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O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRÁFICA

2.2 Identidade pitagórica

A definição da categoria pitagorismo não pode senão começar de uma pergunta que somente na primeira impressão pode parecer simples, mas que, em verdade, se de- monstrará de difícil solução: quem pode ser definido como pitagórico no mundo antigo? Muitos autores, a partir de Aristóteles, tentaram responder a essa pergunta pro- curando um critério temático que permitisse identificar certa unidade doutrinária. É cer- tamente este o caso, há pouco citado, do privilégio concedido por Zeller exatamente à lectio aristotélica sobre os pitagóricos: privilégio este que se tornou, ao longo da história da crítica moderna, um consenso quase indiscutível: pitagórico é alguém que fala de números.

Este critério identitário resistiu majoritariamente até o divisor de águas represen- tado pelo artigo de Zhmud (1989), que revela quanto de circular há na utilização do cri- tério dos números para identificar um pitagórico:

Na grande maioria dos trabalhos sobre o pitagorismo, este problema não é sequer abertamente considerado, e um critério doutrinário é im- plicitamente usado como o principal método de trabalho. Um pitagóri- co é alguém que fala sobre o número. Estamos aqui na frente de uma

óbvia petitio principii: pois aquilo que necessita ele próprio de uma prova é tomado como uma premissa inicial (Zhmud 1989: 272).135

Zhmud volta, com ainda mais força, nessa recusa de um critério doutrinário em sua monografia de 1997, ao ponto de Centrone (1999) observar que a tese deste autor coloca um ponto final na questão, não sendo mais possível identificar um pitagórico pela adesão a uma doutrina:

Uma das teses centrais desta monografia (Zhmud 1997), isto é, a ideia pela qual o critério de identificação de um pitagórico não seria a pro- fissão de uma doutrina filosófica, encontra aqui uma base sólida e bem argumentada, e não penso possa ser colocada novamente em discussão (Centrone 1999; 424).136

Por outro lado, a história da filosofia acostumou-se a utilizar um critério geográ- fico, ao menos desde Diógenes Laércio (D. L. Vitae I. 13-15) para identificar, entre ou- tras escolas filosóficas, aquela itálica ou pitagórica. Depois do fundador, o restante dos pitagóricos é elencado não tanto seguindo um estrito critério doutrinário (como é o caso de Empédocles ou Eudoxo, ou mesmo de Demócrito, cf. D. L. Vitae IX), mas por uma relação pedagógica direta, algum tipo de dependência intelectual de Pitágoras ou outro celebre pitagórico. No caso específico e único do pitagorismo, pela primeira vez, um grupo de filósofos é identificado não a partir de sua coerência doutrinária (physikoí), ou proximidade geográfica (eleatas), mas, sim, a partir do nome de seu fundador: pythago- reíoi.137

Se o que faz alguém pitagórico não é a adesão a uma doutrina, sê-lo-á, então, a adesão a outra grande dimensão que a tradição aponta como essencial para a identifica-

135 Orig.: “in the overwhelming majority of works on Pythagoreanism this problem is not raised openly,

and a doctrinal criterion is implicitly used as the main working method. A Pythagorean is one who speaks about Number. Here we are faced with an obvious petitio principii: that which itself is in need of being proved is taken as a starting premise”.

136 Orig.: “Una delle tesi centrali di questa monografia (Zhmud 1997), e cioè l'idea che il criterio di

individuazione di un pitagorico non consista nella professione di una dottrina filosofica, trova qui un fondamento solido e ben argomentato, e non penso possa più essere rimessa in discussione”. Cf. também

Centrone (2000: 145). Nesse ensaio, Centrone retoma os mesmos argumentos para tratar do que significa ser pitagórico em época imperial.

137 Ainda que em Platão apareçam tanto os Ἀναξαγόρειοι (Crátilo 409b) como os Ἡρακλειτείoi (Teeteto

179e), essas designações não tiveram evidentemente o mesmo sucesso histórico daquela dos pitagóricos. Para uma ampla resenha do uso do termo nas fontes antigas, cf. Minar (1942: 21-22).

ção de um pitagórico, isto é, a do bíos, de determinado estilo de vida, expresso por ako- úsmata e sýmbola, isto é, preceitos ouvidos e sinais de reconhecimento.

Parece ser este o caso do longo catálogo de pitagóricos que Jâmblico insere no final de sua Vida (Iambl. VP: 267) e que, com toda probabilidade, é de origem aristoxê- nica.138 Trata-se de uma longa sequência de 218 nomes, ordenados por um critério geo- gráfico. Destes, a maioria, 34, são tarentinos, como o próprio Aristoxeno.

