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Cadeias referenciais e estratégias de referenciação

3 CONSTRUINDO OBJETOS DE DISCURSO EM MEIO AO EMBATE DE IDEIAS:

3.3 Cadeias referenciais e estratégias de referenciação

Como já dito, ao partir da noção de referenciação, rompemos com a visão de que haveria uma relação de correspondência direta e estável entre a elaboração linguística e a

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Traduzido do original: “The perspectival nature of linguistic symbols multiplies indefinitely the specificity with which they may be used to manipulate the attention of others, and this fact has profound implications for the nature of cognitive representation, which we will explore later” (TOMASELLO, 1999, p. 107).

própria realidade extralinguística. Esse rompimento implica na adoção uma noção de língua que não a simplifica como um simples instrumento de transmissão de informação (MARCUSCHI; KOCH, 2002), mas como uma atividade que permite, muito além da elaboração informacional, a discursivização ou textualização do mundo por meio da construção, estruturação e até fundação do próprio real.

Para Koch (2004), o processo de construção de objetos de discurso envolve a elaboração contínua de uma representação que funciona como uma memória compartilhada (memória discursiva, modelo textual) que é alimentada pelo próprio discurso. Os sucessivos estágios dessa representação são em parte responsáveis pelas possibilidades de seleção verbal feita pelos interlocutores, em se tratando de expressões referenciais. Uma vez produzidos, conteúdos linguisticamente validados, bem como os conteúdos implícitos, são integrados à memória discursiva e passam a ser susceptíveis de anaforização (KOCH, 2004). Ainda segundo a mesma autora, a constituição da memória discursiva ao longo do processamento textual envolve três operações básicas:

a) construção/ativação: na qual um objeto textual até então não mencionado passa a ocupar um nódulo (endereço cognitivo) na rede conceitual do modelo textual. São dois os tipos de ativação possíveis: quando um objeto de discurso totalmente novo for introduzido no texto, ele será não-ancorado; por sua vez, quando um novo objeto de discurso for ativado em função de algum tipo de associação e/ou inferência, ele é do tipo ancorado;

b) reconstrução/reativação: neste caso, um endereço cognitivo já anteriormente ativado é reintroduzido na memória de trabalho, por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto de discurso permanece em foco. Esta operação envolve muitos dos casos em que ocorrem as anáforas textuais e a progressão referencial, envolvendo ou não correferencialidade e recategorização;

c) desfocalização/desativação: no momento em que a posição focal de um objeto de discurso é ocupada por um outro objeto de discurso recém-ativado, ocorre a desfocalização. O objeto retirado, contudo, permanece em stand by, podendo voltar à posição focal a qualquer momento. Ou seja, ele continua disponível para uma nova ativação.

A repetição constante dessas estratégias permite a estabilização do modelo textual, mas, por outro lado, também por meio delas, esse modelo é continuamente reelaborado e modificado (KOCH, 2004). Essa propriedade – reconstrução – é responsável pela manutenção

ou mudança de foco dos objetos introduzidos, que ocorre ao longo da progressão referencial do texto.

Para Marcuschi (2008, p. 141, grifos do autor), para quem a questão referencial é central na produção textual, a progressão referencial “diz respeito à introdução, identificação, continuidade e retomada de referentes textuais, correspondendo às estratégias de designação

de referentes”. Ainda segundo o autor, é a soma dessas estratégias, ao longo da progressão

textual, o que se pode denominar cadeia referencial.

Koch (2002) entende que as principais estratégias que permitem a categorização e recategorização dos objetos, ao longo da progressão referencial do texto, são as seguintes: a) uso de pronomes ou elipses; b) uso de expressões nominais definidas (nominalização e descrição definida); e c) uso de expressões nominais indefinidas. Exploraremos essas operações integrando-as à macrocategoria estratégias de referenciação. Quanto a elas, Marcuschi e Koch (2002) afirmam que se manifestam nas seguintes condições particulares: a) estratégia de descrição definida; b) estratégia de nominalização; c) estratégia de associação; e d) estratégia pronominal (pronominalização)4.

