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Duas ideias em campo: construção de objetos de discurso em debates do programa Fla-Flu

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

JOÃO PEDRO LOBO ANTUNES

DUAS IDEIAS EM CAMPO: CONSTRUÇÃO DE OBJETOS DE DISCURSO EM DEBATES DO PROGRAMA FLA-FLU

NATAL – RN 2020

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JOÃO PEDRO LOBO ANTUNES

DUAS IDEIAS EM CAMPO: CONSTRUÇÃO DE OBJETOS DE DISCURSO EM DEBATES DO PROGRAMA FLA-FLU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística Teórica e Descritiva, na linha de Estudos Linguísticos do Texto.

Prof. Orientador: Dr. Clemilton Lopes Pinheiro.

NATAL – RN 2020

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Lobo Antunes, João Pedro.

Duas ideias em campo: construção de objetos de discurso em debates do programa Fla-Flu / João Pedro Lobo Antunes. - 2020. 152f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2020. Orientador: Prof. Dr. Clemilton Lopes Pinheiro.

1. Referenciação - Dissertação. 2. Polarização - Dissertação. 3. Disputa - Dissertação. I. Pinheiro, Clemilton Lopes. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'1

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

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Ao Prof. Guilherme Afonso (In memoriam), E à Rita Florêncio da Costa,

Do único dos netos que ela não chegou a ver formado.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Erik Fernando Miletta Martins (UFRN), por me receber inicialmente para discutir ideias de um projeto, e por contribuir desde então com as mais valorosas orientações, que serviram não apenas para este trabalho, mas para toda a minha vida acadêmica e profissional. É uma sorte ímpar poder cruzar o caminho de um professor tão brilhante e dedicado.

Ao Prof. Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN), por aceitar orientar este trabalho, por me fazer questionar a mim mesmo e por contribuir, sempre que preciso, com as mais profícuas sugestões. Com toda a certeza, cada reunião trouxe ensinamentos essenciais para o meu futuro como pesquisador e profissional, que jamais serão esquecidos.

À Profa. Edwiges Maria Morato (Unicamp), pela participação nas bancas de qualificação e defesa, pela leitura criteriosa do trabalho e, especialmente, pelas contribuições enriquecedoras sobre o fazer científico. Cada uma das oportunidades só fez aprofundar a admiração que eu já sentia ao ler sua produção acadêmica.

Ao Prof. Marcelo da Silva Amorim (UFRN), pela participação nas bancas de qualificação e defesa, pelos comentários sempre profícuos e pelas diversas sugestões para a melhoria deste trabalho.

Ao meu querido Igor Dessoles Braga, pela amizade de sempre, pela conversa na praia e por todas as outras, pelo apoio e pela companhia ao longo desse percurso.

À Mara Cristiane Ferreira de Oliveira, pela revisão deste trabalho, e por ser o eterno alicerce sem o qual eu nem saberia mais como me estruturar. O agradecimento é contínuo, eterno, e por tudo. Aos demais amigos e amigas que me acompanham, abrilhantam minha vida e sabem do lugar especial que ocupam no meu coração e na minha história.

À minha família, em nome da minha mãe, Maria do Socorro Lobo, por todo o amor e suporte que a mim foi dado, sem o qual eu jamais poderia chegar até aqui e nem a lugar nenhum.

Às professoras e professores queridos, fonte da inspiração e da força que me movem e que me fazem seguir sempre em frente. Por causa de vocês, eu não consigo nem pensar em desistir.

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RESUMO

Nos últimos anos, o acirramento das históricas tensões político-ideológicas no Brasil resultou em um processo de polarização da sociedade brasileira. Essa polarização se intensificou a partir das eleições gerais de 2014 e dividiu o país em torno de importantes eventos da conjuntura política nacional. O presente trabalho parte desse contexto para investigar, do ponto de vista dos estudos sociocognitivos do texto, a dimensão discursiva da polarização em meio a um confronto de ideias. O nosso objetivo é analisar a construção interativa de objetos de discurso no Fla-Flu, um programa de debates realizado pela Folha de S. Paulo, com o intuito de observar o impacto do discurso polarizado nos processos de referenciação ao longo da interação. Para isso, primeiramente mapeamos a progressão referencial de dois debates do

Fla-Flu, por meio da seleção e da categorização de determinadas expressões referenciais

segundo a noção de estratégias de referenciação (MARCUSCHI; KOCH, 2002; 2006). Em seguida, reconstituímos as cadeias referenciais formadas ao longo da construção de objetos de discurso ligados ao contexto de polarização política e social. Por fim, analisamos essas cadeias à luz das noções de polarização (AMOSSY, 2017) e de disputa como tipo de discurso polêmico (DASCAL, 1994). Os nossos resultados sugerem que os participantes do Fla-Flu se engajam não para buscar acordos ou soluções, mas para perpetuar os discursos polarizados e reforçar os posicionamentos opostos. Essa tendência observada impacta a construção da referência nas interações analisadas, pois acarreta um aprofundamento das já preexistentes instabilidades na relação entre as categorias discursivas e a realidade extralinguística.

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ABSTRACT

Since 2014, Brazil has been noticing the continuing rise of its historical political-ideological conflicts. The result of this process is the polarization of Brazilian society concerning relevant events of national political scenario. This work starts from this context to investigate the discursive dimension of the polarization amid a verbal confrontation. Our main objective is to analyze the interactive construction of objects-of-speech in Fla-Flu, an online TV show which promoted debates along 2016. Our purpose is to observe the impacts of the polarized speech in the referencing processes during interaction in two of the Fla-Flu debates. To achieve this, we firstly map the referential progress of these debates following the concept of referencing strategies (MARCUSCHI; KOCH, 2002; 2006). Then, we reconstitute the referential chains formed along the construction of objects-of-speech related to the context of political and social polarization. Finally, we analyze these referential chains in the light of the notions of polarization (AMOSSY, 2017) and of dispute as a kind of polemic speech (DASCAL, 1994). Our results reveal that the participants of Fla-Flu debates engage not to achieve understandings or solutions, but to perpetuate the polarized speech and reinforce the opposing positions. This suggests that the polarized interaction impact the referencing processes, as it implies in a deepening of the preexistent instability between discursive categories and the reality itself.

