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IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE

3.6 Lendas sobre a imortalidade

A mesma ironia é evidente na história de Zalmoxis lembrada por Heródoto (Hist. IV, 94-96): trata-se aqui da saga do deus trácio Zalmoxis, para o qual os Getas (que são definidos pelo historiador athanatízontas, “convencidos de serem imortais”) acreditam irem os que estariam a ponto de morrer. Para este deus, realizam rituais de sacrifícios humanos, com a esperança de que o sacrificado entre em contato com o deus, obvia- mente após a morte. O contexto deste culto é evidentemente aquele das tradições da imortalidade da alma e do journey model acima citado, isto é, das viagens para o além- túmulo. Por esse motivo, provavelmente, Heródoto, após a descrição dos rituais sacrifi- cais, recorda uma lenda pela qual Zalmoxis teria sido, em verdade, servo de Pitágoras:

Liberto, ganhou grandes riquezas, e então voltou para sua pátria; mas como os trácios conheciam uma vida pobre e simples, o tal Zalmoxis, que havia conhecido o teor de vida dos jônicos e hábitos mais refina- dos daqueles dos trácios, pois havia frequentado os gregos, e entre e- les não o mais insignificante, isto é, o sábio Pitágoras, filho de Mne- sarco, mandou construir uma sala, e nela recebendo os dignatários a banquete, ensinava que nem ele mesmo, nem seus comensais, nem se- quer os seus descendentes todos iriam morrer, mas que iriam para um lugar onde sobreviveriam e teriam todo tipo de benesses. Enquanto di- zia e fazia isso que narrei, mandou construir uma casa subterrânea; quando ela foi completada, desapareceu da vista dos trácios, que se lamentavam e o choravam como se tivesse morrido. Mas após quatro anos Zalmoxis reapareceu na frente deles, confirmando dessa maneira o que ele havia afirmado (Herodt. Hist. IV: 95).343

342 O valor do testemunho de Isócrates é, contudo, colocado em dúvida por Ries (1961), que detecta forte

influência acadêmica sobre a tradição.

343 Orig.: “τὸν Σάλ οξιν τοῦτον ἐόντα ἄνθρωπον δουλεῦσαι ἐν Σά ῳ, δουλεῦσαι δὲ Πυθαγόρῃ τῷ Μνη- σάρχου· ἐνθεῦτεν δὲ αὐτὸν γενό ενον ἐλεύθερον χρή ατα κτήσασθαι συχνά, κτησά ενον δὲ ἀπελθεῖν ἐς τὴν ἑωυτοῦ. Ἅτε δὲ κακοβίων τε ἐόντων τῶν Θρηίκων καὶ ὑπαφρονεστέρων, τὸν Σάλ οξιν τοῦτον ἐπιστ- ά ενον δίαιτάν τε Ἰάδα καὶ ἤθεα βαθύτερα ἢ κατὰ Θρήικας, οἷα Ἕλλησί τε ὁ ιλήσαντα καὶ Ἑλλήνων οὐ τῷ ἀσθενεστάτῳ σοφιστῇ Πυθαγόρῃ, κατασκευάσασθαι ἀνδρεῶνα, ἐς τὸν πανδοκεύοντα τῶν ἀστῶν τοὺς ρώτους καὶ εὐωχέοντα ἀναδιδάσκειν ὡς οὔτε αὐτὸς οὔτε οἱ συ πόται αὐτοῦ οὔτε οἱ ἐκ τούτων αἰεὶ γινό - ενοι ἀποθανέονται, ἀλλ' ἥξουσι ἐς χῶρον τοῦτον ἵνα αἰεὶ περιεόντες ἕξουσι τὰ πάντα ἀγαθά. Ἐν ᾧ δὲ ἐποίεε τὰ καταλεχθέντα καὶ ἔλεγε ταῦτα, ἐν τούτῳ κατάγαιον οἴκη α ἐποιέετο. Ὡς δέ οἱ παντελέω εἶχε τὸ οἴκη α, ἐκ ὲν τῶν Θρηίκων ἠφανίσθη, καταβὰς δὲ κάτω ἐς τὸ κατάγαιον οἴκη α διαιτᾶτο ἐπ' ἔτεα τρία. Οἱ δέ ιν ἐπόθεόν τε καὶ ἐπένθεον ὡς τεθνεῶτα. Τετάρτῳ δὲ ἔτεϊ ἐφάνη τοῖσι Θρήιξι, καὶ οὕτω πιθανά σφι γένετο τὰ ἔλεγε ὁ Σάλ οξις” (Herodt. Hist. IV, 95).

Para além do motivo etnocêntrico, que tende a diminuir a divindade dos Getas com a sugestão de que Zalmoxis, na Grécia, havia sido não somente um homem, mas até um escravo, a passagem de Heródoto revela-se, com todo o sarcasmo do qual o his- toriador é capaz, uma sátira das tradições ligadas à katábasis. A morte aparente de Za- moxis, de fato, não passa de um truque, na tentativa de convercer seus concidadãos de sua imortalidade. A remissão indireta aqui à figura de Pitágoras é certamente significa- tiva: como a dizer que, ao falar de imortalidade da alma, ele é a referência imediata.