Entre todos os pitagóricos muitos ficaram anônimos e desconhecidos, de outros ao contrário conhecemos os nomes. De Crotona: Ipostratos, Dimantes, Égon, Émon, Cleóstenes, Ágela, Episilo, Ficiada, Écfanto, Timeu, Butão, Érato, Itaneu, Rodipo, Briantes, Evandro, Milias, An- timedontes, Agea, Leofrontes, Ágilo, Onata, Ipóstenes, Cleofontes, Alcmeon, Dámocles, Milon, Mênon.

De Metaponto: Brontino, Parmisco, [...] De Eleia: Parmênides. De Ta- rento: Filolau, Eurito, Arquitas, Teodoro, [...]. As mulheres pitagóricas mais conhecidas são: Tímica, mulher de Milias, Filtides, filha de Teo- frio de Crotona e irmã de Bindaco, Ocelo e Ecelo, irmãos de Ocelo e Ocilio de Lucânia, Quilónides, filha de Quilon de Esparta, Cratesicleia de Lacônia, esposa de Cleánoros de Esparta, Teano [...] (Iambl VP: 267).139

É significativo notar que, em seu formato de classificação com base geográfica, o catálogo pode ser aproximado ao modelo da tradição epigráfica antiga grega; ao con- trário, o estilo de classificação mais em uso na literatura é construído com base nas rela- ções familiares ou de discipulado, resultando na imagem de uma árvore genealógica. Um exemplo disso é Diógenes Laércio e mesmo no capítulo imediatamente anterior da

138 Com essa identificação, concorda a maioria dos comentadores, a partir de Rohde (1872). Como ele

também Delatte (1922: 182), Zhmud (1988: 273), Centrone (1996: 11), Giangiulio (Pitagora 2000: II 545) e Brisson e Segonds (1996). Burkert (1972:105 n40) afirma: “the only possible candidate for authorship

seems to be Aristoxenus himself, working in the documentary method of the earliest Peripatos”. Já Huff-

man (2008 c) levantou recentemente algumas dúvidas em relação a esta atribuição, que o levam a uma conclusão cautelosa: “is does seem most plausible to assume that Aristoxenus is responsible for the core

odf catalogue, but it is important to recognize both that the arguments for Aristoxenus´s authorship are not ironclad and that, even if the core is assigned to Aristoxenus, this does not mean that the catalogue has not undergone modifications” (Huffman 2008c: 297).

139 Orig.: “ῶν δὲ συ πάντων Πυθαγορείων τοὺς ὲν ἀγνῶτάς τε καὶ ἀνωνύ ους τινὰς πολλοὺς εἰκὸς γεγ- ονέναι, τῶν δὲ γνωριζο ένων ἐστὶ τάδε τὰ ὀνό ατα· Κ ρ ο τ ω ν ι ᾶ τ α ι Ἱππόστρατος, Sύ ας, Αἴγων, Αἵ ων, Σύλλος, Κλεοσθένης, Ἀγέλας, Ἐπίσυλος, Φυκιάδας, Ἔκφαντος, Τί αιος, Βοῦθος, Ἔρατος, Ἰταν- αῖος, Ῥόδιππος, Βρύας, Εὔανδρος, Μυλλίας, Ἀντι έδων, Ἀγέας, Λεόφρων,Ἀγύλος, Ὀνάτας, Ἱπποσθένης, Κλεόφρων, Ἀλκ αίων, Sα οκλῆς, Μίλων, Μένων. Μ ε τ α π ο ν τ ῖ ν ο ι Βροντῖνος, Παρ ίσκος [...] Ἐ λ - ε ά τ η ς Παρ ενίδης. Τ α ρ α ν τ ῖ ν ο ι Φιλόλαος, Εὔρυτος, Ἀρχύτας, Θεόδωρος[…] Πυθαγορίδες δ- ὲ γ υ ν α ῖ κ ε ς αἱ ἐπιφανέσταται· Τι ύχαγυνὴ [ἡ] Μυλλία τοῦ Κροτωνιάτου, Φιλτὺς θυγάτηρ Θεόφριος τοῦ Κροτωνιάτου, Βυνδάκου ἀδελφή, Ὀκκελὼ καὶ Ἐκκελὼ <ἀδελφαὶ Ὀκκέλω καὶ Ὀκκίλω> τῶν Λευκα- νῶν,Χειλωνὶς θυγάτηρ Χείλωνος τοῦ Λακεδαι ονίου, Κρατησίκλεια Λάκαινα γυνὴ Κλεάνορος τοῦ Λακ- εδαι ονίου, Θεανὼ [...]” (Iambl. VP: 267).

