶ γυναικῶν σοφῶν περὶ τὰ θεῖα πράγ ατα {ΜΕΝ.} Τίνα λόγον λεγόντων; {Σ‡.} Ἀληθῆ, ἔ οιγε δοκεῖν, καὶ καλόν. {ΜΕΝ.} Τίνα τοῦτον, καὶ τίνες οἱ λέγοντες; {Σ‡.} Οἱ ὲν λέγοντές εἰσι τῶν ἱερέων τε καὶ τῶν ἱερειῶν ὅσοις ε έληκε περὶ ὧν εταχειρίζονται λόγ- ον οἵοις τ' εἶναι διδόναι· λέγει δὲ καὶ Πίνδαρος καὶ ἄλλοι πολλοὶ τῶν ποιητῶν ὅσοι θεῖοί εἰσιν. ἃ δὲ λέγο- υσιν, ταυτί ἐστιν· ἀλλὰ σκόπει εἴ σοι δοκοῦσιν ἀληθῆ λέγειν. φασὶ γὰρ τὴν ψυχὴν τοῦ ἀνθρώπου εἶναι ἀθάνατον, καὶ τοτὲ ὲν τελευτᾶν – ὃ δὴ ἀποθνῄσκειν καλοῦσι – τοτὲ δὲ πάλιν γίγνεσθαι, ἀπόλλυσθαι δ' οὐδέποτε· δεῖν δὴ διὰ ταῦτα ὡς ὁσιώτατα διαβιῶναι τὸν βίον· <οἷσιν> γὰρ ἂν – Φερσεφόνα ποινὰν παλαιοῦ πένθεος δέξεται, εἰς τὸν ὕπερθεν ἅλιον κείνων ἐνάτῳ ἔτεϊ ἀνδιδοῖ ψυχὰς πάλιν, ἐκ τᾶν βασιλῆες ἀγαυοὶ καὶ σθένει κραιπνοὶ σοφίᾳ τε έγιστοι ἄνδρες αὔξοντ'· ἐς δὲ τὸν λοιπὸν χρόνον ἥρωες ἁγνοὶ πρὸς ἀνθρώπων καλεῦνται.

Sócrates, portanto, na passagem acima do Mênon, elabora uma espécie de súmu- la histórico-teorética das teorias da alma, articulando sua imortalidade com a ideia da metempsicose (“ora renasce, e jamais é destruída”). Atribui a autoria desta indiferente- mente a dois sujeitos: antes a “sacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compre- ender o lógos do próprio ministério”, e depois aos poetas divinos, entre eles Píndaro, do qual são também citados alguns versos. Não é difícil imaginar que, em relação aos refe- ridos poetas, Sócrates devesse pensar também em Empédocles.281 A função dialética da citação de Píndaro é fundamentalmente aquela de corroborar a ideia, expressa imedia- tamente antes por Sócrates, da palingênese (pálin gígnesthai) da alma, isto é, de seu nascer novamente (pálin gígnesthai).

Deve-se notar que Platão – no lugar de citar algum poema órfico, que, como vi- mos, certamente deveria conhecer – recorre a versos de Píndaro. É este o primeiro sinal de algo que é, conforme se verá a seguir, uma marca da apropriação da teoria da imorta- lidade da alma pela obra platônica, isto é, de uma provável intenção de Platão de diluir a referência às origens órficas da teoria. Essa escolha platônica é ainda mais significativa se comparada com sua indicação da primeira referência à autoria da teoria, que é aos sacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compreender o lógos do próprio minis- tério. Wilamowitz (1920: II 249) e Burkert (1972: 126) concordam que o objeto desta explicação do lógos (lógon didónai) de suas práticas rituais deva ser a mythología dos rituais ligados à metempsicose: tratar-se-ia, portanto, da exegese dos mitos que acom- panham os rituais de iniciação da alma. A prática é aqui, geralmente, referida a perso- nagens de âmbito pitagórico, contribuindo para recolocarmos Platão como fonte confiá- vel da atribuição de teorias como a da imortalidade e da metempsicose aos pitagóricos antigos.

Prova disso seria a referência a sacerdotisas, em acordo com os diversos teste- munhos que apontam para uma presença significativa e relativamente paritária das mu- Ἅτε οὖν ἡ ψυχὴ ἀθάνατός τε οὖσα καὶ πολλάκις γεγονυῖα, καὶ ἑωρακυῖα καὶ τὰ ἐνθάδε καὶ τὰ ἐν Ἅιδου καὶ πάντα χρή ατα, οὐκ ἔστιν ὅτι οὐ ε άθηκεν· ὥστε οὐδὲν θαυ αστὸν καὶ περὶ ἀρετῆς καὶ περὶ ἄλλων οἷόν τ' εἶναι αὐτὴν ἀνα νησθῆναι, ἅ γε καὶ πρότερον ἠπίστατο. ἅτε γὰρ τῆς φύσεως ἁπάσης συγγενοῦς οὔσης” (Men. 81a-c).