De fato, a temática da imortalidade e a figura carismática de Pitágoras, de certa forma, favorecem o surgimento de amplo leque de histórias legendárias a este respei- to.344 Como é de se esperar, essas lendas não recolheram muito entusiasmo no interior da crítica atual, ainda que – é certamente o caso de concordar com Burkert (1972: 137) – correspondam de fato ao estrato mais antigo da tradição sobre Pitágoras, sendo anteri- ores a qualquer outra informação sobre a vida dele que encontramos em Aristoxeno ou Dicearco, por sua vez fontes das Vidas pitagóricas de época imperial. Essa tradição len- dária concentra-se especialmente em um tópico, que devia chamar bastante a atenção, que é aquele das efetivas metempsicoses de Pitágoras. Esse interesse pela história da alma de Pitágoras foi compreendido, já desde a antiguidade (Porph. VP: 26 e Diod. Sic. X 6,1) como uma exemplificação, na pele do fundador, da própria doutrina da transmi- gração da alma. Nesse sentido, parte da crítica moderna começou a considerar essa lite- ratura como um testemunho da sua originalidade.345

A fonte mais significativa destas lendas é Heráclides Pôntico, um peripatético, que recorda a história da palingênse de Pitágoras assim:

Heráclides Pôntico refere que Pitágoras costumava dizer de si mesmo o seguinte: que uma vez havia sido Etálides, e que havia sido conside- rado filho de Hermes. O próprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse, fora a imortalidade. Ele então pediu para manter, tanto em vida como na morte, memória dos acontecimentos. Assim, quando vi- vo lembrava de tudo, e depois de morto conservava as mesmas lem- branças. Algum tempo depois, foi para [o corpo de] Euforbo e foi fe-

344 Cf. para um estudo sobre as fontes das lendas de Pitágoras Lévy (1926). Uma discussão filosoficamen-

te brilhante e filologicamente cuidadosa dessa literatura é também contida na excelente monografia de Biondi (2009) dedicada a Pitágoras-Euforbo.

345 Cf. Riedweg 2006: 115. É também o caso de Timpanaro Cardini (1958-62: I, 5): “Pitagora crede nella

metempsicose perchè crede nella sua metempsicose”, e de Burkert (1972: 147). De ideia contrária Rohde

rido por Menelau. Euforbo, de sua parte, costumava dizer que uma vez havia sido Etálides, e tinha obtido este dom de Hermes, e narrava as peregrinações de sua alma, como transmigrou, e em quantas plantas e animais foi residir, e quantos sofrimentos a alma havia padecido no Hades. Morto Euforbo, sua alma transmigrou para Ermotimo, que, de- sejando dar uma prova disso, dirigiu-se para os Brânquides, e, entran- do no templo de Apolo, soube indicar o escudo que Menelau havia pendurado como oferenda votiva (D.L. VIII, 4-5 // Heraclid. fr. 89 Wehrli).346

A escassa probabilidade de Diógenes Láercio expungir a lenda diretamente de um diálogo de Heráclides Pôntico (pois não cita algum texto específico para isso) faz pensar em uma leitura doxográfica, isto é, de segunda mão, desta tradição. Por outro lado, diversas variantes da mesma genealogia da alma de Pitágoras são registradas na literatura antiga: em todas elas, o elemento comum é a reencarnação em Euforbo.347 Já Corssen (1912: 22) considerava esta presença de Euforbo incompreensível. Por qual motivo Pitágoras teria escolhido como etapa central da transmigração uma personagem tão secundária da história da guerra de Troia? A resposta tradicionalmente dada, na es- teira de Kerényi (1950), é que a figura de Euforbo estaria diretamente relacionada a Apolo, aliás seria uma espécie de encarnação dele (Burkert 1972: 141). De fato, Ried- weg (2002: 51) e Biondi (2009: 67) concordam que Euforbo desempenha papel dramá- tico decisivo no interior da trama da Ilíada: contribui para a morte de Pátroclo, que tem como consequência o retorno de Aquiles para a luta. Euforbo, ajudado e precedido por Apolo, que cansa e desarticula os membros de Pátroclo, desfere o primeiro golpe no guerreiro aqueu (Il. 16, 805-815). Seria, por consequência, esta estreita relação com

