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De Burkert a Kingsley: terceira-via e misticismo na tradição pitagórica

HISTÓRIA DA CRÍTICA: DE ZELLER A KINGSLEY

1.8 De Burkert a Kingsley: terceira-via e misticismo na tradição pitagórica

Uma verdadeira terceira-via para a crítica, entre o ceticismo zelleriano (na ver- são extremizada por Frank) e uma excessiva confiança nas fontes que sempre assola os estudiosos menos advertidos do pitagorismo, é constituída pelo trabalho de Walter Bur- kert dedicado ao pitagorismo, Weisheit und Wissenschaft, traduzido posterioremente por sobre a existência real de camponeses em geral. Da mesma forma, portanto, as expressões do tipo οἱ καλ- ού ενοι Πυθαγορείοι deverão ser entendidas como “designations in the currently designated sense” (38).

99 Orig.: “were attracted by the company of various modern philologists, who have been trapped into

accepting some of Frank’s destructive arguments without noticing their intimate dependence upon his unacceptable alternative”. A alternativa à qual os autores se referem, e que constitui um dos pontos fun-

damentais da argumentação de Frank, é aquela entre uma origem grega e uma simples e tardia importação oriental da matemática: Frank optaria obviamente pela segunda. Por consequência: “relying on Frank,

these authors have dismissed the entire tradition about early Greek mathematics, and supplanted it either with a most improbably late transference of Babylonian mathematics to Greece in the Vth century” (San-

tillana e Pitts 1951: 112). Para uma resenha desta questão, cf. Salas (1996). Thesleff (1961; 45) reclama da veemência de Santillana e Pitts, por causa da “ridicularização irreverente” de Frank por parte dos dois autores. Estes de fato afirmaram que, se quisermos ser coerentes com o hipercriticismo de Frank (1951: 116), “we may begin to suspect Frank himself of being an imaginary character in the lost dialogues of

Minar (Burkert 1972) para o inglês e publicado em edição revisada como Lore and Sci- ence in Ancient Pythagoreanism. Ponto de referência obrigatório, desde então, para qualquer percurso crítico dedicado ao estudo do pitagorismo, a obra de Burkert revela, no mesmo processo de sua confecção, o difícil caminho da validação das fontes a serem utilizadas para apresentar a filosofia do pitagorismo. No prefácio à primeira edição de Weisheit und Wissenschaft, em 1962, Burkert revela fundamentalmente uma postura cética em relação à efetiva contribuição do pitagorismo para os avanços da matemática grega antiga, notadamente na questão dos irracionais, referindo a sabedoria dos números pitagóricos a um ambiente intelectual pré-científico:

Nesse período de penúmbra entre antigo e novo, quando os gregos, em um feito historicamente único, estavam descobrindo a interpretação racional do mundo e as ciências naturais quantitativas, Pitágoras re- presenta não a origem do novo, mas a sobrevivência ou o renascimen- to da sabedoria antiga, pré-científica, baseada na autoridade sobre- humana e expressa obligatio ritual! A sabedoria do número é múltipla e mutável (Burkert 1972, Prefácio à edição alemã).100

Ao contrário, no prefácio à edição inglesa, dez anos depois, Burkert é obrigado a reconhecer que – em suas próprias palavras –: “Eu aprendi nestes anos […] sobre a questão da 'descoberta' do irracional, e tomei uma posição que é menos crítica da tradi- ção”.101

Para Burkert, em relação à matemática, existiria um profundo gap entre a ativi- dade dos pitagóricos do século V – relegada ao mundo dos acusmata e da numerologia (ainda que se deva preferir, em âmbito acadêmico, o termo aritmologia, conforme ob- servado por Delatte, 1915) – e aquela dos matemáticos jônicos como Hipócrates de Quios. Assim, para Burkert (1972), o tipo de matemática dos primeiros pitagóricos, in-

100 Orig.: “In that twilight period between old and new, when Greeks, in a historically unique achieve-

ment, were discovering the rational interpretation of the world and quantitative natural science, Pytha- goras represents not the origin of the new, but the survival or revival of ancient, pre-scientific lore, based on superhuman authority and expressed in ritual obligatio! The lore of number is multifarious and chan- geable”.

