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Cornford e Guthrie: em busca da unidade entre ciência e religião

HISTÓRIA DA CRÍTICA: DE ZELLER A KINGSLEY

1.5 Cornford e Guthrie: em busca da unidade entre ciência e religião

Em um artigo, publicado em duas partes sucessivas, na Classical Quarterly (em 1922 e 1923), intitulado significativamente Mysticism and Science in the Pythagorean Tradition, Cornford aborda a questão, de certa forma deixada em aberto por Burnet, da correta abordagem das relações entre religiosidade e interesses científicos no pitagoris- mo, evitando reducionismos e anacronismos de matriz positivista que este último apa- rentemente não teria conseguido evitar. Os dois artigos seguem de perto a já consolida- da perspectiva historiográfica do autor inglês: em sua obra inaugural sobre as complexas relações entre mito e história em Tucídides, Thucydides Mythistoricus (1907), o objeti- vo é o de afastar-se das tendências da história moderna, que seria vítima da típica “falá- cia modernista”, por projetar na obra do historiador ateniense noções de cientificidade derivadas em seus fundamentos da biologia darwiniana e da física contemporânea.45

44 Orig.: “simply assigned to him those portions of the Pythagorean system which appear to be the old-

est”.

45 Para uma análise mais ampla desta obra, assim como da posição historiográfica de Cornford, cf. Murari

Sobre esse pano de fundo teórico, Cornford enfrenta a vexata quaestio da pre- sença, nos séculos VI e V aEC, de dois “sistemas de pensamento diferentes e radical- mente opostos elaborados no interior da escola pitagórica. Eles podem ser chamados respectivamente de sistema místico e sistema científico” (Cornford 1922: 137).46 En- quanto todas as tentativas hermenêuticas a ele contemporâneas procuram articular os dois sistemas em uma imagem coerente do movimento, Cornford reconhece haver certa confusão entre os dois sistemas. Essa confusão é já perceptível nas obras de Aristóteles e precisará ser desvendada. A solução proposta por Cornford é a de distinguir, no interi- or do pitagorismo, dois momentos históricos diferentes e sucessivos, cujo divisor de águas – no começo do século V aEC– seria a polêmica eleática contra a derivação da multiplicidade da realidade de uma única arché. Cornford resume da seguinte forma a imagem do pitagorismo que resulta dividido por essa polêmica:

Podemos, em uma palavra, distinguir entre (1) o sistema original de Pitágoras, datado no século VI, criticado por Parmênides – o sistema místico e (2) o pluralismo datado no século V, construído para con- frontar as objeções de Parmênides, e por sua vez criticado por Zenão – o sistema científico, que pode ser chamado de “atomismo numérico” (Cornford 1922: 137).47

Essa divisão entre misticismo e ciência no pitagorismo encontra-se apenas apa- rentemente em continuidade com a separação entre religião e ciência proposta por Bur- net. De fato, imediatamente após indicar a separação acima descrita, Cornford anota que há um terceiro momento do pitagorismo, aquele de Filolau, que também pertence à margem mística, mas que se coloca cronologicamente mais tarde:

Há também (3) o sistema de Filolau, que pertence ao lado místico da tradição, e procura acomodar a teoria dos elementos empedocleia. Es- te, para nossos atuais propósitos, pode ser deixado de lado (Cornford 1922: 137).48

46 Orig.: “different and radically opposed systems of thought elaborated within the Pythagorean school.

They may be called respectively the mystical system and the scientific”.

47 Orig.: “We can, in a word, distinguish between (1) the original sixth-century system of Pythagoras,

criticized by Parmenides – the mystical system, and (2) the fifth-century pluralism constructed to meet Parmenides’ objections, and criticized in turn by Zeno – the scientific system, which may be called ‘Num- ber-atomism’”.

48 Orig.: “There is also (3) the system of Philolaus, which belongs to the mystical side of the tradition,

and seeks to accommodate the Empedoclean theory of elements. This may, for our present purpose, be neglected”.