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LISTA DE FIGURAS

Diagrama 1 – Cadeias referenciais I e II ... 65 Diagrama 2 – Cadeia referencial III ... 73 Diagrama 3 – Cadeias referenciais IV e V ... 89

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 ENTENDENDO O FLA-FLU: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A POLARIZAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA ... 14

2.1 Polarização: de fenômeno social a fenômeno do discurso ... 14

2.2 O Fla-Flu como espaço de estímulo à disputa e ao discurso polarizado ... 19

2.3 Abrindo pontes entre a polarização política no Brasil e os estudos do texto ... 21

3 CONSTRUINDO OBJETOS DE DISCURSO EM MEIO AO EMBATE DE IDEIAS: NOÇÕES DE REFERENCIAÇÃO E DE CADEIAS REFERENCIAIS ... 25

3.1 Da problemática da referência linguística à noção de referenciação ... 25

3.2 O papel da referenciação na construção de objetos e de categorias discursivas ... 27

3.3 Cadeias referenciais e estratégias de referenciação ... 29

3.4 A construção de objetos de discurso no programa Fla-Flu: algumas considerações ... 34

4 ASPECTOS METODOLÓGICOS ... 38

4.1 Descrição dos dados ... 38

4.1.1 O programa Fla-Flu... 38

4.1.2 Debates selecionados ... 39

4.1.3 Participantes e atores sociais envolvidos ... 40

4.1.3.1 A Folha de S. Paulo e Fernando Canzian ... 40

4.1.3.1.1 O Movimento dos Trabalhadores sem Teto, Guilherme Boulos e Josué Rocha ... 42

4.1.3.2 O Instituto Millenium e Demétrio Magnoli ... 44

4.1.3.3 O Movimento Brasil Livre e Arthur do Val ... 45

4.2 Descrição do modelo de análise ... 47

4.2.1 Visualização dos dados ... 48

5 ANÁLISE DAS CADEIAS REFERENCIAIS EM DEBATES DO PROGRAMA FLA-FLU ... 51 5.1 Análise das cadeias referenciais no debate entre Guilherme Boulos e Demétrio Magnoli 51

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5.1.1 Afastamento de Dilma Rousseff: golpe, ou simplesmente impeachment? ... 52

5.1.2 Reformas econômicas: uma ponte para o futuro ou para o passado? ... 67

5.2 Análise das cadeias referenciais no debate entre Josué Rocha e Arthur do Val ... 75

5.2.1 Ação política: manifestações legítimas ou atos de violência? ... 75

5.3 A construção conflitante de objetos de discurso: comentários gerais ... 92

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 97

REFERÊNCIAS ... 102

APÊNDICE A – TRANSCRIÇÃO DO DEBATE ENTRE GUILHERME BOULOS E DEMÉTRIO MAGNOLI ... 107

APÊNDICE B – TRANSCRIÇÃO DO DEBATE ENTRE JOSUÉ ROCHA E ARTHUR DO VAL ... 131

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1 INTRODUÇÃO

A ideia inicial que deu impulso a este trabalho foi a de investigar, do ponto de vista dos estudos sociocognitivos do texto, a dimensão discursiva da polarização que acirrou as tensões político-ideológicas no Brasil, especialmente após as eleições gerais de 2014. A nossa intenção era a de observar, no contexto de um confronto de ideias, a manifestação da conjuntura polarizada nos discursos.

Essa intenção embrionária nos guiou até o Fla-Flu: duas ideias em campo, um programa da Folha de S. Paulo que foi exibido on-line pela TV Folha ao longo de 2016. O

Fla-Flu foi um tipo de debate televisivo, cujo formato específico estimulava a polarização ao

incentivar o embate público de ideias entre duas personalidades acerca de questões controversas da conjuntura brasileira. Partindo desse programa, conduzimos uma investigação acerca da elaboração referencial na emergência de interações organizadas pelo discurso polarizado.

Nesta dissertação, então, assumimos como objetivo principal analisar a construção interativa de objetos de discurso em debates do programa Fla-Flu. A nossa intenção é a de observar o impacto do discurso polarizado nos processos de referenciação ao longo da interação. A nossa hipótese de fundo é a de que a indução à polarização aprofunda a instabilidade própria dos processos de construção referencial ao longo das práticas discursivas. Essa percepção se baseia nas características próprias do programa Fla-Flu, que expõem e acirram o confronto de ideias, sem qualquer direcionamento para uma proposta de acordo ou solução.

Para embasar a nossa investigação do ponto de vista teórico, nos filiamos aos estudos sociocognitivos do texto. Esta perspectiva busca estabelecer relações entre os estudos do texto e da cognição, ao unir pesquisas dos campos social e cognitivo para investigar os processos de produção e processamento textual (SALOMÃO, 1999; MARCUSCHI, 2008; MORATO, 2017). Dentro desse campo, partimos principalmente dos trabalhos que adotam o postulado de referenciação como construção dinâmica e interativa de objetos de discurso, caso de Mondada e Dubois (2003); Koch (2002; 2004); Marcuschi e Koch (2002; 2006), dentre outros.

Também fazemos uso de postulados de alguns autores dos estudos do discurso. Quanto ao gênero, por exemplo, seguimos as visões de Charaudeau (2006) e de Amossy (2014) para enquadrar o programa Fla-Flu como um exemplo bastante peculiar de debate televisivo. Já para tratarmos do conceito de polarização enquanto fenômeno social, tomamos

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como base Amossy (2014). Por sua vez, para falar da polarização em sua manifestação discursiva, apresentamos as noções gerais de polêmica. Neste caso, trazemos o debate de Dascal (1994) acerca dos tipos de discursos polêmicos, com interesse em particular no conceito de disputa.

Para atingir o nosso objetivo, mapeamos a progressão referencial de dois debates do programa Fla-Flu. Para isso, primeiramente selecionamos as expressões referenciais que operavam a construção de determinados objetos de discurso ligados ao contexto de polarização política e social. Em seguida, categorizamos cada uma dessas expressões referenciais com base na noção de estratégias de referenciação (MARCUSCHI; KOCH, 2002; 2006) e reconstituímos as cadeias referenciais formadas ao longo da interação. Por fim, analisamos as cadeias referenciais formadas à luz dos postulados teóricos que adotamos para entender a relação entre os usos emergenciais da referenciação, a polarização discursiva e o contexto mais amplo de polarização social.