Segundo Martins (2011, p. 75), as estratégias de referenciação compreendem “dois grandes movimentos referenciais: refocalização e alteração”. Determinaremos seis categorias a partir desses movimentos, encontrados principalmente em Marcuschi e Koch (2002). O primeiro caso trata das ocorrências de manutenção do referente textual (correferência), mas opera-se sobre ele algum tipo de perspectivação. São as ocorrências de anáforas nominais (repetições, sinonímias, paráfrases), nominalizações e descrições definidas. Já o segundo caso se refere à recorrência de mecanismos não correferenciais, ou seja, os que alteram o foco para outro objeto de discurso. São os usos de hiponimia/hiperonímia, relações indiretas (associação) e definições ou explicações. Trataremos brevemente de cada uma delas antes de seguirmos para os aspectos metodológicos da análise que propomos.

Primeiramente, falaremos das estratégias de refocalização. Neste grupo, estão incluídos os usos de:

I. anáforas nominais: os casos de anáfora nominal são representados pelo uso de repetições lexicais, sinonímias e paráfrases que são, em princípio, correferenciais,

4 Marcuschi e Koch (2002) apontam que existem certas distinções em relação aos usos dessas estratégias nas modalidades escrita ou falada da língua. No primeiro caso, é mais comum o uso das expressões nominais definidas para a progressão referencial, quando se opera uma seleção para evidenciar determinada propriedade de um referente. Já no segundo caso, em que a fala não prima pelo rigor e exatidão, há mais ocorrências de associações, ou seja, anafóricos sem referente textual explícito.

mas que permitem a recategorização visando ao direcionamento da atenção para certas perspectivas acerca de um evento ou objeto. É um exemplo de retomada por anáfora nominal o seguinte exemplo extraído de Koch (2002, p. 104), no qual o objeto problemas é recategorizado pela expressão problemas menores: Ex: Estou agora tentando resolver esses problemas, problemas menores, evidentemente, que aqueles do início.

II. nominalizações: Koch (2002) aponta que essa estratégia consiste em transformar em objetos de discurso informações expressas no texto que não apresentavam anteriormente esse status. Ela é representada, segundo Martins (2011), pelo uso de formas deverbais, no caso de remissão a um nome, ou denominais, no caso de remissão a verbos. Um exemplo de uso da estratégia de nominalização pode ser encontrado a seguir, em trecho extraído de Koch e Marcuschi (2002, p. 33). Nele, as informações textuais anteriores são sintetizadas por meio do objeto de discurso

a demanda da moeda:

Ex: [...] quais as razões que levam as pessoas a... demandarem moeda a procurarem moeda guarDArem moeda... a moeda como tal... o que... por que as pessoas retêm moeda ao invés... de comprar títulos... comprar artigos comprar imóveis... o que faz com que num determinado instante de tempo as pessoas tenham moeda... no bolso... ou seja quais os motivos que explicam a demanda de moeda por que as pessoas procuram moeda por que as pessoas reTÊM moeda... essa é a nossa preocupação... hoje...[...].

III. descrições definidas: essa estratégia permite a seleção de determinados aspectos de um objeto de discurso para a sua retomada como elemento anafórico. Apesar da manutenção do referente, ele é reconstruído por meio de uma determinada perspectiva que seja congruente com o projeto de dizer do locutor. Assim, o uso de descrições definidas serve para a ativação, na memória, de aspectos específicos de um evento ou objeto do mundo. No geral, essa atividade requer a ativação de conhecimentos partilhados entre os interlocutores, para que esses traços relevantes do referente (para onde a atenção do interlocutor deve ser direcionada após a opção por determinada perspectiva) estejam acessíveis. No exemplo a seguir, faz- se uso de uma expressão definida para especificar que tipo de medida severa seria tomada pelo governo.