101 Orig.: “I have learned in these years […] about the question of the ‘Discovery’ of the irrational, I

have taken a stand which is less critical of the tradition”. Não é a intenção, neste momento, dar conta da

ampla tradição crítica sobre a contribuição do pitagorismo para a matemática e sobre o desenvolvimento da teoria dos números no interior da filosofia pitagórica. Estudos clássicos da questão são os de Tannery (1887a; 1887b), Becker (1957), Von Fritz (1945) e, sobretudo, Van der Waerden (1947-1949). Mais re- centemente, podem-se conferir Huffman (1988; 1993; 2005), Zhmud (1989; 1992; 1997), Centrone (1996), Salas (1996) e Casertano (2009). Cf. a seguir, o capítulo quarto, para um desenvolvimento desta questão.

cluindo aqueles do século V (e, portanto, Filolau), de maneira alguma corresponderia ao tipo de exercício dedutivo rigoroso de contemporâneos como Hipócrates de Quios e Teodoro de Cirene: aqui se trataria, ao contrário, de um culto aos números, no contexto dos acusmata, que a tradição continuamente recorda, e que poderá ser assim aproxima- do mais facilmente à numerologia das culturas primitivas.102

Burkert afirma serem as duas preocupações, científico-matemática e numeroló- gica, radicalmente distintas:

Número e ciência matemática não são de maneira alguma equivalen- tes. Números remetem em origem para as névoas dos tempos pré- históricos, mas a ciência matemática, propriamente, não surgiu mais cedo do que na Grécia do século VI ou V. As pessoas conheciam os números antes da matemática stricto sensu; e foi na era pré-científica que surgiu o “misticismo númérico", ou " simbolismo numérico" ou "numerologia", que ainda hoje continua a exercer certa influência. Ninguém pode ignorar o fato de que esse tipo de coisa estava presente no pitagorismo; Aristóteles nomeia em primeiro lugar, entre o omoio-

mata que os pitagóricos acreditavam subsistir entre números e coisas,

a equação de certos números com dikaiosûne, psychê kai nous e kairós (Met 987b: 27ff) e somente com um "além disso" acrescenta a teoria matemática da música (Burkert 1972: 466). 103

É preciso aqui notar que algo de muito significativo acontece na argumentação de Burkert. O ceticismo de marca zelleriana continua inspirando o tratamento das fon- tes: uma atenta e precisa desconstrução da doxografia acaba por chegar ao descrédito de grande parte desta como fonte direta, por indicar claramente sua origem no interior da Academia: Pláton pythagorízei (Platão pitagoriza) é o adágio fundamental que acompa-

102 Não faltaram revisões críticas à postura cética de Burkert a respeito das fontes sobre a contribuição dos

pitagóricos à matemática. Muitas delas serão citadas nos capítulos seguintes, pois constituem um obstácu- lo central para qualquer interpretação do pitagorismo após 1972. Basta, por ora, lembrar a crítica sagaz que Von Fritz faz a ela em sua recensão de Weisheit: “It is not very good method to deny categorically the

occurrence of an event the details of which are reported in a somewhat contradictory manner. If this methodical principle is strictly and consistently applied, it becomes possible to prove that no automobile accident ever happened” (Von Fritz 1964: 461).

103 Orig.: “Number and mathematical science are by no means equivalent. Numbers go back in origin to

the mists of prehistoric times, but mathematical science, properly speaking, did not emerge earlier than sixth- and fifth-century Greece. People knew numbers before mathematics in the strict sense; and it was in the pre-scientific era that the “number mysticism” arose, or “number symbolism” or “numerology”, which continues even now to exert a certain influence. No one could overlook the fact that this kind of thing was present in Pythagoreanism; Aristotle names first of all, among the omoiomata which the Py- thagoreans thought subsisted between numbers and things, the equation of certain numbers with dikai- osûne, psychê kai nous and kairós (Met. 987b:27ff), and only with a “furthermore” goes on to add the mathematical theory of music”.

nha as suspeitas de toda a tradição (desde Met. 987a: 29).104 Daí a dificuldade em admi- tir uma contribuição significativa do pitagorismo aos progressos da matemática do sécu- lo V aEC. A essa pars denstruens da crítica das fontes, em Burkert, segue uma herme- nêutica que, articulando admiravelmente estudos de antropologia religiosa com uma sólida abordagem filológica e historiográfica, leva ao inédito resgate do Pitágoras histó- rico e do protopitagorismo em toda sua componente primitiva, pré-racionalística: Pitá- goras deverá ter sido então um mago e xamã (ainda que cientista, ao menos à maneira dele), baseando esta sua cientificidade em um esforço para dar aquele que, para Burkert, constitui “um passo a mais” (a step beyond). Este passo a mais, que distinguiria Pitágo- ras no interior do mundo mágico-taumatúrgico primitivo, pode ser detectado, por exem- plo, pela presença no interior dos testemunhos mais antigos de noções como as de ka- thársis e de anamnésis (1972: 211).