281 O fr. 146 de Empédocles, de maneira especial, revela paralelismo muito significativo com os versos

acima citados de Píndaro: “E, no fim, tornam-se adivinhos e poetas/ médicos e líderes para os homens que habitam a terra/ e deles brotam deuses, excelentes pela honras que recebem” (Orig.: “εἰς δὲ τέλος άντεις τε καὶ ὑ νοπόλοι καὶ ἰητροί καὶ πρό οι ἀνθρώποισιν ἐπιχθονίοισι πέλονται, ἔνθεν ἀναβλαστοῦσι θεοὶ τι ῆισι φέριστοι”).Vejam-se tanto as imagens biológicas para indicar a reencarnação (rebrotam em Pín- daro, brotam em Empédocles), como as referências à excelência dos nobres reis de Píndaro, à qual pode ser comparada a excelência dos πρό οι de Empédocles (Cf. Bluck 1964: 284).

lheres no interior da koinonía pitagórica;282 de fato, Kingsley (1995: 161-162) anota com razão que não há nenhuma tradição que permita considerar os rituais ou a mitologia órfica como inclusivos das mulheres: seria esta, portanto, uma indicação exclusiva do pitagorismo.283 Por outro lado, a ideia da explicação mito-lógica aponta provavelmente para aquela apropriação do orfismo que Pugliese Carratelli (2001: 18), baseando-se na análise das recém-descobertas lâminas órficas, identificava acima como pitagórica.284 Como no caso da citação de Píndaro, portanto, Platão parece aqui querer referir-se mais diretamente àquela parte do complexo universo órfico mais próxima à sua sensibilidade filosófica e religiosa. E, em relação ao que interessa mais diretamente estas páginas, isto é, às teorias da imortalidade da alma e da metempsicose.

O testemunho mais contundente da historicidade dessa imagem de sacerdotes que, para além de cumprirem os ritos, demonstram interesse na sua explicação mitológi- ca, é representado pelo próprio papiro Derveni. O papiro, que se apresenta como uma exegese alegórica de um antigo poema cosmogônico, em busca de uma explicação ale- górica dos mistérios, na coluna XX, empreende uma crítica sarcástica dirigida contra aqueles que não sabem fazer aquilo em que os sacerdotes e sacerdotisas acima citados no Mênon são ditos especialistas. Pois as personagens que são alvos da reprovação do autor do papiro se exibiriam em praça pública com rituais sagrados, mas não saberiam explicar os ritos que performam:

Em relação a estes quantos dos humanos que, nas cidades, realizaram ritos e viram as coisas sagradas, menos me espanto com eles não sabe- rem (pois não é possível escutar e aprender as coisas ditas ao mesmo tempo). Mas quantos (se iniciam) junto a quem faz das coisas sagradas um artifício, estes (são) dignos de espanto e pena. Por um lado, espan- to porque, achando, antes de realizarem o rito, que saberão, partem, tendo realizado os ritos, antes de saberem, nada perguntando, como se soubessem algo do que viram, escutaram e aprenderam. Por outro la- do, pena porque não basta eles gastarem o dinheiro de antemão, mas também partem destituídos de razão. Antes de realizar os ritos das coi-

282 Cf. o que foi dito acima a este respeito (esp. 2.3), assim como De Vogel (1966: 238 n2); Dodds (1951:

175 n59), Burkert (1982: 17-18); Kingsley (1995: 162 n51).

283 Concorda com ele também Long (1948: 68-69). Casadio (1991: 130), porém, protesta que, se as mu-

lheres eram admitidas na comunidade pitagóricas, deviam sê-lo como filósofas, e não sacerdotisas. E Bernabé e Jiménez (2008: 59) apontam para o fato de diversas das mais recentes descobertas de lâminas órficas serem originárias de tumbas de mulheres. O consenso entre os comentadores é mais uma vez dis- tante.

sas sagradas, esperam saber, mas tendo-os realizado, partem destituí- dos também de esperança (P. Derv. XX).285

Da mesma forma como Platão, portanto, o autor do papiro Derveni, ainda que no papel de exegeta órfico, parece tecer críticas a uma parte do mesmo universo órfico que recrimina por não saber explicar os ritos. A esta acusação de incompetência, somam-se outras, entre as quais a de promover tanto certa mercantilização do sagrado, consideran- do a menção a dinheiro cobrado aos fiéis, como a consequente descrença entre os fiéis.