É sabido que a referenciação é um dos temas que mais tem despertado o interesse dos pesquisadores, sobretudo aqueles que investigam a interface entre o texto/linguagem e a cognição. Chama a nossa atenção, contudo, que, apesar da ampla variedade de publicações na área, são poucas as pesquisas que assumem como objetivo entender a referenciação em contextos dissensuais, nos quais o conflito de ideias é essencial para a compreensão da construção referencial. Apesar de haver uma série de estudos que se dedicam a mal-entendidos, discordâncias ou mesmo a exposição de opiniões divergentes, o campo ainda carece de pesquisas que tenham como foco o enfrentamento emergente de posições inconciliáveis na tentativa de entender o impacto do conflito na configuração das construções referenciais. Ao propor uma investigação da construção referencial em um ambiente polarizado, esperamos contribuir para o preenchimento dessa lacuna.

O trabalho se justifica, portanto, porque propõe uma investigação de um campo de interação ainda pouco explorado nos estudos do texto que pode, no nosso entender, abrir espaço para novas discussões acerca do fenômeno da referenciação. Também julgamos que ainda se mostra relevante constatar a natureza oral e interativa desses dados. Já há quase vinte anos, Marcuschi (2001) afirmava que a oralidade era historicamente preterida em relação à escrita em pesquisas da Linguística Textual. Duas décadas depois, essa percepção ainda persiste: o recente levantamento feito por Ranieri (2018, p. 125), acerca do panorama dos estudos em referenciação no Brasil, aponta para “uma grande quantidade de trabalhos voltados para o texto na modalidade escrita” em detrimento das pesquisas em oralidade: uma proporção de um para três, no levantamento da autora.

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Quanto aos debates escolhidos para análise, selecionamos os episódios do Fla-Flu que abarcavam de modo mais direto os temas e eventos que estabelecemos como critério de seleção. Por isso, apesar de esses temas serem encontrados, em meio a outros, em diversos episódios do programa, buscamos os debates em que os participantes se dedicassem, principalmente, ao 1) processo de impeachment de Dilma Rousseff; às 2) estratégias de ação política dos movimentos sociais; e às 3) reformas estruturais e econômicas propostas pelo governo de Michel Temer.

Essa busca resultou na seleção de dois debates. O primeiro deles foi realizado um dia antes da votação pela abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados e traz, como participantes, Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), e Demétrio Magnoli, sociólogo e colunista da Folha de S. Paulo. O segundo debate, por sua vez, foi realizado uma semana após a concretização do julgamento da então presidente e da posse definitiva do seu sucessor. Os participantes convidados foram Josué Rocha, coordenador do MTST, e Arthur do Val, membro do Movimento Brasil Livre (MBL). Os dois programas foram mediados pelo jornalista Fernando Canzian, da Folha de S. Paulo.

Para dar cabo da tarefa de apresentar as bases teóricas e tratar os dados, organizamos esta dissertação nos seguintes capítulos. O capítulo após a introdução está dividido em três seções e discute as noções de polarização, discurso polêmico e debate televisivo. Quanto à polarização, partimos de Amossy (2017) para qualificar este conceito enquanto um fenômeno social que se apresenta quando, em uma sociedade, diversos grupos se unem em redor de polos dicotômicos em torno de uma questão. Esse fenômeno tem uma estreita relação com o discurso, visto que é principalmente por meio das práticas discursivas que os diferentes posicionamentos são confrontados. Para tratar dessa dimensão discursiva inerente à polarização, apresentamos as noções gerais de polêmica, especialmente por meio dos estudos do discurso polêmico, elaborado por Dascal (1994). Mostramos os tipos ideais de polêmica descritos pelo autor e, dentre eles, selecionamos o conceito de disputa para categorizar o programa Fla-Flu. Além disso, enquadramos o programa enquanto um tipo de debate televisivo que serve como espaço de estímulo à disputa e ao discurso polarizado.

Passamos, no capítulo seguinte, a discutir o raciocínio que nos leva a entender como pertinente e profícuo o estudo da referenciação em um embate polarizado de ideias. Nas duas primeiras seções, apresentamos o debate em torno da referência linguística, partindo de uma visão clássica e especular da relação mundo/linguagem para chegar à noção de referenciação como construção dinâmica sociocognitiva de objetos de discurso. Na terceira seção, destacamos as noções de cadeias referenciais e elencamos as estratégias de referenciação que

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utilizamos como categoria de análise. Na última seção do capítulo, fazemos algumas considerações acerca da análise dos processos referenciais no programa Fla-Flu, bem como destacamos alguns dos possíveis impactos do embate polarizado na atividade referencial. Para enquadrar este estudo dentro de um campo mais amplo, mostramos algumas pesquisas que chamam a nossa atenção por apresentar semelhanças ao que propomos e destacamos, em comparação a elas, as peculiaridades dos nossos objetivos. Por fim, apresentamos a nossa hipótese de fundo e discutimos as suas consequências para a construção referencial nos textos. No capítulo seguinte, apresentamos os aspectos metodológicos da pesquisa. Em um primeiro momento, descrevemos o ambiente de dados. Apresentamos com mais detalhe os elementos contextuais e o formato que constituem o programa Fla-Flu, bem como detalhamos os episódios escolhidos para análise. Em seguida, fazemos uma breve descrição dos participantes e dos atores sociais envolvidos. No segundo momento, apresentamos os aspectos metodológicos da condução da análise, desde o levantamento até o tratamento dos dados obtidos.