346 Orig.: “Τοῦτόν φησιν Ἡρακλείδης ὁ Ποντικὸς περὶ αὑτοῦ τάδε λέγειν, ὡς εἴη ποτὲ γεγονὼς Αἰθαλίδης καὶ Ἑρ οῦ υἱὸς νο ισθείη· τὸν δὲ Ἑρ ῆν εἰπεῖν αὐτῷ ἑλέσθαι ὅ τι ἂν βούληται πλὴν ἀθανασίας. αἰτήσα- σθαι οὖν ζῶντα καὶ τελευτῶντα νή ην ἔχειν τῶν συ βαινόντων. ἐν ὲν οὖν τῇ ζωῇ πάντων δια νη ονε- ῦσαι, ἐπεὶ δὲ ἀποθάνοι τηρῆσαι τὴν αὐτὴν νή ην. χρόνῳ δ' ὕστερον εἰς Εὔφορβον ἐλθεῖν καὶ ὑπὸ Μενέ- λεω τρωθῆναι. ὁ δ' Εὔφορβος ἔλεγεν ὡς Αἰθαλίδης ποτὲ γεγόνοι καὶ ὅτι παρ' Ἑρ οῦ τὸ δῶρον λάβοι καὶ τὴν τῆς ψυχῆς περιπόλησιν, ὡς περιεπολήθη καὶ εἰς ὅσα φυτὰ καὶ ζῷα παρεγένετο καὶ ὅσα ἡ ψυχὴ ἐν τῷ Ἅιδῃ ἔπαθε καὶ αἱ λοιπαὶ τίνα ὑπο ένουσιν. ἐπειδὴ δὲ Εὔφορβος ἀποθάνοι, εταβῆναι τὴν ψυχὴν αὐτοῦ εἰς Ἑρ ότι ον, ὃς καὶ αὐτὸς πίστιν θέλων δοῦναι ἐπανῆλθεν εἰς Βραγχίδας καὶ εἰσελθὼν εἰς τὸ τοῦ Ἀπό- λλωνος ἱερὸν ἐπέδειξεν ἣν Μενέλαος ἀνέθηκεν ἀσπίδα” (D. L. VIII, 4-5 // Heraclid. fr. 89 Wehrli).

347 Cf. para as citações Delatte (1922: 154-159), Burkert (1972: 138-141), Federico (2000: 372 n15) e

Apolo a fazer pender a escolha para Euforbo.348 A prova disso é que o escudo de Mene- lau encontra-se, na tradição acima de Heráclides, no templo, mais uma vez, de Apolo.349

A escassa atenção às lendas sobre Pitágoras, como dizíamos, não deve fazer es- quecer que, em relação a elas, nossa fonte mais importante é do século IV aEC: o pró- prio Aristóteles e seu livro sobre o pitagorismo (fr. 191 Rose). Nesse material, aparecem diversas lendas sobre milagres e prodígios operados por Pitágoras: as mirabilia incluíam experiências de ubiquidade, diálogos com um rio, adivinhação, e a significativa referên- cia a Pitágoras como ao próprio Apolo. A economia destas páginas não permite uma análise exaustiva destas passagens aristotélicas, obviamente. É o caso de concordar, mais uma vez, com a cuidadosa análise de Burkert (1972: 145) a esse respeito, pela qual essas lendas devem ser consideradas congruentes com o clima do século IV aEC, e que somente nos séculos sucessivos seriam usadas como motivo de chacota e crítica ao pita- gorismo. O valor dessas tradições é ainda mais importante quando se considera a inten- ção geralmente demonstrada por Aristóteles de separar o protopitagorismo da sua plato- nização, operada pela Academia, que – entre outras coisas – teria reduzido Pitágoras a um alterego do próprio Platão.350 O registro aristotélico das lendas teria autoridade, mo- tivos e antiguidade suficientes para ser levado a sério. Em última análise, portanto, Pitá- goras e sua lenda não podem ser separados.351

Entre todas as referências aos mirabilia, é ainda a temática da morte aparente a parecer estar bastante presente na literatura do período, se é verdade que a ela se faz referência na Electra de Sófocles: “Pois há muito tempo eu vi homens sábios que dizi- am, falsamente, terem morrido. E em seguida, uma vez voltados para casa, eram recebi-

348 Centrone (1996: 64) anota com razão que o culto a Apolo era muito difundido nas cidades pitagóricas

de Crotona e Metaponto. Cf. também Iambl. VP 52.

349 Instigante, ainda que troppo alegórica, é também a leitura que Biondi (2009: 77) propõe da passagem

da Ilíada acima citada: “è l´intervento di Euforbo che svela l´identità autentica di colui che sembrava

Achille: se l´armatura simboleggia il corpo, allora l´indifesa nudità rappresenta l´anima; dunque l´azione di Euforbo potrebbe effettivamente significare, al di là della lettera del testo omerico, lo svelamento dell´anima e la punizione della sua tracotanza”.

350 Cf. Burkert (1972: 146), além do que foi dito acima (1.7) para o uso do pitagorismo no interior da

polêmica antiacadêmica de Aristóteles.

351 Cf. Burkert (1972: 120) para uma discussão metodológica da dificuldade que resulta desta afirmação.

De ideia contrária Casertano (2009: 59), mas por considerar como lendas somente aquelas do segredo sobre as doutrinas e da estrutura da comunidade.

dos com grandes honras” (Soph. El. 62-64).352 O escoliasta anotava significativamente uma referência a Pitágoras ao lado desta passagem (Schol. In Soph. 62).