Não surpreenderá, assim, que Platão use esta mesma imagem em uma célebre página de República (364b-c), no contexto da dura crítica a Museu e seu filho, Eumol- po, epônimo dos ierofantes de Eleusis. Platão não esconde críticas aos problemas que a difusão dos mistérios eleusinos estava criando para a cidade (Resp. II, 378a); chega até a fazer uma paródia destes para a iniciação do “homem democrático” (560d-e).286

[Eles] guiam os iniciados para o Hades com seu discurso, preparando para eles um simpósio de piedosos, no qual deitam-se com guirlandas, e daí adiante os fazem passar o tempo todo bebendo, pois acreditam que a melhor recompensa pela virtude seja uma eterna embriaguez (Resp. II, 363c-d).287

Todavia, a passagem que nos interessa mais diretamente é aquela da página se- guinte, na qual Platão descreve com tintas fortes um fenômeno social que devia ser bas- tante difundido naqueles anos, o de sacerdotes e adivinhos andarilhos:

Mas de todos esses discursos os mais surpreendentes são aqueles que fazem sobre os deuses e sobre a virtude, afirmando que os mesmos deuses destinaram para muitos homens bons infelicidade e uma vida ruim, e para quem é a eles contrário, uma contrária sorte. Sacerdotes mendigos e adivinhos, batendo às portas dos ricos, convencem-nos haver neles um poder que provém dos deuses, graças a sacrifícios e encantamentos, para emendar qualquer injustiça cometida pelo indiví- duo ou por seus antepassados, por meio de prazeres e festas. Se al- guém quer prejudicar um inimigo, a troco de uma módica quantia, o convencem que poderá arruinar indiferentemente tanto o justo como o

285 A tradução é de Gazinelli (2007), a partir da proposta de organização do texto e da tradução de Laks e

Most (1997). Cf. original no Anexo 1.

286 Cf. West (1983: 34ss.) e Vegetti (1998: 227 n5).

287 Orig.: “εἰς Ἅιδου γὰρ ἀγαγόντες τῷ λόγῳ καὶ κατακλίναντες καὶ συ πόσιον τῶν ὁσίων κατασκευάσα-

ντες ἐστεφανω ένους ποιοῦσιν τὸν ἅπαντα χρόνον ἤδη διάγειν εθύοντας, ἡγησά ενοι κάλλιστον ἀρετῆς ισθὸν έθην αἰώνιον” (Resp. II, 363c-d).

injusto, e com encantamentos e simpatias persuadir os deuses a se co- locarem a seu serviço (Resp. II, 364b-c).288

A página platônica revela significativamente quadro bastante parecido com a- quele desenhado pela coluna XX do papiro Derveni: os andarilhos retiram da mesma forma a esperança dos fiéis, além de mercantilizarem seus serviços. Pelo fato de esses mesmos sacerdotes e adivinhos, imediatamente depois, exibirem aquela grande pletora de livros que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp. II, 364e), é lectio facilior identificá-los, ao menos parcialmente, com o orfismo. A crítica de Platão não deverá ser considerada, contudo, como uma crítica irrestrita ao orfismo, e sim – como no caso do papiro Derveni – como um posicionamento, quase que uma crítica interna, que implica a escolha de uma parte dele: certamente aquela mais afim à sua sensibilidade, que devia aproximá-lo, como já se acenou acima, mais imediatamente às teorias órfico- pitagóricas, no sentido dado ao termo pela lectio de Pugliese Carratelli (2001).

Por outro lado, a cobrança platônica não é algo inusual. Ao contrário, insere-se naquela que foi definida como uma “permeabilidade consciente” entre téchnai e Natur- philosophie (Gemelli, 2007b) e que é testemunhada pela polivalência – nesse sentido acima descrito – de personagens trágicas como o Prometeu da homônima obra pseudo- esquileia (430 aEC?), que é, ao mesmo tempo, um adivinho e um prótos euretês em disciplinas como a astronomia, a medicina e a matemática. Ou mesmo Melanipe, na homônima tragédia de Eurípides (A sábia Melanipe), que proclama uma cosmogonia pré-socrática, afirmando tê-la apreendido de sua mãe, uma ninfa adivinha (fr. 495 Nauck).

As relações entre orfismo, pitagorismo e Platão, portanto, começam a se delinear de maneira mais clara, no sentido de uma apropriação do primeiro por este último, de certa forma mediada pelo segundo.