Destacamos que, devido ao caráter altamente interativo e contextual desses dados, é fundamental admitir que os textos aqui analisados são produzidos em contextos sociais e que os aspectos incorporados à interação também influenciam a construção textual. Assim, os elementos contextuais apresentados, bem como a relação entre as dimensões social e discursiva da polarização, são relevantes, uma vez que refletem, em maior ou menor grau, na escolha de determinadas formas linguísticas em detrimento de outras. Por essa razão, afirmamos a nossa preocupação em fazer uma análise (con)textual na medida que nos é possível explorar tão complexo e imbricado processo

Por fim, norteados por essa percepção, apresentamos a análise. Optamos por dividir este capítulo por debate, e, em cada seção, analisamos as cadeias referenciais formadas. Ao todo, analisamos cinco cadeias referenciais referentes à construção de três eventos/categorias: três delas são formadas no debate entre Guilherme Boulos e Demétrio Magnoli, e duas no debate entre Josué da Rocha e Arthur do Val. Para a melhor visualização das cadeias, elaboramos um diagrama da progressão referencial para cada um dos eventos/categorias, que são também os principais temas e tópicos dos debates. Apresentamos ainda uma seção de discussões com percepções e comentários tecidos com base nos postulados teóricos adotados,

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2 ENTENDENDO O FLA-FLU: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A POLARIZAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

2.1 Polarização: de fenômeno social a fenômeno do discurso

Ao longo dos últimos anos, a mídia tradicional, as redes sociais e o ambiente acadêmico têm frequentemente usado o termo polarização ao tratar da conjuntura sociopolítica brasileira. Essa polarização teria dividido a sociedade em dois grupos antagônicos que divergiram quanto à condução política e econômica do país, principalmente a partir das eleições de 2014. De acordo com Brugnago e Chaia (2015), após um período de aparente apatia política, a dicotomia na participação política brasileira reascendeu a partir das Jornadas de Junho de 2013. As diferenças ideológicas dentro das manifestações não tardaram a aparecer, implodindo o movimento inicial e “rachando a massa de pessoas em dois rumos de militância com caminhos totalmente opostos” (BRUGNAGO; CHAIA, 2015, p. 102). Foi por essa época que a militância da direita despertou para o interesse de sair às ruas em protesto, prática que até então era associada somente à esquerda.

Ainda para Brugnago e Chaia (2015), aos olhos das discussões ideológicas, a sociedade brasileira foi dividida em dois grandes blocos: “coxinhas” e “petralhas”. Era considerado alienado aquele que não se reconhecesse em um dos grupos. Uma vez estabelecida essa suposta dicotomia, passou-se a assumir a conjuntura política a partir da redução do conflito entre os dois grandes grupos. Contudo, se em um primeiro momento essa visão parece simbolizar satisfatoriamente o tensionamento ideológico do Brasil atual – sendo representada pela categorização dos manifestantes entre “vermelhos” e “verde amarelos” - pesquisas mostram que, se analisada criteriosamente, ela passa a ser reducionista e incapaz de considerar a real complexidade do perfil e das pautas da sociedade.

Para Tatagiba et al. (2015), não é possível afirmar que os manifestantes que foram às ruas estavam unidos em torno de um projeto político de contornos claros, nem mesmo, no caso dos protestos pró-impeachment, que fossem todos considerados de “direita” no que se refere ao posicionamento político. Algumas pautas já mencionadas nesses protestos, como a luta contra a corrupção (fortemente associada ao PT), parecem ter unido grande parte das pessoas, mas também questões controversas como a crise econômica, as cotas universitárias, os programas sociais, a maioridade penal ou mesmo pedidos por intervenção militar foram temas que mobilizaram grupos menores. Da mesma forma, os protestos anti-impeachment também foram marcados por pluralidade nas pautas, as quais incluíam críticas ao governo,

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clamores pelo fortalecimento da democracia, pedidos pela saída de Eduardo Cunha e causas como a legalização do aborto, o fim da Polícia Militar, a reforma agrária, direito à moradia e a reforma política, dentre outros.

Dito isso, ao considerarmos a existência de uma polarização, temos de ter a clareza que ela é mais complexa do que parece. De fato,

o que as pesquisas mostram até o momento é que a visão dos manifestantes como um bloco homogêneo (os “coxinhas” ou a “direita”), embora seja útil na luta política ao dividir os campos em disputa e forjar as distinções significativas, não apreende a complexidade desse ator coletivo que sai às ruas para expressar sua indignação (TATAGIBA; TRINDADE; TEIXEIRA, 2015, p. 211).

Isso significa que não devemos, de modo algum, simplificar o processo de polarização, mas qualificá-lo e, no nosso caso, compreender como ele pode se manifestar discursivamente. Podemos buscar essa compreensão a partir de Amossy (2017).

Para Amossy (2017), a polarização é um fenômeno social instaurado quando um público diverso se une em dois ou mais grupos que se opõem. Essa divisão social gera uma retórica polarizada que estabelece campos inimigos em torno de uma questão pública. Há também, na polarização, um choque de opiniões contraditórias, que ocorre junto com uma oposição dos discursos, chamada de dicotomização. Essa oposição, em uma sociedade polarizada, gera duas opções antitéticas, as quais se excluem mutuamente e tornam uma solução para uma questão difícil, improvável – ou mesmo impossível – de acontecer.

A polarização se diferencia da dicotomização, porque a primeira diz respeito aos atores (sujeitos) se reagrupando em grupos adversos, enquanto a segunda se refere às teses contrárias que se opõem até ficarem irreconciliáveis. Em outras palavras, para Amossy (2017), enquanto a dicotomização assume um caráter conceitual, a polarização envolve sujeitos reais engajados em uma questão e, portanto, constitui um processo de ordem social. Ainda de acordo com Amossy (2017), na polarização, uma distinção se impõe entre os

actantes (os papéis) e os atores, indivíduos concretos que assumem os papéis. Esses

indivíduos se posicionam de modo oposto no plano enunciativo para defender ou refutar teses opostas.

Amossy (2017) retoma uma ideia de Dascal (2008) segundo o qual as práticas correntes tratam menos de dicotomias lógicas e mais da construção de dicotomias a serviço de objetivos argumentativos. É nesse sentido que as polaridades e incompatibilidades são radicalizadas e acentuadas visando à necessidade argumentativa de se escancarar as diferentes posições. Ainda que exista, para o mesmo autor, uma possibilidade de “desdicotomização” em torno de uma tese, em que é possível a construção de uma posição intermediária, na

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polarização, as dicotomias tendem a serem evidenciadas para se tornarem excludentes, bloqueando a possibilidade de solução.

Vale ressaltar que a polarização não apresenta uma divisão binária do tipo “preto/branco”, ela se constitui, na verdade, para King e Floyd (1971, apud AMOSSY, 2017, p 56), de “um processo através do qual um público extremamente diversificado se funde em dois ou vários grupos fortemente contrastados e mutuamente excludentes”. Esses grupos diversificados se unem em torno de uma tese contra outra, mas não necessariamente compartilha pensamentos de modo homogêneo. De fato, de acordo com Amossy (2017, p. 54), “as oposições não são absolutas; elas dependem de contextos socioculturais, de crenças de base, de necessidades argumentativas, de circunstâncias históricas, etc.”. Ou seja, mesmo que grupos defendam as mesmas posições dentro de uma sociedade polarizada, eles não necessariamente o fazem pelos mesmos motivos e não necessariamente visam aos mesmos objetivos.