Na gangorra entre o ceticismo e a confiança nas fontes na qual todo filólogo é obrigado a movimentar-se (“a vida real da filosofia é uma luta entre as tendências a con- fiar na tradição e o ceticismo com respeito à mesma” – reconhece lucidamente Burkert, 1972: 9), acaba por surgir um caminho intermediário, uma terceira via, conforme foi dito, que, ainda que radicalmente cética em relação às fontes acadêmicas, consegue, todavia, desenhar uma imagem historicamente coerente e metodologicamente eficaz das origens do pitagorismo e de seu fundador.105

Certamente, a obra de Burkert, com a vantagem da dupla postura acima dese- nhada, constitui uma pedra fundamental para a história da crítica, como bem nota Von Fritz:

O trabalho apresenta os resultados do maior esforço empreendido para resolver os problemas colocados por uma antiga tradição complicada e confusa, para chegar a uma reconstrução plausível e consistente do pensamento e das doutrinas do próprio Pitágoras (Von Fritz 1964: 459).106

104 O adágio é trasmitido por Eusébio de Cesareia: Πλάτων πυθαγορίζει (Euseb. Prep. Evang. 1903:15,

37, 6).

105 Orig.: “The very life of philology is the struggle between the tendencies toward faith in the tradition

and skepticism of it”.

106 Orig.: “The work presents the results of a most energetic effort to solve the problems posed by a com-

plicated and confused ancient tradition and to arrive at a plausible and consistent reconstruction of the thought and the doctrines of Pythagoras himself”.

Sinal inequívoco do impacto central da obra de Burkert para a história da crítica são certamente as diversas atenções e respostas que mereceu desde sua publicação. Foi especialmente seu ceticismo, mais que a reconstrução de um Pitágoras originalmente xamã, que sofreu as críticas mais precisas. Huffman sugere inicialmente que a atribui- ção a Filolau de uma matemática exclusivamente teológico-numerológica, conforme sugerido por Burkert, não seria um ponto pacífico (Huffman 1988: 3). O mesmo Huff- man reabrirá o caso definitivamente com sua própria monografia dedicada a Filolau (Huffman 1993), dando inversamente a ele um papel proeminente, não já à matemática, e sim à filosofia da matemática antiga: “Filolau merece um lugar de destaque na história da filosofia grega como o primeiro pensador a empregar consciente e tematicamente ideias matemáticas para resolver problemas filosóficos” (Huffman 1988: 2).107

Huffman, ao contrário de Burkert, atribui a Filolau, com base fundamentalmente no fr. 4 (44 B4 DK), uma postura epistemológica, que se utilizaria dos números para compreender a realidade (Huffman 1993: 64ss.) por esta última ser cognocível somente graças às relações aritmo-geométricas.108

Em outra frente, o próprio Minar, tradutor da obra para o inglês, reclama da au- sência de qualquer abordagem à questão social e política (Minar 1964: 121), que se já antiga – como a discussão acima desenvolvida sobre o tema parece indicar –, deverá desempenhar um papel central na reconstrução da filosofia dos primeiros pitagóricos.

Em contrapartida, é exatamente o distanciamento que Burkert consegue estabe- lecer com certa precisão entre as tradições do protopitagorismo e aquelas dos pitagóri- cos em contato com a Academia (especialmente Arquitas) que permite, de certa forma, liberar o campo para os estudos do protopitagorismo como experiência relativamente independente das sucessivas reapropriações dela pela literatura.

O resgate de um pitagorismo das origens como fortemente marcado pelo aspecto místico-religioso é certamente inaugurado por Detienne. Este dedica ao pitagorismo diversas incursões ao longo de sua obra, definida por uma abordagem antropológica e comparativista ao mundo antigo.109 A começar por seu ensaio sobre a poesia filosófica do pitagorismo antigo (1962) que, em busca de relações históricas entre poesia e metafí-

107 Orig.: “Philolaus deserves a prominent place in the history of Greek philosophy as the first thinker

self-consciously and thematically to employ mathematical ideas to solve philosophical problems”.