própria Vida de Jâmblico (Iambl. VP: 266). Essa particularidade, com a inclusão de 17 mulheres e o desconhecimento de qualquer nome sucessivo ao século IV aEC e de grande parte dos apócrifos da literatura pseudopitagórica helenística (Thesleff 1965), tornam o catálogo um achado, com toda probabilidade muito antigo e extremamente valioso para o objetivo aqui declarado de procurar os critérios de identificação dos pita- góricos. De fato, não há aparentemente qualquer aproximação possível entre pitagóricos como Filolau, de um lado, e Apolônio, do outro, tanto do ponto de vista teorético- doutrinário, como das relações históricas entre eles ou de cada um com Pitágoras. O único critério plausível de sua identificação como pitagóricos torna-se o de uma adesão de cada um, antes que a alguma doutrina específica, a um estilo de vida, a um bíos, que ambos reconhecem como pitagórico. Se é possível concordar com Huffman (1993: 11), quando fala de um estilo de vida que, todavia, “indubitavelmente devia incluir alguns princípios morais como a exortação a viver uma vida simples e a praticar a temperân- cia”, esses princípios morais são tão genéricos ao ponto de, novamente, não poderem constituir propriamente um sinal de distinção do pitagórico com relação ao sophós anti- go em geral. O próprio Hesíodo poderia, com toda probabilidade, compartilhá-los.140

É significativo o insucesso da recente tentativa de formulação, por parte de Huffman, de critérios que permitiriam identificar, no catálogo de Jâmblico – assim co- mo para além dele –, determinado filósofo como pitagórico. Huffman (2008b, 299) pos- tula três destes: a) a existência de um testemunho indiscutível e antigo, isto é anterior ao século IV aEC, de que tal filósofo foi considerado pitagórico; b) evidência indiscutível de que tal filósofo tenha adotado o esquema metafísico básico dos pitagóricos, que Huffman faz coincidir com aquele descrito por Aristóteles e encontrado nos fragmentos de Filolau, e que a seu ver, corresponderia fundamentalmente com a doutrina “tudo po- de ser conhecido através do número”;141 c) evidência de que a personagem está incorpo- rada na tradição biográfica pitagórica, tendo sido discípulo ou interlocutor de algum pitagórico.

Ainda que o esforço de Huffman seja de fato original e louvável, seu resultado não permite chegar àquela “vigorosa” (vigorous) tradição pitagórica (2008c: 301) que o

140 Orig.: “indoubtely also included certain moral principles such as the exortation to live a simple life

and to practice temperance”.

141 A mesma ideia estava já em Huffman (1993: 74). A questão receberá a atenção que certamente merece

autor pretendia. Pois a resposta aos três critérios dependerá ainda e fortemente de uma pré-compreensão – esta sim, discutível – do que seja um testemunho indiscutivelmente antigo (a) ou de qual seja o pretenso esquema metafísico pitagórico (b). O próprio Huffman, ainda que não pelos mesmos motivos agora sugeridos, acaba reconhecendo que uma longa lista de pitagóricos ainda resultaa da aplicação destes critérios “rigoro- sos”. Contudo, essa não passaria de um

reflexo do fato que Pitágoras era famoso por ter deixado atrás dele um estilo de vida, de forma que, junto com pitagóricos de tendência cos- mológica e metafísica, como é o caso de Filolau e Arquitas, existiu grande número de outras figuras que podem ser chamadas de pitagóri- cos simplesmente com base na maneira com que eles viviam suas vi- das (Huffman 2008c: 301).142

Assim, novamente, o critério mais confiável, aquele do bíos conforme transmiti- do pela tradição, exclui qualquer possibilidade de distinção com base nas doutrinas. É, portanto, o caso de concordar com Centrone quando conclui que:

O pitagorismo não surgiu como uma escola filosófica, e não pode ser uma doutrina filosófica o que permite identificar um pitagórico. Um critério mais confiável consistiria em considerar pitagóricos aqueles que a tradição antiga qualifica como discípulos ou sucessores de Pitá- goras. [...] isso exclui a delimitação do fenômeno pitagórico a um âm- bito específico bem preciso ou a uma filosofia monotemática (Centro- ne 1999: 441).143

Dessa forma, autores com interesses que vão da fisiologia à botânica, como é o caso de Alcmeon ou Menestor, podem ser considerados pitagóricos a todos os efeitos.