Essa visão é consonante com a percepção de Tatagiba et al. (2015) acerca da complexidade do fenômeno da polarização em uma sociedade plural como a brasileira. A polarização seria o resultado da oposição de duas teses divergentes (dicotomização), cada uma delas abrangendo um conjunto heterogêneo de pessoas que não necessariamente concordam em todos os aspectos. Assim, não caberia dizer que no Brasil há simplesmente uma disputa entre “direita” e “esquerda”, “ricos” e “pobres”. Há, de fato, uma complexidade de atores que assumiram determinados papéis (opostos) em torno de uma grande polêmica, a qual envolveria, dentre outros temas, a legalidade – ou não – do impeachment de Dilma Rousseff; as mudanças políticas e econômicas propostas pelo governo sucessor; e quais tipos de ação política podem ser considerados legítimos atos de manifestação e quais devem ser entendidos como ações violentas.

A discursivização da polarização, na esteira do que diz Amossy (2017), está associada à noção de discurso polêmico. Para Amossy (2017), a polêmica seria, de modo genérico, um

choque de opiniões antagônicas que ocorre, em nível verbal, em uma sociedade polarizada. A

polarização, juntamente à dicotomização e à desqualificação do adversário, seriam traços estruturantes das polêmicas. A autora desenvolve seus estudos entendendo a polêmica como uma modalidade argumentativa que se desenvolve necessariamente no debate em torno de uma questão de interesse público atual.

Partindo de um contexto de pesquisa diferente, mas adotando uma visão que converge com a de Amossy (2017), está Dascal (1994). Este autor se dedicou ao estudo da polêmica enquanto discurso no contexto do desenvolvimento da ciência e focou nas controvérsias

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científicas, mas suas contribuições sobre a noção introdutória de polêmica são bastante úteis para a compreensão dos fenômenos discursivos que envolvem o conflito de ideias. Ambos os autores entendem que as divergências são fenômenos numerosos no dia a dia e recebem diversas denominações, sendo “polêmica” uma delas, e ambos tentam se dedicar a uma qualificação do termo a partir de seus interesses de estudo.

A discussão à qual Dascal (1994) se dedica tem sua origem no impasse em que, segundo o autor, se encontram a Epistemologia e a História da Ciência, e que seria provocado “em grande parte ou à total negligência, ou ao tratamento equivocado da função das controvérsias científicas na evolução da ciência” (DASCAL, 1994, p. 73). Como dito, apesar de o autor se interessar em particular pelo estudo das controvérsias no domínio científico, a introdução que ele levanta sobre elas enquanto discurso polêmico se aplica às demais possibilidades de interação.

As controvérsias fariam parte dos fenômenos discursivos dialógicos polêmicos, nos quais estão incluídas as interações em que duas pessoas usam linguagem, “dirigindo-se uma a outra, num confronto de opiniões, argumentos, teorias, etc” (DASCAL, p. 78). Dascal (1994) diz entender a controvérsia como uma atividade na qual pelo menos dois oponentes (vivos, reais, ativos e imprevisíveis) se confrontam tendo essencialmente o direito de contestação. A controvérsia é também dialógica, com as funções falante/ouvinte alternando com grande frequência, e as exigências conversacionais mudando progressivamente a cada nova intervenção dos participantes. Toda essa dinamicidade garantiria à controvérsia o caráter variável dos argumentos empregados e a possibilidade de mudanças temáticas relativamente inesperadas.

Dascal (1994) afirma que as definições de controvérsia englobam de fato toda a família de diálogos polêmicos, que incluem desde debates políticos, congressos e mesas-redondas, até brigas verbais de cônjuges. Polêmica, portanto, seria o conjunto de fenômenos dialógicos polêmicos. O autor propõe distinguir, dentre eles, três “tipo ideais” de polêmica. A controvérsia é uma delas, juntamente com a discussão e a disputa.

Uma discussão seria um tipo de polêmica que tem uma divergência bem definida. Esse tipo de polêmica permite soluções e parece envolver participantes que estão engajados em reconhecer e corrigir erros percebidos. Já a controvérsia “ocupa uma posição intermediária entre discussão e disputa. Pode começar com um problema específico, porém rapidamente se expande a outros problemas e revela divergências profundas” (DASCAL, 1994, p. 79). Essas divergências, entretanto, não se reduzem a conflitos insolúveis, uma vez que, na controvérsia, após uma série de argumentos, é possível que a questão penda para um dos lados. Mesmo que

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a controvérsia não seja solucionada, é possível que se resolva “com o aceitamento de um dos lados ou, pelo menos, com o esclarecimento recíproco da natureza da divergência” (DASCAL, p. 79).

A noção de disputa nos interessa em particular, pois está mais próxima do que ocorre nas interações que analisamos. Dascal (1994, p. 79) diz que

uma DISPUTA é uma polêmica que também parece ter por objetivo uma divergência bem definida. Porém, em nenhum momento aceitam os contendentes sua definição como baseada em algum erro. Se revela melhor como derivada de uma diferença de atitudes, sentimentos ou preferências. Não há procedimentos mutuamente aceitos para decidi-las, ou seja, não tem „soluções‟. No fundo, podem ser dissoltas. Porém, em geral, as divergências subjacentes a elas tendem a recorrer em disputas sobre outros tópicos específicos. Alguns contendentes vêem na posição de seus oponentes sintomas de uma enfermidade frente a qual a única atividade apropriada é terapêutica.

A disputa, portanto, se caracteriza como o tipo mais polarizado de discurso polêmico. Nela, os posicionamentos opostos são rechaçados e não se parece abrir caminho rumo a um entendimento. Ambos os contendentes creem estar certos quanto ao posicionamento que defendem. Assim como na controvérsia, uma disputa pode começar com um problema específico, mas se expandir para outros problemas e divergências. Diversos tópicos podem ser introduzidos sem qualquer indicação de digressão, sendo por vezes o tema inicial até mesmo deixado de lado (DASCAL, 1994). Diferentemente da controvérsia, contudo, não é esperada qualquer concessão ou redução do conflito em uma disputa: a tendência é que ela siga rumo à permanência de uma indefinição. Da definição dos autores, é importante destacar que tanto Dascal (1994) quanto Amossy (2017) apontam a necessidade de cada contendente poder expor o que pensa e defender seu ponto de vista, contrariamente ao ponto de vista do outro. Também os dois autores destacam, em ambas as noções de polêmica como modalidade argumentativa e de disputa enquanto discurso polêmico, que não é esperado que os contendentes cheguem a uma solução para a questão em pauta. Isso porque, nesses casos, observa-se mais da possibilidade de gerir o conflito em democracia do que de uma interação que visa à superação das divergências e o consenso.