O ponto mais significativo aqui é a sutil mudança de perspectiva – no interior da história da crítica – que esta divisão de Cornford representa: colocando a ênfase da dis- tinção entre as duas margens do pitagorismo no debate histórico com o eleatismo, retira- se o apriorismo – acima citado – que postula uma anterioridade da religiosidade à ciên- cia. Com efeito, ao descrever o lado místico do movimento, Cornford afirma britanica- mente – é mesmo o caso de dizer – sua “não evidente inconsistência” com a filosofia:

Toda tentativa de resgatar o sistema original do fundador deverá, eu diria necessariamente, basear-se no pressuposto pelo qual sua filosofia e cosmologia não estariam evidentemente inconsistentes com sua reli- gião (Cornford 1922: 138).49

Com um argumento francamente antievolucionista, Cornford afirma, portanto, que, diferentemente da primeira fase jônica da filosofia em suas origens, em que o ele- mento religioso havia sido deixado de lado, nesse segundo momento itálico recupera-se a dimensão religiosa da vida filosófica:

É óbvio que a tradição filosófica itálica difere radicamente daquela jô- nica com respeito à sua relação com a crença religiosa. Diferentemen- te dos Jônicos, ela começa não pela eliminação dos fatores que uma vez possuíam significado religioso, mas ao contrário com uma recons- trução da vida relgiosa. Para Pitágoras, conforme é admissão geral, o amor pela sabedoria, a filosofia, era um estilo de vida. Pitágoras foi tanto um grande reformador religioso, o profeta de uma sociedade congregada pela reverência à sua memória e pela observância de uma regra monástica, e também um homem de excepcionais poderes inte- lectuais, em destaque entre os fundadores da ciência matemática (Cornford 1922: 138-139).50

Assim, a figura de Pitágoras poderá ser ao mesmo tempo compreendida como a de um reformador religioso e de um homem de ciência. A distinção final dessas duas margens acontecerá só em seguida, em ocasião da polêmica eleata, notadamente zeno-

49 Orig.: “Any attempt to reconstruct the original system of the founder must, I would urge, be based on

the presupposition that his philosophy and cosmology were not openly inconsistent with his religion”.

50 Orig.: “It is obvious that the Italian tradition in philosophy differs radically from the Ionian in respect

of its relation to religious belief. Unlike the Ionian, it begins, not with the elimination of factors that had once had a religious significance, but actually with a re-construction of the religious life. To Pythagoras, as all admit, the love of wisdom, philosophy, was a way of life. Pythagoras was both a great religious reformer, the prophet of a society united by reverence for his memory and the observance of a monastic rule, and also a man of commanding intellectual powers, eminent among the founders of mathematical science”.

niana; ainda que não de forma tão definida, se for considerada a terceira margem filolai- ca por ele próprio indicada (ainda que não discutida).

Raven (1948) bem compreendeu a novidade da posição de Cornford, ao afirmar em seu Pythagoreans and Eleatics: “uma das razões pelas quais a reconstrução de Corn- ford do pitagorismo mais antiga é tão atrativa é que ela imagina poder reconciliar o mo- tivo religioso com aquele científico” (Raven 1948: 9).51

Seguindo de perto os argumentos de Cornford e a imagem coerente e plausível que deles resulta, Raven, todavia, propõe-se à precisa tarefa de verificar se as conclu- sões às quais Cornford chega sejam de fato as únicas possíveis. Pois a questão não é tanto – segundo Raven – aquela de ter uma visão coerente do movimento, e, sim, o quanto esta “condiz com todas as nossas evidências disponíveis” (tallies with all our avaliable evidence), a começar pelos testemunhos aristotélicos, sem os quais qualquer tentativa de construção de um discurso histórico sobre o pitagorismo é, em seu dizer, “uma casa construída sobre areia” (house built upon sand – Raven 1948: 6).52

É exatamente essa a leitura que propõe Guthrie (1962), provavelmente o último grande comentador pertencente à tradição de intérpretes ingleses que tem suas origens em Burnet. Não por acaso, Guthrie refere-se diretamente aos estudos citados de Corn- ford (1922; 1923) e, depois, aos de seu discípulo Raven (1948), para exemplificar aque- le que chama de método “a priori” da história da filosofia pré-socrática. O método con- siste fundamentalmente em deixar de lado, por um instante, os testemunhos diretos ou indiretos e procurar imaginar aquilo que os referidos filósofos teriam provavelmente (likely) dito ou não, dadas as circunstâncias históricas em que se achavam. Guthrie co- menta assim os pressupostos teóricos do método:

Parte do pressuposto de que possuímos certa familiaridade geral com outras escolas contemporâneas e filósofos individuais e com o ambi- ente de pensamento no qual os pitagóricos trabalharam. Este conheci- mento geral da evolução da filosofia grega dá a alguém – é o que aqui se reivindica – o direito de fazer julgamentos pelos quais os pitagóri- cos, vamos dizer, antes de Parmênides, devem provavelmente ter sus-

51 Orig.: “One of the reasons why Cornford’s reconstruction of early Pythagoreanism is so attractive is

that is contrives to reconcile the religious with the scientific motive”.

