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6.1 As percepções da ordem pública na história da legislação processual civil

6.1.2 Código de Processo Civil de 1939

Como visto, não obstante a Constituição de 1934 tenha iniciado a unificação da legislação processual, foi sob a influência e os auspícios da Constituição de 1937 (Estado Novo), que o Código de Processo Civil de 1939 entrou, efetivamente, em vigor. Composto por 1.052 artigos, apresentava-se estruturalmente em 10 livros: I – Disposições gerais, II – Do processo em geral, III – Do processo ordinário, IV – Dos processos especiais, V – Dos processos acessórios, VI – Dos processos da competência originária dos tribunais, VII – Dos recursos, VIII – Da execução, XIX – Do juízo arbitral e X – Disposições Finais e Transitórias. A primeira codificação processual civil brasileira, talvez por todo o contexto social atribuído desde a colonização até o momento de sua implantação, também em face da instabilidade em que o Brasil e o mundo se encontravam à época, já nasceu bastante desatualizada e fora do contexto dogmático-processual desenvolvido no continente europeu.548

Registramos que, praticamente de forma simultânea a entrada em vigor do Código de Processo de 1939, acontece um fato marcante para a doutrina processual civil brasileira, e que também acabou por confirmar o atraso dogmático do processo civil brasileiro. Um jovem professor italiano, Enrico Tullio Liebman, vem ao Brasil, em virtude de questões políticas na Itália, e passa a lecionar na Faculdade de Direito de São Paulo, onde catalisou um movimento científico no Direito Processual Civil, denominado depois de Escola Processual de São Paulo.549

O Código de Processo Civil de 1939, a despeito do seu atraso dogmático e mesmo sofrendo várias modificações ao longo de sua vigência, ultrapassou três ordenamentos jurídicos constitucionais bastante distintos. O imposto pela Constituição de 1937 (um golpe

548 “Esse Código era portador de muitas imperfeições que o deixavam aquém das conquistas científicas de seu

próprio tempo, com um complicado sistema recursal, uma distinção entre execução por título judicial ou extrajudicial como nos superados tempos do processus summarius executivus, uma terminologia inadequada em muitos pontos, uma desordenada disciplina da competência etc.; e, talvez isso fosse o pior, consagrava-se um modelo processual extremamente formalista, quer nas exigências de estrito cumprimento dos trâmites procedimentais e dos requisitos de cada ato, quer na disciplina rígida das nulidades, o que constituía um estímulo ao culto irracional das formas”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 35).

549 “Foi ele o principal fundador de uma verdadeira escola, tomando esse vocábulo no sentido de uma linha

orgânica e metodológica de pensamento, responsável pela difusão de ideias coerentes com certas premissas solidamente plantadas. Chamamo-la Escola Processual de São Paulo, simplesmente porque foi na Faculdade de Direito dessa cidade que ele atuou – lecionando, discutindo, escrevendo –, mas temos a consciência de que essa é a verdadeiramente uma escola processual brasileira, com pensamentos e posturas que a caracterizam muito bem e a individualizam perante outras escolas jurídicas”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do

do Executivo),550 o da Constituição de 1946 (uma redemocratização baseada no passado)551 e o da Constituição de 1967 (o regime dos Atos Institucionais, impostos pelo regime militar).552

Diante disso, ao nosso sentir, não teria como o sistema processual infraconstitucional de 1939, manter-se hígido ou com uma identidade própria, sofrendo com as influências culturais de quem o doutrinava, que, salvo raras exceções,553 como dito, já

vinham bastante desconectadas com as discussões científicas da época.

Em que pese as duras críticas ao sistema processual de 1939,554

reconhecimento de pontos positivos nesta legislação, onde podemos destacar a inserção do despacho saneador555 (art. 293 ao art. 296), o qual replicava o instituto português do despacho ordenador.556 Outrossim, apesar da formalidade transpassada por seus textos, o

550 “A Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta.

Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 83).

551 “Esse sentimento ficou traduzido nas normas da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de

18.9.46, que, ao contrário das outras, não foi elaborada com base em um projeto preordenado, que se oferecesse à discussão da Assembléia Constituinte. Serviu-se, para sua formação, das Constituições de 1891 e 1934. Voltou-se, assim, às fontes formais do passado, que nem sempre estiveram conformes com a história real, o que constituiu o maior erro daquela Carta Magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente os regimes anteriores, que provaram mal”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 85).