Apesar de as duas noções de polêmica apresentarem similaridades teóricas e vantagens específicas, as peculiaridades do ambiente de dados que vamos analisar nos levam a assumir a concepção de Dascal (1994) para tratar da polarização enquanto fenômeno discursivo em um debate televisivo. Na seção seguinte, detalharemos os motivos dessa opção.

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2.2 O Fla-Flu como espaço de estímulo à disputa e ao discurso polarizado

Oprograma exibido online chamado de Fla-Flu: duas ideias em campo1 é um debate

televisivo, cuja particularidade mais marcante é a de exacerbação do ambiente de polarização

político-ideológica da sociedade brasileira.

De maneira geral, o gênero debate pode ser caracterizado como um tipo específico de interação oral, em que se verifica uma discussão em torno de um confronto de opiniões (KERBRAT-ORECCHIONI, 1990, apud BRAGA, 2006, p. 33). À confrontação verbal nos debates é garantida acentuada organização, visto que normalmente essas interações ocorrem em um quadro pré-determinado por certos aspectos do gênero. Dentre eles, citados por Braga (2006), destacamos: 1) a existência de um quadro triangular, formado pelos participantes, mediador/moderador e público; 2) o papel fundamental do moderador para a regulação, estruturação e eventuais intervenções ao longo do debate; 3) os papéis equilibrados e simétricos dos participantes do debate e 4) o caráter fortemente argumentativo desse tipo de interação.

Por sua vez, enquanto gênero midiático, o debate televisivo tem como principal característica o estímulo ao confronto em torno de uma questão pública atual. Para Charaudeau (2006, p. 189), esses debates constituem uma “encenação organizada de tal maneira que os confrontos de falas tornam-se, por si, um acontecimento notável”. Segundo o autor, os debates televisivos são montados pelas mídias como uma encenação que envolve o convite a participantes externos para falar de um tema político ou social da atualidade. Esses participantes normalmente são identificados como especialistas ou notáveis para tratar do tema específico. É também participante um representante da mídia, que faz o papel de entrevistador ou debatedor e que é bastante relevante no decurso do debate como “gerenciador da fala dos outros” (CHARAUDEAU, 2006, p. 198). É ele que introduz os temas e subtemas, que dá e retira a palavra dos convidados e que orienta o debate visando ao espetáculo midiático.

Ainda de acordo com Charaudeau (2006), como evento midiático, o debate televisivo promove a espetacularização e deve ser transmitido em um espaço que promova a visibilidade apropriada (rádios, TVs etc.). Para que uma questão problemática da sociedade se torne interessante para a mídia do ponto de vista do “acontecimento”, é comum que o posicionamento de cada um dos participantes especialistas seja antagônico e que o debate estimule conflito. Por isso, a escolha de participantes e de determinados temas são, na

1 Apresentamos mais detalhes sobre o programa e sobre os episódios analisados em nosso capítulo metodológico.

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verdade, uma estratégia de criar o ambiente de confronto e de espetacularização. Ao construir as condições necessárias para o enfrentamento dessas posições opostas, o debate televisivo está propenso “a momentos de conflito e de polêmica, em maior ou menor grau, conforme as ações e as reações dos debatedores” (PALUMBO, 2008, p. 40). Ou seja, apesar de o debate televisivo se constituir de uma interação face a face que se desenvolve ao curso das necessidades ad hoc da própria interação, os interesses do realizador e do representante da mídia podem guiar o debate em direção à divergência e ao conflito.

Essa percepção é também adotada por Amossy (2017, p. 86), que entende que, no debate televisivo, “os debatedores respondem-se mutuamente e são obrigados a reagir, às vezes calorosamente, às declarações do outro”. Para ela, o debate desse tipo é proposto justamente para possibilitar a discussão e pedir às duas partes para se confrontarem publicamente. Essa peculiaridade do debate televisivo, que impõe aos contendentes a premissa do conflito, faz com que ele, na condição de evento discursivo que tende à dicotomização, polarização e desqualificação do adversário, não ocorra como a interação polêmica enquanto modalidade argumentativa (Cf. AMOSSY, 2017). Isso porque a polêmica como modalidade argumentativa envolve um confronto que se estabelece por meio de reações diretas e espontâneas que circulam no espaço público em torno de uma questão polêmica, o que difere da confrontação estimulada e muitas vezes assimétrica dos debates televisivos.

É por isso que entendemos que os debates do programa Fla-Flu são mais bem enquadrados na noção de polêmica de Dascal (1994). O Fla-Flu exalta o contexto de polarização e de dicotomização em um ambiente que estimula e prevê previamente o conflito. Além disso, uma vez que o debate gira em torno de um tema controverso e não chega a qualquer perspectiva de solução, o programa encontra no conceito de disputa um enquadramento teórico mais adequado.

O Fla-Flu, portanto, é um debate caracterizado pela polarização e que estimula a disputa entre os contendentes. Os participantes convidados são sempre personalidades relacionadas a determinado posicionamento político-ideológico e a determinado ator social. Há um representante da mídia na posição de mediador, que organiza a progressão tópica do debate em torno de temas polêmicos da conjuntura polarizada do Brasil. No decorrer da interação, a posição dos participantes sempre se coloca em contraposição à do outro. Vale ressaltar que parte dessa constante contraposição está relacionada a própria proposta do programa, que é a de exposição da polarização. Assim, não é esperada a resolução do conflito não apenas pelas posições opostas, mas também porque ambos os contendentes usam o espaço do programa para falar a um terceiro, o público. O objetivo de cada contendente é

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angariar a adesão de terceiros às suas teses e, assim, disseminar seu posicionamento. O outro, nesse sentido, passa a ser o interlocutor imediato, mas não é tão relevante quanto a possível audiência projetada.

