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6.1 As percepções da ordem pública na história da legislação processual civil

6.1.4 Código de Processo Civil de 2015

Logo de início, ao observarmos o desenvolvimento e a maneira de criação das três codificações do processo civil brasileiro, podemos asseverar, como já constatado,599 que o Código de Processo Civil de 2015 tem como fundamento marcante uma perspectiva democrática. Para justificar essa assertiva, basta um olhar sobre a subscrição da exposição de motivos dos Códigos de Processo, em 1939 (Francisco Campos), em 1973 (Alfredo Buzaid) e em 2015 (A Comissão de Juristas). Apesar do afinco e da colaboração de outros juristas, em 1939 ou em 1973, que também são reconhecidos pelos próprios subscritores, estes Códigos carregaram a marca individual do seu subscritor, inclusive o último era denominado de Código Buzaid. Esse registro não implica um demérito destas codificações, somente excita uma reflexão do momento cultural e metodológico que nos encontramos, o constitucional- democrático.

O Código de Processo Civil de 2015 não tem uma única entidade afetiva registrada em sua certidão de nascimento, mas plúrimas entidades afetivas. Não é monocrático, mas democrático, com todos avanços e retrocessos que o risco da democracia possa apresentar. E não podia ser diferente, pois atualmente perfaz a única legislação

597 Dentre eles destacamos Fredie Didier Jr., auxiliando diretamente os Deputados relatores, Leonardo Carneiro

da Cunha e Rinaldo Mouzalas, como juristas membros da comissão, além dos encontros e coletâneas produzidas pela ANNEP, que contribuíram bastante para a construção do novo Código de Processo Civil.

598 Conferir em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490267>

599 “O texto constitucional brasileiro atualmente em vigor reconhece a existência de um Estado Democrático de Direito. O Estado Constitucional é um Estado com qualidades. É um Estado constitucional democrático de

direito. Há, nele, duas grandes qualidades: Estado de direito e Estado democrático”. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Normas Fundamentais no novo CPC Brasileiro. In Processo Civil Comparado: análise entre Brasil e Portugal. Org. João Calvão da Silva [et al.]. São Paulo: Forense, 2017, p. 94).

codificada proposta (2009) e promulgada (2015), sob o regime Constitucional e Democrático de Direito.

Sua estrutura foi digna de elogios,600 dividida em duas partes. Uma parte geral, contendo seis livros, disciplinando todas as bases de desenvolvimento do processo civil, iniciando com destaque das normas fundamentais, o que demonstra a influência do processo português,601 francês e inglês,602 indo até a formação, suspensão e extinção do processo. E, uma parte especial, contendo três livros, o primeiro sobre o processo de conhecimento e o cumprimento da sentença, adotando sincretismo processual603 das reformas de 2005, do Código de 1973. O segundo livro sobre o processo de execução, e o terceiro, disciplinando o processo nos tribunais e os meios de impugnação de decisões judiciais, imprimindo uma forma de racionalização na formação, aplicação e superação dos procedentes judiciais, prezando, assim, pela estabilidade, integridade e coerência das teses jurídicas (arts. 926 e 927).

Assim, sem esquecer do passado, mas com a tentativa de um olhar para o futuro, com o escopo de resolver problemas, segundo sua exposição de motivos, o Código de 2015, estabelece uma nova identidade ao processo civil brasileiro, marcada por um modelo de atuação dialética e em cooperação (arts. 6º, 9º e 10),604 sob a lente das normas constitucionais (art. 1º) e dos direitos fundamentais (arts. 3º, 4º, 7º, 8º e 11).

Nesse contexto, parece-nos que o Código de Processo Civil de 2015 aponta para uma postura de centro (cooperação),605 não aderindo às extremidades (inquisitorial versus

600 “O novo Código traz uma estrutura substancialmente diferente da estrutura de seu antecessor e, em alguma

medida, melhor”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 8ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 49).

601 “O novo CPC brasileiro, claramente inspirado no CPC português, dedicou o seu primeiro capítulo a

apresentar um pequeno elenco com as normas fundamentais do processo civil brasileiro: os arts. 1º a 12 inserem- se num capítulo dedicado às normas fundamentais do processo civil”. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Normas

Fundamentais no novo CPC Brasileiro. In Processo Civil Comparado: análise entre Brasil e Portugal. Org.