52 É certamente o caso de sublinhar que Cherniss (1977), apoiando o esforço de Raven, chega a dimi-

nuir polemicamente o impacto da divisão proposta por Cornford sobre os estudiosos “fora de Cam- bridge”: “Raven was justified in feeling that the evidence does not support Cornford’s interpretation,

which incidentally has never been so widely accepted outside of Cambridge as he appears to believe”

tentado a doutrina A, e é impossível que tenham, naquele estágio do pensamento em que se encontravam, já terem desenvolvido doutrina B (Guthrie 1962: 172).53

Esses pressupostos levam, assim, a postular a existência de duas correntes da fi- losofia em seu nascer: a jônica e a itálica.54 Todos os autores, de certa forma, serão as- sim posicionados teoreticamente de um ou outro lado. O apriorismo do método é evi- dente: talvez por isso, ainda que simpatizando por ele, Guthrie sugere a “máxima caute- la possível em seu uso” (1962: 172). E, com esta admoestação, encerra-se a preocupa- ção metodológica tendente a controlar o evidente risco de circularidade das conclu- sões.55

Nessa linha metodológica, com a intenção declarada de querer compreender o pitagorismo pré-platônico, sob pena de, caso contrário, não entender Platão, Guthrie afirma em geral a unidade do primeiro:

Este pitagorismo pré-platônico pode ser considerado em larga parte como uma unidade. Poderemos verificar desenvolvimentos e dife- renças como e quando quisermos, mas seria pouco sábio esperar que estes, diante do estado fragmentário de nosso conhecimento, sejam suficientemente distinguíveis ao ponto de permitir um trata- mento separado entre fases mais recentes e outras mais tardias (1962: 147).56

53 Orig.: “It starts from the assumption that we possess a certain general familiarity with other contempo-

rary schools and individual philosophers, and with the climate of thought in which the Pythagoreans worked. This general knowledge of the evolution of Greek philosophy gives one, it is claimed, the right to make judgments of the sort that the Pythagoreans, let us say, before the time of Parmenides are likely to have held doctrine A, and that it is impossible for them at that stage of thought to have already evolved doctrine B”.

54 É mesmo o caso de notar que essa divisão remonta já à clássica divisão entre filosofia jônica e filosofia

itálica em Diógenes Laércio (Vitae I. 13). As δύο ἀρχαί, os dois começos da filosofia, são identificados por Diógenes Laércio, de um lado em Anaximandro para a vertente jônica, da qual farão parte Anaxíme- nes, Anaxágoras, Arquelau e, enfim, Sócrates; do outro lado, em Pitágoras, inventor do termo φιλοσοφία, para a outra vertente, aquela itálica, sendo este seguido pelo filho Telauge, depois Xenófanes, Parmêni- des, Zenão, Leucipo, Democrito até Epicuro (D. L. Vitae I. 13-14). Para uma discussão historiográfica mais aprofundada dos modelos historiográficos das origens da filosofia antiga, cf. Sassi (1994) e Cornelli (no prelo).

55 Para uma crítica veemente a este apriorismo metodológico no interior dos estudos sobre o pitagorismo,

cf. Kahn (1974: 163 n6).

56 Orig.: “This pre-Platonic Pythagoreanism can to a large extent be regarded as a unity. We shall

note developments and differences as and when we can, but it would be unwise to hope that these, in the fragmentary state of our knowledge, are sufficiently distinguishable chronologically to allow the separate treatment of earlier and later phases”.

Novamente, como no caso de Cornford, a distinção deverá ser definida, no inte- rior do pitagorismo pré-platônico, exclusivamente em termos cronológicos. Porém, des- sa forma, a unidade teórico-doutrinária do movimento, ao menos no interior de suas diferentes fases históricas, é garantida.

Ao mesmo tempo em que, provavelmente influenciados pelos esforços da escrita das grandes Histórias da Filosofia do século XX, os estudiosos preocupavam-se em compreender essa mesma unidade e, portanto, procurar dar conta da filosofia pitagórica como um todo; começaram a surgir, no panorama da crítica, obras dedicadas ao estudo de algumas áreas particulares e alguns problemas específicos da Quelleforshung do pi- tagorismo: é o caso certamente dos estudos sobre a política, das relações entre pitago- rismo e Platão e da compreensão das relações entre o pitagorismo e o mundo religioso em sua volta. Infelizmente – é mesmo o caso de dizer –, após a Segunda Guerra, os dois tipos de literatura dificilmente voltarão a dialogar entre si: os manuais de História da Filosofia continuarão seguindo, em sua grande maioria, a impostação zelleriana, en- quanto os estudos monográficos sobre o pitagorismo revelarão complexidades até hoje – de maneira geral – desconhecidas aos primeiros.