552 “Essa Constituição, promulgada em 24.1.67, entrou em vigor em 15.3.67, quando assumia a Presidência o

Marechal Arthur da Costa e Silva. Sofreu ela poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas características básicas assimilou. Preocupou-se fundamentalmente com a segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao Presidente da República. [...] Reduziu a autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937. Em geral, é menos intervencionista do que a de 1946, mas, em relação a esta, avançou no que tange à limitação do direito de propriedade, autorizando a desapropriação pública, para fins de reforma agrária. Definiu mais eficazmente os direitos dos trabalhadores”. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 86-87).

553 “No direito brasileiro, além dos dois livros citados (J. M. F. de Souza Pinto, Augusto Teixeira de Freitas),

pouco, muito pouco, se fez. Ignorou-se a ciência nova que se formou, na Europa, desde 1868. [...] Quanto a Francisco de Paula Batista, a cada momento se percebe quanto amava o direito processual civil e, em muitos pontos, revelou a sua sabedoria”. (MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de

Processo Civil. Tomo I (arts. 1-45). São Paulo: Forense, 1973, prólogo, p. XIX); (MIRANDA, Francisco

Cavalcante Pontes de. Tratado da Ação Rescisória: das sentenças e outras decisões. 3ª ed. (corrigida, posta em dia e aumentada). Rio de Janeiro: Borsoi, 1957).

554 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. Tomo I. Rio

de Janeiro: Forense, 1939.

555 “Um ponto elevado do Código de 1939 foi a adoção do despacho saneador, mutuado ao direito português e,

como é notório, destinado a limpar o processo das imperfeições que contivesse, extingui-lo o mais cedo possível quando inviável o prosseguimento e permitir que caminhassem avante somente os processos nos quais fosse possível antever a possibilidade de um futuro julgamento do mérito”. (DINAMARCO, Cândido Rangel.

Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 36).

556 “Em Portugal o movimento renovador manifestou-se na criação do chamado despacho ordenador, no

processo sumário, em que se determinava ao juiz, de-ofício, o julgamento prévio da nulidade. Esta, inagàvelmente, é a fonte imediata do saneador”. (LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1985, p. 36).

Código admitia a possibilidade, em certa medida, de aplicação da fungibilidade557 no âmbito dos recursos (art. 810).558

Além disso, o texto processual de 1939, segundo a sua exposição de motivos, redigida pelo jurista e Ministro Francisco Campos, fomentava um processo oral, publicista e marcado pela ênfase na autoridade judiciária.559 Contudo, apesar da eloquência no discurso, o

texto processual, na prática, não atendeu muito ao desejado.560

Ademais, o Código de Processo Civil de 1939, como reflexo dos sistemas constitucionais postos, traz, expressamente, numa passagem de seu texto normativo, o termo ordem pública (art. 792),561 no título referente à homologação da sentença estrangeira. Que, em parte, corresponde ao atual art. 963, VI, do Código de Processo de 2015,562 o que justifica a nossa base teórica quanto aos estudos da ordem pública no Direito Internacional Privado.

Todavia, a percepção de ordem pública, no Processo Civil de 1939, em face de toda a instabilidade constitucional da época, encontrava uma volatilidade muito grande. Pois, em um momento vigorava a ideia de proteção dos interesses do Estado, na figura do Executivo (1937), assemelhando-se aos interesses dos tempos da monarquia. Em outra ocasião, perfazia uma forma de blindagem dos ideais republicanos ligados à liberdade, à segurança individual e à propriedade (1946). E, depois, com a imposição militarista, exteriorizava a imagem de manutenção da segurança e da ordem nacional, através dos Atos

557 “A justificativa para a adoção expressa desse princípio tinha, em realidade, lastro na excessividade de

recursos que gerava, por consequência, confusão sobre o cabimento do recurso adequado, conteúdo de determinados pronunciamentos judiciais e excesso de formalismo. A fungibilidade não era aplicada de forma irrestrita, entretanto”. (THAMAY, Rennan Faria Krüger; ANDRADE, Vinícius Ferreira de. Comentários sobre

a fungibilidade recursal: do código de 1939 ao novo Código de Processo Civil. In Revista de Processo. Vol.

248/2015. Out./2015, p. 186).

558 “Art. 810. Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um

recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento”.

559 Trecho da exposição de motivos: “O processo oral atende a todas as exigências acima mencionadas: confere

ao processo o carater de instrumento público: substitue a concepção duelística pela concepção autoritária ou pública do processo; simplifica a sua marcha, racionaliza a sua estrutura e, sobretudo, organiza o processo no sentido de tornar mais adequada e eficiente a formação da prova, colocando o juiz em relação a esta na mesma situação em que deve colocar-se qualquer observador que tenha por objeto conhecer os fatos e formular sobre eles apreciações adequadas ou justas”. Consulta: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930- 1939/decreto-lei-1608-18-setembro-1939-411638-norma-pe.html>

560 “...contém uma verdadeira profissão de fé aos postulados da oralidade, do publicismo processual e do

consequente reforço da autoridade do juiz no processo – mas, como mais tarde observou a doutrina, isso não significou que o Código de Processo Civil de 1939 houvesse aderido integralmente ao sistema oral nem consagrado um verdadeiro autoritarismo judicial”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do

Processo Civil Moderno. Tomo I. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 35).