Dentro desse contexto, observamos que “a cada passo os contendentes se acusam mutuamente por apresentar incorretamente as teses do outro, por empregar linguagem ambígua, por não responder às objeções, e – por isso – por não dirigir-se ao „verdadeiro problema‟” (DASCAL, 1994, p. 80). É importante que se diga, contudo, que, apesar de haver acordos pré-estabelecidos e da certeza da exposição polarizada, o caráter interacional da disputa faz com que a dinâmica de cada debate se desenvolva de modo único (PALUMBO, 2007). Isso significa dizer que as questões postas inicialmente não necessariamente se desenvolvem a partir do que é preestabelecido: as questões “se ampliam rapidamente, tanto em extensão quanto em profundidade” (DASCAL, 1994, p. 80). Essa dinâmica própria da interação resulta em grande alternância tópica que expande a polarização e o conflito para além dos temas principais, sempre, como colocado, visando convencer uma audiência projetada.

2.3 Abrindo pontes entre a polarização política no Brasil e os estudos do texto

Como discutido, o programa Fla-Flu pode ser entendido como a manifestação discursiva e estimulada de um fenômeno social: a polarização. A polarização ocorre em um ambiente de profundo desacordo em que pessoas se unem em grupos que assumem posições dicotômicas acerca de um tema controverso. Compreendemos, então, a polarização da sociedade brasileira a partir de uma complexidade de atores (que não necessariamente concordam em tudo ou carregam as mesmas pautas) que assumiram papéis opostos em torno das grandes questões públicas que inflaramaram a opinião pública no Brasil nos últimos anos. Definir qual seria, ou quais seriam, os posicionamentos polarizadosque traduzem as posições político-ideológicas desses atores não é necessariamente um empreendimento fácil. Tentaremos, contudo, formular uma generalização baseada na conjuntura política do Brasil entre os anos de 2014 e 2016.

Em 2014, as eleições presidenciais brasileiras entraram para a história do país pelo resultado mais apertado já registrado: 51,6% dos votos válidos em favor da reeleição de Dilma Rousseff (RESULTADO, 2014). A presidente chegou a afirmar, em seu primeiro discurso como reeleita, que não acreditava que as eleições tivessem “dividido o país ao meio” (DILMA, 2014. Entretanto, o fato é que a conclusão do processo não foi, de forma alguma,

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suficiente para apaziguar os ânimos e as opiniões contrastantes, tendo o pleito sido chamado, anos mais tarde, de “a eleição que não acabou” (A ELEIÇÃO, 2017).

Na verdade, a popularidade de Dilma Rousseff entrava em curva decrescente desde os grandes protestos que aconteceram no Brasil em meados de 2013, com uma brusca queda após as Jornadas de Junho (AGÊNCIA EFE, 2013). A situação se agravou em 2014, ano em que foi deflagrada a Operação Lava Jato, que investigou uma série de políticos de diversos partidos e empresários envolvidos em atos ilícitos, mas que desgastou principalmente a imagem do Partido dos Trabalhadores e, por consequência, da Presidente da República.

Essa conjuntura resultou em uma situação política no país ainda mais instável nos anos seguintes. Entre 2015 e 2016, a sociedade brasileira presenciou uma série de eventos que gerou grandes controvérsias e discordâncias. Podemos resumi-los conforme a seguir: 1) o processo de impeachment que culminou no afastamento da presidente; 2) intensas manifestações de rua que alternadamente foram convocadas por organizações contrárias ou a favor do governo e da permanência de Dilma Rousseff; 3) os avanços e ações controversas da Operação Lava Jato; e 4) as propostas de reformas sociais e econômicas do governo sucessor. Ao longo de 2015, uma série de ações da Lava Jato, medidas econômicas e embates no Congresso Nacional tinham como reação das ruas manifestações contrárias e a favor de Dilma Rousseff. As pautas consistiam no pedido de impeachment ou renúncia da presidente, na defesa da Operação Lava Jato e luta contra a corrupção. Os movimentos a favor do governo, por sua vez, tinham como pauta a não continuidade do processo de impeachment – entendido como golpe de estado - além da bandeira #ForaCunha, contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.

Já o ano de 2016 representou o ápice da polarização brasileira até aquele momento. Em meio à instabilidade política e às manifestações, avançava o processo de impeachment pelo Congresso Nacional. A culminância dessa parte do processo ocorreu a partir do dia 25 de agosto, quando começou o julgamento de Dilma Rousseff por crime de responsabilidade fiscal. Dilma foi ao SSenado apresentar sua defesa, reafirmando que era vítima de um golpe de estado. Apesar das alegações, o seu mandato foi cassado em 31 de agosto, e Michel Temer tornou-se o presidente do Brasil.

Longe de promover a pacificação, a posse de Michel Temer resultou em uma série de atos políticos. Na primeira semana após a saída definitiva de Dilma, uma série de protestos contrários ao impeachment foram realizados em diversas cidades do país (25 ESTADOS E DF, 2016). De acordo com Tito (2016), esses eventos foram marcados por episódios de bloqueios de vias, depredação de agências bancárias e outros equipamentos públicos e pelo

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protesto em frente à sede do jornal Folha de S. Paulo. Em todos eles, houve repressão policial e uso de gás lacrimogêneo e balas de borracha. As manifestações prosseguiram ao longo dos anos em que Michel Temer esteve no cargo. Marcadas pela bandeira #ForaTemer, o foco desses atos passou a ser o repúdio a uma série de propostas colocadas pelo governo, como a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista e da Previdência.

Com base nesse percurso, pode-se dizer que a polarização em torno do processo de

impeachment de Dilma Rousseff se desdobra em diferentes questões. Três delas, contudo, nos

interessam de modo particular neste trabalho. A primeira está expressa, de modo simplificado, nas duas visões que se apresentam:

a) o processo de impeachment de Dilma Rousseff segue todo o procedimento previsto pela Constituição, cabendo ao Congresso julgar a existência ou não de crime de responsabilidade, o que o torna automaticamente legal e constitucional; b) o processo de impeachment de Dilma Rousseff não tem base jurídica sólida, independentemente dos trâmites constitucionais, o que o torna ilegal e, por consequência, um golpe de estado.