108 Ver-se-á com mais detalhes esta polêmica no capítulo quarto.

109 Para a síntese madura da abordagem antropológica e comparativista ao mundo antigo de Detienne,

sica, isto é, entre os ambientes dos poetas e dos filósofos antigos, ocupa-se das tradições que remetem à invenção de uma leitura filosófica de Homero e Hesíodo, em âmbito pitagórico. Essa exegese pitagórica inaugura aquela que, somente depois, Platão e Aris- tóteles chamarão de theología:

O trabalho de construção que pressupõe o diálogo entre Homero, He- síodo e Pitágoras define-se fundamentalmente, como vimos, no plano do pensamento religioso. [...] É essencialmente uma "teologia" aquela que os poemas de Homero e Hesíodo representam para os gregos e, em particular, para os pitagóricos (Detienne 1962: 95).110

A tese da leitura teológica dos poetas arcaicos entre os pitagóricos é recuperada por Detienne em relação aos estudos sobre a interpretação demonológica dos versos de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo: sobre a noção de daímon no pitagorismo antigo, Detienne (1963) dedica uma obra inteira, que, em linha com a obra imediatamente pre- cedente, considera que o pitagorismo tenha estabilizado o conceito de daímon, até então extremamente vago, para indicar com ele a intermediação entre homens e deuses. Na exegese pitagórica, portanto, o conceito adquire uma consistência teológico-filosófica que não possuía anteriormente.111 Os sucessivos estudos de Detienne, dedicados às prescrições dietéticas dos pitagóricos (1970; 1972), seguem a mesma linha teórica de considerá-las fundamentalmente uma expressão de sua compreensão da relação com os deuses, em sentido teológico:

O sistema de alimentação determinado pelas principais práticas ali- mentares dos pitagóricos aparece assim como uma linguagem por

110 Orig.: “Le travail de construction que suppose le dialogue entre Homère, Hésiode e Pythagore s’est

defini de plus em plus, nous l’avons vu, sur le plan de la pensée religieuse. [...] C’est essentiellement une “théologie” que les poèmes d’Homère et d’Hésiode représentent pour les Grecs et, en particulier, pour les Pythagoriciens”. A tese fundamental desta obra de Detienne está baseada no testemunho de Neantes,

cf. referido por Porfírio (VP: 1) de uma formação inicial de Pitágoras no âmbito da poesia homérica: Pitágoras teria sido discípulo de Ermodamante, que pertencia a uma família tradicional de rapsodos ho- méricos, os Creofiléus. Isso permite a Detienne afirmar que Samos seria o lugar do primeiro encontro entre poesia e filosofia. Para uma crítica a esse pressuposto e à sucessiva argumentação de Detienne, cf. Feldman (1963: 16) e Pollard (1964: 188).

111 A obra foi precedida por pelo menos dois artigos em que o autor inaugurava a pesquisa e definia suas

linhas fundamentais (Detienne 1959a e 1959b). Para uma crítica à leitura de Detienne, cf. Kerferd (1965), que observa como o conceito de daímon seja, com toda probabilidade, uma atribuição platônica ao pitago- rismo antigo (1965: 78), não permitindo, dessa maneira, sustentar a tese da original conceituação teológi- ca em âmbito protopitagórico. Uma recepção mais calorosa, ainda que reclamando de certa audácia na questão das fontes, lhe é reservada por Vidal-Naquet (1964).

meio da qual este grupo social traduz suas orientações e revela suas contradições (1970: 162).112

Fundamentada na recusa em provocar a morte do animal para o sacrifício, a ritu- alidade da alimentação pitagórica procura instaurar uma comensalidade com os deuses, que, dessa forma, elimina a separação clara dos alimentos divinos e humanos que subjaz ao sacrifício olímpico tradicional, operando uma inversão na antropologia teológica:

De um sacrifício para outro, não somente as oferendas mudam de na- tureza, mas os modos da relação com os deuses se invertem. A inver- são é marcada em especial no caso do estatuto religioso dos cereais. No sacrifício olímpico, são os grãos de trigo e cevada (inteiros) (oulo-

chutai), a serem espargidos sobre as vítimas animais, representando a

alimentação especificamente humana, reservada aos mortais que culti- vam a terra e comem o pão (1970: 152).113