Ex: Têm ocorrido rumores de que o governo estuda medidas severas para contornar a crise. Na verdade, o pacote fiscal a ser editado nos próximos dias irá aumentar ainda mais o desemprego no país (KOCH, 2002, p. 104, grifos nossos). Como observado, é comum entre as três estratégias até então citadas a correferenciação, ou seja, a permanência do mesmo objeto de discurso em foco na memória. Assim, por mais que as estratégias permitam a refocalização de seus aspectos, as perspectivas levantadas constroem – discursivamente – um objeto de discurso referente ao mesmo objeto ou evento do mundo. Há estratégias, contudo, que são caracterizadas pela não- correferencialidade. Nelas, a anáfora permite a ativação de objetos de discurso novos a partir de objetos já previamente ativados. Estes podem até ser desativados em virtude da mudança de foco na memória, mas permanecem, como já dito, em stand by para possível reativação. Dentre essas estratégias de alteração referencial estão as:

IV. inserções de hiponímia/hiperonímia/meronímia: esse tipo de anáfora associativa ocorre quando é estabelecida, por meio de remissão, uma relação parte/todo ou classe/membro entre o objeto de discurso recém ativado e o anterior. Esse tipo de anáfora indireta está baseado em relações semântico-lexicais inscritas nos próprios sintagmas nominais (SNs) que ancoram essa construção. É o que acontece no exemplo a seguir, extraído de Marcuschi (2005, p. 62). Nele, o volante é um referente ativado a partir de uma relação de parte-todo com a expressão nominal um Mercedes azul, a qual, por sua vez, já opera uma categorização acerca de um objeto de discurso. Do mesmo modo, a expressão definida as faces constitui-se de uma relação parte-todo com o homem, que já havia sido recategorizado a partir da

expressão o motorista.

Ex: Alfonso Clenin encontrou um Mercedes azul... Parecia-lhe que o motorista estava caído sobre o volante... Constatou-se, porém, de imediato que o homem estava morto. As faces estavam trespassadas por um tiro.

V. relações indiretas: esse tipo de estratégia não está baseado nas relações que se estabelecem no plano da língua, mas em modelos conceptuais/cognitivos como frames, esquemas, scripts etc. (MARCUSCHI, 2005, p. 63). Assim, os objetos de discurso ativados textualmente estão de fato ancorados em informações armazenadas na memória de longo prazo (como os conhecimentos de mundo). Essas associações não são necessariamente ativadas por itens lexicais específicos, mas também eles podem funcionar como triggers para essa ativação. É o que

acontece no exemplo a seguir, extraído de Marcuschi (2005, p. 63). É possível notar que o SN definido a enfermeira não reativa um objeto de discurso precedente. O processamento desse item lexical não é custoso, pois ele está ancorado em um esquema cognitivo acessível especialmente a partir da leitura do item hospital. A associação é criada, portanto, menos entre o SN anafórico e léxico e mais entre o anafórico e os modelos mentais disponíveis. É importante lembrar o papel determinante do contexto em processos desse tipo: facilitando, direcionando ou inviabilizando o processamento.

Ex: Nos últimos dias de agosto... a menina Rita Seidel acorda num minúsculo quarto de hospital... A enfermeira chega até a cama...

VI. explicações e definições: o uso de procedimentos metalinguísticos, ou metadiscursivos (KOCH, 2002), é outra das estratégias que podem atribuir determinada orientação argumentativa ao texto a partir da categorização almejada. A relação, nesse caso, é não-correreferencial, porque encapsula (rotula) uma informação textual apresentada anteriormente e a transforma em um outro objeto de discurso, de ordem meta-. Vejamos o exemplo extraído de Koch (2002, p. 116):

Ex: “(...) mas o que se viu na última quarta-feira, quando o suposto espetáculo deveria estrear, abrindo o 1° Festival Recife do Teatro Nacional, foi uma leitura dramatizada mal concebida e conduzida em cena. A opinião não é pessoal (...)”. Partiremos dessas estratégias para estabelecer uma base para a análise dos processos de referenciação nos debates Fla-Flu. Por meio delas, mapearemos as cadeias referenciais formadas ao longo da construção dos objetos de discurso relativos aos eventos que estamos observando. Recorreremos, quando necessário, a outras funções das formas referenciais, encontradas principalmente em Koch (2002; 2004), para compreender melhor fenômenos específicos observados.

3.4 A construção de objetos de discurso no programa Fla-Flu: algumas considerações