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Interpretar interpretações: dimensão diacrônica e sincrônica

O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRÁFICA

2.1 Interpretar interpretações: dimensão diacrônica e sincrônica

No início do percurso da história da crítica sobre o pitagorismo, desenhado no capítulo anterior, destacou-se que Zeller já enfrentava o problema da categorização his- toriográfica do pitagorismo – por assim dizer – de peito, ao se perguntar se, no emara- nhado de fontes e tradições, haveria algo no pitagorismo que pudesse ser considerado como um sistema propriamente filosófico e científico (Zeller e Mondolfo 1938: 597).

A suspeita zelleriana, compartilhada, conforme visto, por muitos comentadores que a ele se seguiram, introduz bem aquela que foi prenunciada na Introdução como a problemática central desta tese, isto é, de como deverá ser tratada a diversidade de dou- trinas e experiências que a tradição reuniu debaixo do guarda-chuva histórico-teorético do pitagorismo. Em termos mais precisos, isso significa perguntar-se a que correspon- deria exatamente essa categoria historiográfica que a tradição convencionou chamar de pitagorismo.

A descoberta do alcance histórico e teorético dessa categoria passa por duas di- mensões-chave do problema: uma dimensão que se chamará diacrônica, outra que será identificada como sincrônica. Ainda que complementares, as duas dimensões desenham cada uma um campo de investigação distinto.

Descrever a categoria historiográfica pitagorismo em sua dimensão diacrônica implica seguir seu processo de construção através da história da tradição, desde Platão e Aristóteles até a literatura neoplatônica, em busca de formas e conteúdos que possam indicar continuidade e até mesmo possível homogeneidade.

Seu pressuposto é que, obviamente, não é possível alcançar em última análise um Pitá- goras histórico, ou um pitagorismo das origens, pois essa tradição é virtualmente ine- xistente. Tratar-se-á, portanto, nas palavras de Burkert, de interpretar interpretações:

A primeira coisa a ser feita, uma vez que o fenômeno original não po- de ser alcançado diretamente, é interpretar interpretações, identificar e

destacar as diferentes camadas da tradição e procurar as causas que causaram uma transformação na imagem de Pitágoras (Burkert 1972: 11).128

O esforço da categorização diacrônica do pitagorismo será aquele de destrinchar os diferentes estratos da tradição. Tarefa esta, a bem da verdade, hoje francamente mais fácil do que era no tempo de Zeller, especialmente graças aos avanços dos estudos sobre a tradição acadêmica e peripatética.129

Não será objetivo deste esforço de categorização do pitagorismo tentar reduzir sua característica básica de um movimento filosófico extremamente controvertido (Huffman 2008a: 225). Ao contrário, a proposta é mais propriamente aquela de compre- ender como, na imbricação das dimensões diacrônicas e sincrônicas, a categoria pitago- rismo tem sobrevivido à previsível diluição de um movimento não somente radicalmen- te multifacetado e extensivamente diverso em seus autores e temáticas, mas que, além disso, atravessa diacronicamente mais de mil anos de história do pensamento ocidental. Assim, o desafio da pesquisa e sua originalidade no interior das normais problemáticas da história da filosofia pré-socrática residem no fato de o pitagorismo não ter propria- mente nunca morrido, o que torna ainda mais complicado o trabalho de articulação das notícias advindas da tradição. Para o arqueólogo do pensamento filosófico antigo, como uma cidade que ficou continuamente habitada, o pitagorismo apresenta:

De maneira muito mais complicada do que um lugar destruído por uma única catástrofe e, em seguida, abandonado, a dificuldade especi- al no estudo do pitagorismo vem do fato de que ele nunca morreu co- mo, por exemplo, o sistema de Anaxágoras ou até mesmo aquele de Parmênides (Burkert 1972: 10).130

128 Orig.: “The first task must be, since the original phenomenon cannot be grasped directly, to interpret

interpretations, to single out and identify the different strata of the tradition and to look for the causes that brought transformation to the picture of Pythagoras”.

129 A partir das demonstrações de Jaeger (1948) da existência de projeções sobre o pitagorismo, tanto

acadêmicas como peripatéticas, de seus próprios ideais; assim como dos estudos de Wehrli (1944-1960) sobre Dicearco (1944), Aristoxeno (1945), Clearco (1948), Heráclides (1953) e Eudemo (1955). Não devem ser também esquecidas as fundamentais contribuições para a compreensão da relação entre plato- nismo e pitagorismo que advêm dos trabalhos da assim chamada escola de Tübingen-Milão sobre a dou- trina dos princípios em Platão e na Academia Antiga: cf., para isso, Krämer (1959), Gaiser (1963), Szle- zák (1985), Reale (1991).

130 Orig.: “far more complicated problems than a site destroyed by a single catastrophe and then aban-

doned, the special difficulty in the study of Pythagoreanism comes from the fact that it was never so dead as, for example, the system of Anaxagoras or even that of Parmenides”.