Porém, a adesão a um particular estilo de vida pressupõe, ao menos em seu mo- mento inaugural pré-socrático, a existência real de uma comunidade que se estrutura a partir do mesmo estilo de vida. Mesmo depois, em idade helenística, quando a definição do bíos poderá ser uma escolha individual, a comunidade dos inícios terá o sentido de

142 Orig.: “reflexion of the fact that Pythagoras was famous for leaving behind him a way of life, so that

in addition to Pythagoreans of a cosmological and metaphysical bent, such as Philolaus and Archytas, there were a number of other figures who can be called Pythagoreans merely on the basis of the way they lived their lives”.

143 Cf. também Zeller e Mondolfo (1938: 434). Orig.: “Il pitagorismo non è sorto come una scuola

filosofica, e non può essere una dottrina filosofica ciò che permette di identificare un pitagorico. Un criterio più affidabile consiste nel considerare pitagorici coloro che la tradizione antica qualifica come discepoli o successori di Pitagora e aderenti all'associazione. […] ciò esclude la delimitazione del fenomeno pitagorico a un ambito scientifico ben preciso o a una filosofia monotematica”.

um modelo distante no tempo a ser seguido.144 Contudo, que tipo de comunidade seria aquela da koinonía pitagórica?

Platão, em República, cita duas vezes nominalmente os pitagóricos: na primeira referência dá a entender que a comunidade compartilhava de um saber privado (idíon):

Mas então, senão na vida pública, ao menos naquela privada se diz que Homero, enquanto era vivo, tenha seguido pessoalmente a educa- ção dos discípulos que amavam sua frequentação e que tenha transmi- tido às futuras gerações certo caminho de vida homérico, da mesma maneira que Pitágoras, que, por esse motivo, foi sobremaneira amado; e seus discípulos até hoje chamam pitagórico este estilo de vida, e por este parecem distinguir-se dos outros (Resp. X: 600b).145

O objeto desta paidéia pitagórica não seria tanto uma doutrina filosófica ou cien- tífica, e, sim, um trópos toû bíos, um estilo de vida. Em sentido contrário, todavia, na segunda referência ao tema, Platão parece querer identificar o pitagorismo com uma escola filosófica e de pesquisa:

É provável que, como os olhos são conformados pela astronomia, as- sim os ouvidos o sejam para o movimento harmônico, e que estas duas ciências sejam de alguma forma irmãs, como afirmam os pitagóricos, e também nós (Resp. VII: 530d).146

A mesma ideia parece estar expressa na página seguinte de República, quando são opostos, de um lado aqueles que torturam as cordas e antepõem os ouvidos ao pen- samento fazendo pesquisas musicológicas empíricas e, do outro, a pesquisa metódica dos pitagóricos (Resp. VII: 531a-d).147

144 Para ampla discussão desta mudança da concepção do bíos em época helenísitica, cf. Vegetti (1989:

271-300).

145 Orig.: “Ἀλλὰ δὴ εἰ ὴ δη οσίᾳ, ἰδίᾳ τισὶν ἡγε ὼν παιδείας αὐτὸς ζῶν λέγεται Ὅ ηρος γενέσθαι, οἳ

ἐκεῖνον ἠγάπων ἐπὶ (b)συνουσίᾳ καὶ τοῖς ὑστέροις ὁδόν τινα παρέδοσαν βίου Ὁ ηρικήν, ὥσπερ Πυθαγ- όρας αὐτός τε διαφερόντως ἐπὶ τούτῳ ἠγαπήθη, καὶ οἱ ὕστεροι ἔτι καὶ νῦν Πυθαγόρειον τρόπον ἐπονο ά- ζοντες τοῦ βίου διαφανεῖς πῃ δοκοῦσιν εἶναι ἐν τοῖς ἄλλοις” (Plato. Resp. X: 600a-b).

146 Orig.: “Κινδυνεύει, ἔφην, ὡς πρὸς ἀστρονο ίαν ὄ ατα πέπηγεν, ὣς πρὸς ἐναρ όνιον φορὰν ὦτα

παγῆναι, καὶ αὗται ἀλλήλων ἀδελφαί τινες αἱ ἐπιστῆ αι εἶναι, ὡς οἵ τε Πυθαγόρειοί φασι καὶ ἡ εῖς” (Plato. Resp. VII, 530d).