João Calvão da Silva [et al.]. São Paulo: Forense, 2017, p. 96-97).

602 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3ª ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 51.

603 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 8ª ed. rev. e atual. São

Paulo: Malheiros, 2016, p. 49.

604 “Se adotada uma chave de leitura apropriada, trata-se de norma da mais alta importância que ao mesmo

tempo visa caracterizar o processo civil brasileiro a partir de um modelo e fazê-lo funcionar a partir de um

princípio: o modelo cooperativo de processo civil e o princípio da colaboração”. (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2015, p. 52).

605 “O modelo cooperativo afasta-se da ideia liberal do processo, que tem um juiz passivo, responsável por

arbitrar uma ‘luta’ ou ‘guerra’ entre as partes. O modelo cooperativo também se afasta da ideia de um processo autoritário, em que o juiz tem uma postura solipsista, com amplos poderes. Não se está diante de um processo cuja condução é determinada pela vontade das partes (processo dispositivo ou liberal), nem se está diante de uma condução inquisitorial do processo”. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Normas Fundamentais no novo CPC

dispositivo), mas também não abandona a possibilidade de convivência com as extremidades, marca de um processo democrático, promovendo um exercício do poder jurisdicional de forma equilibrada e hígida (art. 139, I, III e VI).

Por essa razão, que o exercício da jurisdição não pode somente está pautado no sentido axiológico606 de justificação de um publicismo processual, do poder estatal e da coisa

pública, na defesa de uma ordem pública processual,607 pois induz uma postura de extremidade estatal (inquisitorial), o que não se mostra adequado ao momento dogmático do Código de 2015. Não se pode negar o caráter público do processo civil brasileiro, mas o viés do público, atualmente, deve mais atenção às normas constitucionais e aos direitos fundamentais. Pois, garantir a concretização da Constituição de forma equilibrada e hígida, em nossa concepção, é exercer genuinamente o interesse público e o poder jurisdicional.

Ressaltamos, por oportuno, que, quem sabe ainda por influência do método da instrumentalidade, a expressão ordem pública aparece literalmente em dois dispositivos do Código de 2015, ao contrário do Código de 1973, o qual sempre defendeu a ideia de ordem pública, mas não trazia literalmente a expressão em seu texto normativo.

Vemos no art. 39, quanto à possibilidade de negar a cooperação jurídica internacional que ofenda à ordem pública, e no art. 963, VI, que traz como requisito indispensável para a homologação de decisão estrangeira, não conter manifesta ofensa à ordem pública. Este último, podemos dizer, perfaz uma nova versão do que o Código de 1939 trazia em seu art. 792.608

Nesse sentido, entendemos que o Código de 2015 não andou bem, em que pese a ideia que se transmite dos dois textos normativos não seja ligada à percepção de ordem pública processual, mas de ofensa à ordem jurídica ou ao ordenamento jurídico, principalmente ligados aos princípios fundamentais constitucionais de ordem interna (art. 1º ao 3º, da CF) e de ordem internacional (art. 4º, CF), como já enfrentamos na análise da

Brasileiro. In Processo Civil Comparado: análise entre Brasil e Portugal. Org. João Calvão da Silva [et al.]. São

Paulo: Forense, 2017, p. 118-119).

606 DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador: Juspodivm, 2012, p.

97.

607 “A nota de publicidade do processo tem como causa imediata, resumidamente, a indisponibilidade de direitos;

e, como reflexo funcional no processo, a sua inquisitividade. O interesse público transcende aos limites objetivos e subjetivos do litígio é que fada à ineficácia a inércia das partes ou ato dispositivo de situação jurídico- processuais, pois do contrário esses comportamentos conduziriam indiretamente ao sacrifício da sociedade interessada no resultado do pleito”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 15ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 65).

608 “Art. 792. Não obstante satisfeitos os requisitos do artigo antecedente, as sentenças não serão homologadas,

percepção de ordem pública no Direito Internacional Privado e na Arbitragem, como tutela de organização jurídico-social.