Longe das tentativas teologizantes das expressões da religião pitagórica operadas por Detienne, seguem os estudos de grandes historiadores e arqueólogos da religião antiga. Entre eles: Cumont (1942a;1942b) e Carcopino (1927; 1956) dedicam-se à re- cepção das tradições pitagóricas no interior do simbolismo funerário romano; diversos artigos de Festugière, muitos deles recolhidos finalmente nos Études de religion grec- que e hellenistique (1972), e as duas importantes obras de Lévy (1926; 1927) sobre a lenda de Pitágoras. Todos eles reconhecem, na recepção de motivos pitagóricos no inte- rior das expressões da religiosidade helenística orientalizante, uma continuidade entre pitagorismo antigo e pitagorismo tardio, no que diz respeito às questões religiosas; tanto de fazer pensar em uma espécie de rio subterrâneo de tradições religiosas atribuídas ao pitagorismo que flui ao longo de mais de mil anos (Burkert 1972: 6).114

112 Orig.: “Le systeme des nourritures fernie par les principales pratiques alimentaircs des Pythagorici-

ens apparait done comme un langage a travers le quel ce groupe social traduit ses orientations et revele ses contradictions”.

113 Orig.: “D’un sacrifice a l’autre, non seulement les offrandes change de nature, mais le mode de rela-

tion avec les dieux s’inverse. Le renversement se marque en particulier dans le statut religieux des céréa- les. Dans le sacrifice olympien, es grains d’orge et de ble (entiers) (oulochutai), que les sacrifiants re- pandent sur les victimes animales, represéntent le nourriture spécifiquement humaine, reservee aux mor- tels qui cultivent la terre et mangent le pain”. Da mesma forma, isto é, sublinhando o processo de racio-

nalização teológica, Detienne interpretará as indicações dietéticas pitagóricas relativas ao uso de um tipo especial de alface, que eles chamavam de eunuco. Esta era especialmente indicada para o período estivo, pois suas propriedades diminuíam o desejo sexual, considerado pernicioso à saúde na referida estação, por causa da debilitação provocada pelo forte calor. Evidencia-se aqui um uso dos mitos, neste caso do grupo de mitos relativos aos jardins de Adonis, para fins ético-teológicos (Detienne 1972: 125-130).

114 De grande interesse histórico, além de inequívoco sinal da erudição e do amplo raio de investigação à

qual Lévy dedicava-se, é a coleção póstuma de suas Recherches esséniennes et pythagoriciennes (1965): uma série de ensaios em que o autor dedica-se a desvendar possíveis influências não-judias e, notadamen-

Um capítulo especial dessa relação do pitagorismo com o mundo religioso é cer- tamente aquele das relações perigosas do pitagorismo com o mundo de ritos e mitos que se convencionou reunir debaixo da definição orfismo. A conexão do pitagorismo com o orfismo, para além de estéreis petitiones principii presentistas, que reclamam uma suposta separação entre filosofia e misticismo, é ligada provavelmente a temáticas e experiências específicas, como aquelas relativas à teoria da imortalidade da alma, de maneira especial à metempsicose ou à cosmologia. A segunda metade do século XX marca a descoberta de novos documentos órficos. Uma descoberta que, a bem da verda- de, nunca parou desde a edição moderna dos fragmentos de Kern (1922): entre eles, especialmente as lâminas de ouro (Zuntz 1971; Pugliese Carratelli 2001) e novos papi- ros, especialmente o papiro Derveni, datado do século IV aEC, que contém uma exegese alegórica de um mais antigo poema cosmogônico.115 De especial relevância, pela sobri- edade e o cuidado filológico, é o estudo dedicado às relações entre orfismo e pitagoris- mo por Bernabé (2004), assim como as mais recentes observações sobre o tema em Bernabé-Casadesús (2009).

O revival de estudos que seguiu às descobertas relacionadas anteriormente con- firma, em geral, a profunda relação do orfismo com o dionisismo e o pitagorismo. Pu- gliese Carratelli (2001, 18) propõe uma solução para a eterna questão das modalidades dessas interpenetrações, identificando “um particular caráter conferido ao genuíno or- fismo por uma íntima conexão deste com a escola pitagórica”. Substancialmente basea- do na análise original das lâminas de ouro órficas, a tese de Pugliese Carratelli é de que