561 “Art. 792. Não obstante satisfeitos os requisitos do artigo antecedente, as sentenças não serão homologadas,

se contiverem decisão contrária á soberania nacional, á ordem pública ou aos bons costumes”.

562 “Art. 963. Constituem requisitos indispensáveis à homologação da decisão: [...] VI - não conter manifesta

Institucionais (1967), em que pese, nesse período, já havia se iniciado a construção de um novo Código de Processo, idealizada por Alfredo Buzaid.563

Desta forma, podemos perceber, que a sensação de ordem pública que possibilitasse o impedimento da homologação de sentenças estrangeiras, no Processo Civil de 1939, esteve marcada pelas percepções conectadas às situações jurídicas geradas pelo ordenamento jurídico constitucional posto, e variava de acordo com a direção dada pelo regime implantado no momento de sua análise.

No mais, a doutrina não falava que as questões que permitiam o magistrado suscitar de ofício se vinculavam à ideia de ordem pública, mas estavam atreladas ao princípio inquisitivo do processo, como corolário do interesse público e do Direito Público, principalmente ligadas aos poderes instrutórios do juiz.564 Contendo, o Código de Processo de 1939, 34 expressões “ex-officio” no corpo de seu texto, como possibilidades de o órgão julgador se manifestar, sem a iniciativa espontânea das partes.

No entanto, estas possibilidades não implicam, necessariamente, a existência de um interesse público ou ordem pública insanável ou inderrogável, pois já havia, no contexto processual de 1939, a possibilidade de regularização da capacidade processual e da ilegitimidade, destacando o art. 84, §1º, que “em qualquer tempo, a requerimento da parte, ou ex-officio, o juiz deverá considerar a falta de capacidade processual ou de autorização especial, assim como a ilegitimidade do representante, marcando prazo razoável, com suspensão do processo, para que sejam integradas as representações”.

Até mesmo, era admitida uma espécie de “legitimidade extraordinária” para a mulher casada, que, à época, necessitava de autorização do marido para estar em juízo, para defender os interesses do próprio marido declarado revel, nos casos de citação por edital ou por hora certa (art. 82, I).565

563 “Com efeito, em 1961, quando Ministro da Justiça, o Sr. Oscar Pedroso Horta convidou o prof. Alfredo

Buzaid para elaborar o anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil, que foi apresentado, em janeiro de 1964, sendo então Ministro o Sr. Milton Campos. [...] Em abril de 1965, o Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil promoveu o Congresso Nacional de Direito Processual Civil, em São Paulo, para examinar e o anteprojeto”. (PACHECO, José da Silva. Evolução do Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 120).

564 “Considerando o caráter público das normas processuais e tendo em vista o poder judicial de direção do

processo, pode-se afirmar, em princípio, que verificar a legitimidade da relação processual foge da disposição das partes para pertencer, exclusivamente, à atividade inquisitória do juiz. Com efeito, o órgão judicial deve inspecionar de-ofício o processo, para saneá-lo de qualquer vício ou irregularidade. Essa obrigação oficiosa do juiz antes da instrução é que distingue o despacho saneador das decisões interlocutórias de objeto semelhante previstas em nossas leis processuais antigas, as quais não impunham ao juiz o mesmo dever, e submetiam a provisão, naquela altura do procedimento, à iniciativa das partes”. (LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1985, p. 106-107).

565 “Art. 82. A mulher casada não poderá comparecer a juizo sem autorização do marido, salvo: I – em defesa do

Como outro exemplo, podemos citar a correção das imperfeições materiais das sentenças, disciplinando o art. 285 que “as inexatidões materiais, devidas a lapso manifesto, ou os erros de escrita ou de cálculo, existentes na sentença, podendo ser corrigidos por despacho, ex-officio ou a requerimento de qualquer das partes”. Possibilidade esta que ainda permanece no atual Código de Processo de 2015 (art. 494, I)566 e que, da mesma forma, não

representa uma situação que podemos titular de ordem pública, mas de circunstâncias que possibilitam ao magistrado prestar sua atividade de maneira mais efetiva e com menos apego as solenidades.