Além dessas referências expressas no corpo normativo do Código de 2015, a sua exposição de motivos também faz menção à ordem pública, no nosso sentir, de maneira bastante equivocada.609 Pois, fazendo alusão ao art. 10, induz ao leitor que as questões que

podem ser suscitadas de ofício são de ordem pública, o que já vimos que não, inclusive constatado pelos próprios defensores da ordem pública processual.610

Assim, ainda por influência de alguns juristas de escol ligados à instrumentalidade do processo, a qual fomenta o publicismo e o protagonismo no exercício da jurisdição estatal, exteriorizou-se no corpo do Código de 2015 e na sua exposição de motivos, a menção à ordem pública.

Neste ponto, podemos afirmar que, assim como o Código de 1939 e 1973, o Código de 2015 entrou em vigor em descompasso com o momento dogmático-metodológico do seu tempo. Pois, estamos marcados pelo Estado Constitucional, o qual perfaz um Estado de direito e um Estado democrático, onde não se fomenta as extremidades e os protagonismos no processo, mas uma atuação dialética e cooperativa. Não se mostrando adequado e coerente as menções expressas à ordem pública tanto no texto processual de 2015, como em sua exposição de motivos.

O Código de Processo Civil de 2015, antes mesmo de entrar em vigor, sofreu sua primeira alteração de redação, revogação e inclusões de dispositivos, através da Lei n.º 13.256/2016, a princípio com o escopo de modificar o procedimento do recurso especial e extraordinário, mas as mudanças foram além disso. Apesar disso, acreditamos que não alterou a sua essência.

Fato semelhante aconteceu com os Códigos antecessores. O Código de 1939 teve uma alteração, porém só prorrogando a data da sua entrada em vigor, pelo Decreto-Lei n.º 1.965, de janeiro de 1940. Já o Código de 1973, sofreu várias retificações ao seu texto originário, inclusive a prorrogação a sua entrada em vigor, através da Lei n.º 5.925, de 1º de outubro de 1973.

O novo Código já comemorou o seu primeiro de vigência, por óbvio, ainda não podemos sentir os seus ideais e seus reflexos profundamente. Pois, em que pese a dogmática

609 Trecho da exposição de motivos: “Está expressamente formulada a regra no sentido de que o fato de o juiz

estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório”.

610 “Contudo, não há necessária coincidência entre as matérias de ordem pública e os poderes de atuação ex

officio do magistrado”. (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011, 108).

processual contemporânea trilhe um caminho, a mudança de cultura e postura da práxis jurídica e a organização do Judiciário (advogados, procuradores, defensores, ministério público e magistratura) não é tão simples, ainda há muito o que se testar, discutir e aprimorar.

6.2 As questões de cognição de ofício são de ordem pública processual?

6.2.1 O sentido da expressão “de ofício”

Consultando os textos normativos das três codificações processuais do nosso país, constatamos que o Código de Processo Civil de 1939, apresentou 34 expressões “ex-officio”, como forma de autorização tanto do magistrado como de auxiliares (art. 11),611 em determinados casos, atuarem sem a provocação das partes. Em que pese um momento sincretista e dispositivo do processo, essas possibilidades transpassam determinado grau de interesse público, o que sustentava a dogmática da cognição de ofício.

No Código de Processo Civil de 1973, onde se verifica, primeiramente, uma oscilação entre os modelos inquisitorial e dispositivo, depois, pela metodologia da instrumentalidade do processo, um viés mais inquisitivo, com um fomento ao interesse público e ao exercício do poder de jurisdição estatal, encontramos 44 expressões “de ofício” em seu corpo normativo. O que passa a caracterizar estas questões como de ordem pública, pelo grau de interesse público envolvido e em face das situações jurídicas provocadas por determinadas questões.

Já o Código de Processo Civil de 2015, marca 56 expressões “de ofício”, nas quais autorizam o magistrado atuar sem a provocação das partes. Esse aumento, no nosso sentir, não supervaloriza a ideia de interesse público e concentração na jurisdição, como defende a instrumentalidade do processo. Pelo contrário, possibilita um maior diálogo entre o juiz e as partes. Pois, a identidade dialética e cooperativa que produz a codificação de 2015, por orientação do seu art. 10, o qual revigora o princípio constitucional do contraditório, impõe ao magistrado o dever de consulta612 fortalecendo o direito das partes serem ouvidas,613 no

611 “Art. 11. Os atos requisitados por telegrama, radiograma ou telefone executar-se-ão, ex-officio, na forma que

a lei determinar.”

612 “Há, ainda, o dever de consulta, de cunho assistencial. Não pode o magistrado decidir com base em questão