Nesse sentido, é certamente o caso de voltar para a página do Mênon (81a-c) com a qual se iniciou esta análise do testemunho de Platão sobre as teorias da alma pi- tagóricas, para anotar dois outros detalhes realmente significativos para a economia da 288 Orig.: “τούτων δὲ πάντων οἱ περὶ θεῶν τε λόγοι καὶ ἀρετῆς θαυ ασιώτατοι λέγονται, ὡς ἄρα καὶ θεοὶ πολλοῖς ὲν ἀγαθοῖς δυστυχίας τε καὶ βίον κακὸν ἔνει αν, τοῖς δ'ἐναντίοις ἐναντίαν οῖραν. ἀγύρται δὲ καὶ άντεις ἐπὶ πλουσίων θύρας ἰόντες πείθουσιν ὡς ἔστι παρὰ σφίσι δύνα ις ἐκ θεῶν ποριζο ένη θυσίαις τε καὶ ἐπῳδαῖς, εἴτε τι ἀδίκη ά του γέγονεν αὐτοῦ ἢ προγόνων, ἀκεῖσθαι εθ' ἡδονῶν τε καὶ ἑορτῶν, ἐάν τέ τινα ἐχθρὸν πη ῆναι ἐθέλῃ, ετὰ σ ικρῶν δαπανῶν ὁ οίως δίκαιον ἀδίκῳ βλάψει ἐπαγωγαῖς τισιν καὶ καταδέσ οις, τοὺς θεούς, ὥς φασιν, πείθοντές σφισιν ὑπηρετεῖν” (Resp. II 364b-c).

interpretação aqui proposta. Primeiramente, a referência, no final dela, à syngéneia da natureza, que remete imediatamente para a ideia do parentesco universal do texto de Porfírio (VP: 19) com o qual começou este capítulo. Esta referência é mais um sinal de que Platão está entendendo remeter as teorias dos sacerdotes e poetas à vertente pitagó- rica do orfismo: não há de fato nenhuma referência na literatura ou nas lâminas órficas à ideia de parentesco universal. Em segundo lugar, é surpreendente a referência ao fato de que esses mesmos sacerdotes e poetas teriam pregado a necessidade de “viver a vida o mais santamente possível”. A admoestação não é de fato necessária à economia da pas- sagem, pois a prova da tese epistemológica da anamnese, que, como vimos, representa o objeto central da passagem, é suficientemente demonstrada já pela pré-existência da alma ao longo de diversas encarnações. E, todavia, Platão parece querer precisar que o movimento da metempsicose deve ser compreendido em sentido fundamentalmente moral. O fato de mais uma vez não termos alguma referência clara a isso nas fontes ór- ficas faz pensar que se trate, neste caso, mais uma vez, de uma variação pitagórica, cer- tamente ao gosto platônico, da teoria da alma imortal.

3.4.2 Hierarquia das encarnações

A apropriação em sentido moral da metempsicose é também atestada em outra tradição sobre a imortalidade da alma, amplamente presente no corpus platônico: aquela da hierarquia das encarnações. Trata-se da célebre lei de Adrasteia, longamente discuti- da por Platão no Fedro, exatamente no contexto da demonstração da imortalidade da alma:

Eis agora a lei imposta por Adrasteia: cada alma que, havendo-se co- locado ao séquito de um deus, contemple alguma das verdades eter- nas, estará livre de padecimentos até o próximo período, e no caso de sempre conseguir esta meta, será livre para sempre. Quanto ao contrá- rio, incapaz de segui-lo, não alcança a contemplação, e por alguma desgraça, fica sobrecarregada por causa do esquecimento e da malda- de que a invadem, enquanto, pesada como está, perde as asas e cai no chão, então a lei diz que esta alma não seja plantada em nenhuma na- tureza animal em sua primeira geração. Ao contrário, aquela que al- cançou uma mais ampla contemplação, plantar-se-á na semente de um homem que será amante da sabedoria, ou amante do belo, ou das Mu- sas ou do amor. Em segundo lugar, na semente de um rei legítimo ou um guerreiro ou um líder corajoso. Em terceiro, na de um político, de

um administrador ou de homem de negócios; em quarto, na semente de um atleta, alguém que se dedica ao esforço, ou de alguém que se dedica à cura dos corpos; em quinto, a uma vida de adivinho ou de al- guém que sabe iniciar-se aos mistérios; ao sexto lugar será convenien- te a vida de um poeta ou de outro homem apto à imitação; na sétima... (Phaedr. 248c-e)289

A imagética da plantação da alma em diversas sementes retoma diretamente os