147 Cf. para a mesma aproximação entre música e astronomia também Crátilo (405d). Para uma resenha

Um fragmento de Arquitas, cuja autenticidade foi defendida recentemente por Huffman (1985; 2005, 112-114), apresenta a mesma ideia da irmandade entre astronomia e música:

Parece que os que se dedicaram às ciências matemáticas alcançaram bons resultados; e não é estranho que eles raciocinassem apropriada- mente sobre cada coisa, pois, conhecendo bem a natureza do todo, de- viam ver bem, mesmo nas coisas particulares, como estas eram. Assim nos forneceram claras noções a respeito da velocidade dos astros, o amanhecer e o pôr do sol, como também sobre a geometria, a aritméti- ca e não menos sobre a música. Essas ciências parecem de fato serem irmãs (47 B1 DK).148

A aproximação desse fragmento de Arquitas ao segundo testemunho de Platão acima sugere um caminho de solução para a aparente contraditoriedade da tradição pla- tônica: enquanto, na primeira passagem, Platão entenderia referir-se ao protopitagoris- mo, a segunda diria respeito ao pitagorismo a ele contemporâneo, notadamente à figura de Arquitas. Pois, não somente as comunidades pitagóricas já teriam desaparecido após as revoltas antipitagóricas de meados do V século aEC, mas o próprio Arquitas aparece sempre na tradição como um pensador e cientista independente, e, portanto, não utilizá- vel para falar da comunidade pitagórica e seu bíos.149 O que se vê em ação aqui é a di- mensão diacrônica em busca de um caminho pelos diferentes estratos das tradições que contribuem para a definição da categoria historiográfica do pitagorismo.150

Em relação ao testemunho aristotélico, para além da discutida expressão oi kalo- úmenoi pythagoreíoi, mencionada anteriormente, as referências aos contributos pitagó- ricos à matemática e à física (cf. Met. 985b23) fariam pensar em uma identificação prio- ritária do pitagorismo com uma comunidade científica e filosófica. E, todavia, os frag- mentos que restam das obras do corpus aristotélico expressamente dedicadas ao estudo dos pitagóricos (fr. 191-205 Rose) parecem, ao contrário, revelar outras abordagens: 148 Orig.: “Kαλῶς οι δοκοῦντι τοὶ περὶ τὰ αθή ατα διαγνώ εναι, καὶ οὐθὲν ἄτοπον ὀρθῶς αὐτούς, οἷά ἐντι, περὶ ἑκάστων φρονέειν· περὶ γὰρ τᾶς τῶν ὅλων φύσιος καλῶς διαγνόντες ἔ ελλον καὶ περὶ τῶν κατὰ έρος, οἷά ἐντι,καλῶς ὀψεῖσθαι. περί τε δὴ τᾶς τῶν ἄστρων ταχυτᾶτος καὶ ἐπιτολᾶν καὶ δυσίων παρέδω- καν ἁ ῖν σαφῆ διάγνωσιν καὶ περὶ γα ετρίας καὶ ἀριθ ῶν καὶ σφαιρικᾶς καὶοὐχ ἥκιστα περὶ ωσικᾶς. ταῦτα ὰρ τὰ αθή ατα δοκοῦντι ἦ εν ἀδελφεά” (47 B1 DK).

149 Aristóteles, de fato, trata de Arquitas não no interior dos assim chamados pitagóricos, mas dedica ao

filosofo-rei de Tarento uma consideração a parte. Cf. também abaixo (4.1.2).

150 Sobre a autenticidade do fr. 1 de Arquitas, levantaram dúvidas Burkert (1972: 379) e Centrone (1996:

70n 21). Para a ideia da inatualidade de Arquitas para uma discussão sobre a comunidade protopitagórica, cf. Centrone (1996: 70).

Aristóteles se ocupa aqui da vida de Pitágoras e dos akoúsmata e sýmbola que orientam a vida comunitária pitagórica. Célebre é o testemunho do fr. 192 Rose:

Aristóteles em sua obra Sobre a filosofia pitagórica dá notícia do fato de que seus seguidores custodiam entre os segredos mais rígidos esta distinção: dos seres viventes dotados de razão, um é o deus, o outro é o homem, o terceiro possui a natureza de Pitágoras (14 A7 DK = Iam- bl. VP: 31).151

Portanto, mesmo o testemunho de Aristóteles, como é o caso de Platão, não é decisivo para compreender qual seria a característica principal da comunidade, se a da investigação científica ou aquela da vida em comum orientada por akoúsmata e sýmbola.

É provável que a pergunta, feita idealmente a Platão e Aristóteles sobre qual se- ria a característica saliente da koinonía pitagórica, seja de fato mal colocada. A aporía sugere que seja preciso, portanto, por um lado, rever metodologicamente a própria ten- tativa de separação entre as duas alternativas, por outro, retomar a busca pelas modali- dades dessa comunidade de um ponto de vista textual alternativo.