Para que o caminho através das tradições sobre o pitagorismo seja de fato per- corrível, apresenta-se a necessidade de desenhar um percurso metodológico original – uma régua de Lesbos, de aristotélica memória – que se adéque à natureza do objeto a ser pesquisado:

O que a natureza da situação requer é um tratamento do problema tan- to multifacetado quanto for possível. Pois muitas das conclusões con- traditórias resultaram da investigação e do rastreamento do curso de caminhos únicos de desenvolvimento, sem alguma ideia da forma em que estes mesmos pudessem convergir com outras linhas igualmente importantes (Burkert 1972: 12).131

O comentador encontra-se na frente de uma bifurcação que o obriga a uma op- ção metodológica, isto é, ou o pitagorismo será compreendido como uma multifacetada e complexa categoria historiográfica, a ser desenhada acompanhando tanto o longo percurso da história da tradição como a relação desta com o mundo intelectual da filoso- fia que nasce entre os séculos VI e V aEC, ou não será compreendido tout court.

Uma consequência disso é que a abordagem deverá ser necessariamente inter- disciplinar: a normal (ainda que discutível) divisão do trabalho nos estudos clássicos, entre históricos, arqueólogos, filólogos e filósofos, não parece funcionar muito bem no caso do pitagorismo:

Pode acontecer que o historiador da ciência tenha feito sua recons- trução sobre fundamentos filologicamente inadequados; que o filó- logo assuma o resultado aparentemente exato do historiador da ciên- cia; que o filósofo, partindo deste critério, rejeite evidências contra- ditórias – e assim por diante (Burkert 1972: 12).132

Ver-se-á, em muitos casos, a seguir, a importância de uma articulação das in- formações arqueológicas e da abordagem antropológica, de um lado, com a análise filo- lógica, do outro: será este certamente o caso do problema das relações entre orfismo e pitagorismo na Magna Grécia dos séculos VI e V aEC; ou da necessária articulação da

131 Orig.: “What the nature of the situation demands is a many-sided treatment of the problem as is possi-

ble. For many of the contradictory conclusions have come from investigating and tracing the course of single paths of development, with no thought of the way in which these may converge with other, equally important lines”.

132 Orig.: “It can happen that the historian of science builds his reconstruction on a philologically

inadequate foundation; the philologist takes over the seemingly exact result of the historian of science; the philosopher, on the basis of this criterion, rejects contradictory evidence-and so on”.

história da filosofia com a história da ciência antiga, que é especialmente importante para a resolução da pretensa crise dos lógoi incomensuráveis ou irracionais.

Uma polymathía metodológica (pace Heráclito) será, portanto, o caminho ade- quado para que a categoria historiográfica do pitagorismo possa emergir das névoas, tanto de uma complexa história da tradição, como da identificação do que seria filosofia em suas origens.133

Esta última identificação introduz a segunda dimensão do pitagorismo, a dimen- são sincrônica. Compreender sincronicamente o pitagorismo significará fazê-lo caber no interior das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga, e a filosofia pré-socrática de maneira especial. Categorias como pré-socrático, escola, ciên- cia, religião, política, ou até mesmo filosofia (quando distinta de outras atividades inte- lectuais e literárias) são comumente utilizadas para compreender o lugar do pitagorismo em suas origens. Nenhuma dessas categorias normais será obviamente aplicável tout court ao pitagorismo. Ao contrário, ainda que nos limites do objeto aqui desenvolvido, a presente investigação pretende apontar para a necessidade de ajustes na mesma aborda- gem metodológica à filosofia pré-socrática normalmente em uso, com consequências facilmente aplicáveis, portanto, para além do estreito âmbito dos estudos sobre o pitago- rismo antigo. Na linha do que se propõe, por exemplo, Gemelli, que, na introdução à nova edição dos Vorsokratiker (2007b) afirma:

A partir do momento em que se colocam os problemas fora do rígido esquema historicista do necessário progresso do pensamento filosófico e se observam os textos na perspectiva de sua própria tipologia e do contexto pragmático em que foram concebidos, estes adquirem valo- res e significados bem mais complexos do que aqueles da simples “fi- losofia natural” (Gemelli 2007b: 440).134

No caso do pitagorismo, será necessário superar as rígidas dicotomias de uma historiografia demasiadamente acostumada a distinguir, por exemplo, entre ciência e magia, escrita e oralidade, jônicos e itálicos. Pois nenhuma destas, sozinha, parecerá dar

133 Heráclito parece criticar a πολυ αθίη de Pitágoras em seus fragmentos 40 e 129 (22 B 40, 129 DK). 134 Orig.: “Sobald man die Probleme also ausserhalb des starren historistishen Entwurfs Von der unab-

dingbaren Entwicklung des philosophischen Denkens angeht um die Text unter dem Blickwinkel ihrer Typologie sowie des pragmatischen Kontextes, in dem sie abgefasst worden sind, betrachtet, gewinnen sie Bedeutungen und Sinngehalte, die weit komplexer sind als die einfache “Naturphilolophie”.

conta da complexidade com que se apresentam as linhas fundamentais da organização social e da doutrina pitagóricas.

Ambas as dimensões, tanto a sincrônica como a diacrônica, aparecerão forte- mente imbricadas ao longo da tese, operacionalizando a definição de uma categoria his- toriográfica, aquela do pitagorismo, que compreenda a amplidão e a pluralidade da tra- dição em uma imagem que resulte quanto mais possível coerente.

Antes mesmo de adentrar, no capítulo terceiro e no quarto, nas duas questões fundamentais que contribuíram mais decididamente para a definição da categoria histo- riográfica do pitagorismo, será importante verificarmos aquele que pode ser considerado o ponto de partida, a questão vestibular para a historiografia do pitagorismo: a pergunta sobre quem poderia chamar a si mesmo de pitagórico.