A segunda questão controversa para a qual atentamos está no campo da ação política, ou quais tipos de ações políticas são legítimas ou não. Essa questão também polarizou os grupos que entendiam que:

a) manifestações envolvem diversos tipos de atos políticos, e movimentos como

trancaços e ocupações de prédios públicos são atos legítimos em determinadas

situações;

b) atos políticos como os citados acima, além de outros, não são tipos legítimos de manifestação e devem ser categorizados como atos de violência, arruaça ou mesmo crime.

Por fim, a terceira questão derivada da polarização que podemos levantar está relacionada às propostas de reformas constitucionais lançadas pelo governo que sucedeu a Dilma Rousseff. Essas propostas, de cunho neoliberal, foram alvo de grandes manifestações ao longo dos anos em que Michel Temer esteve no poder. Essa questão pública opôs os seguintes pontos de vista:

a) as reformas constitucionais são necessárias para a retomada do crescimento do Brasil e devem ser implementadas;

b) as reformas econômicas são medidas austeras que, caso implementadas, podem piorar o quadro de crise e favorecer o aumento da pobreza e da desigualdade social no Brasil.

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Essas três questões principais aparecem em meio a outros desacordos ao longo da interação nos debates que vamos analisar. É notório que existe uma relação entre o contexto de polarização social e a disputa em todos esses casos, assim como está claro que esses contextos são evocados e discursivamente construídos de maneiras peculiares em cada interação e a partir de diferentes posicionamentos. Essa reconstrução (reelaboração) se dá principalmente ao longo dos processos de significação que interessam aos estudiosos do texto e que incluem, dentre outros, a questão da referenciação. É sobre esse processo que iremos nos aprofundar no capítulo a seguir.

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3 CONSTRUINDO OBJETOS DE DISCURSO EM MEIO AO EMBATE DE IDEIAS: NOÇÕES DE REFERENCIAÇÃO E DE CADEIAS REFERENCIAIS

3.1 Da problemática da referência linguística à noção de referenciação

Começamos esta seção por meio da perspicaz problematização levantada por Blikstein (1983, p. 17) acerca da relação entre língua, pensamento, conhecimento e linguagem: “até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade „extralinguística‟? Como é possível conhecer tal realidade por meio de signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”. Partindo disso e reformulando a questão, iniciamos ao perguntar: qual seria, afinal, o ponto de intersecção entre a língua, a cognição e o mundo que nos cerca?

Como já disse Blikstein (1983), é sabido que essa reflexão integra a agenda dos estudos filosóficos desde a Grécia Antiga e é retomada ao longo dos tempos por diferentes áreas da ciência. Na visão de Marcuschi (2007), a principal problemática da questão (assumida como a central da reflexão ocidental) estaria em compreender qual é a natureza da nossa relação com o mundo pela linguagem. Em outras palavras, entender quão direta seria a relação entre as coisas (ou a realidade) e as formas linguísticas que utilizamos cotidianamente quando falamos dessas “coisas”.

Blikstein (1983), ao falar da visão de autores clássicos que tentaram achar respostas satisfatórias para o assunto, aponta para os estudos de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho. Este, retomando os primeiros, conceituou signo como "coisa” que se caracteriza como signo por ser usada para fazer vir “outras coisas” ao pensamento. Ou seja, seria justamente a função vicária do signo que o constituiria como tal. Assumindo esse postulado, pode-se entender, ao partir da visão de Santo Agostinho e dos filósofos gregos, o signo como “algo que representa ou substitui as coisas, isto é, a realidade” (BLIKSTEIN, 1983, p. 20, grifos do autor). Essa relação de correspondência direta entre as palavras e as coisas é retomada ao longo dos séculos e chega à Linguística por autores como Saussure, o qual reforça a tradição do convencionalismo dos signos. Assim, como mostra o exemplo de Blikstein (1983, p. 21, grifos do autor), “ao captar a palavra árvore, o ouvinte extrai (ou decodifica) o seu significado de tal modo a identificar a coisa ou objeto extralinguístico a que o falante se refere”.

É preciso dizer, entretanto, que a solução clássica para a problemática levantada não é, como aponta o próprio Blikstein (1983), de modo algum consensual entre os estudiosos do tema. Para o autor, essa noção tem sido reformulada por diversas pesquisas, as quais, em áreas como Linguística, Antropologia, Psicologia e na própria Teoria do Conhecimento, têm

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criticado e ampliado a questão da referência em aparelhos teóricos bem mais complexos. Como exemplo, o autor cita Ogden e Richards, os quais lançaram a ideia do referente (a coisa extralinguística), o qual se distingue da referência (ou o significado linguístico). Juntamente ao símbolo (ou o significante para Saussure), esses elementos promoveriam uma relação não mais direta entre o “linguístico” e o “extralinguístico”, uma vez que o símbolo remeteria a um significado (no nível do pensamento), e não mais ao referente, ou o objeto extralinguístico em si.

Ao longo do século XX, muitos outros autores, na esteira de Ogden e Richards, também contribuíram para uma nova e mais complexa visão da referência linguística, buscando romper com a concepção aristotélica tradicional2. Mondada e Dubois (2003 [1995]), contudo, afirmam que, apesar das diferentes respostas, a maior parte dos quadros conceituais sobre a referência ainda preconizam a relação de correspondência entre as palavras e as coisas. As autoras falam da metáfora do espelho para ilustrar essa concepção de relação linguagem/mundo. Com ela, é possível entender a visão clássica da referência como uma noção especular: a linguagem seria apenas o reflexo da realidade, sendo a referência uma espécie de “etiquetagem apriorística que estabelece uma relação biunívoca entre linguagem e mundo” (MARCUSCHI; KOCH, 2006, p. 351). Mondada e Dubois (2003) citam a sintaxe, as gramáticas tradicionais e mesmo a linguística cognitiva como exemplos de campos teóricos que, em maior ou menor grau, sustentam essa tese.

Partindo das atualizações das ciências cognitivas sobre a questão, Mondada e Dubois (2003) apresentam uma proposta que reconsidera a questão da referência linguística. Para as autoras, a visão especular da referência implica um mundo discretizado em objetos que existem independentemente de qualquer sujeito que a eles se refira. Nessa perspectiva, haveria uma estabilidade a priori nas relações entre o mundo e a língua, tendo esta que se ajustar adequadamente a esse mundo. Na contramão dessa percepção, partem as autoras justamente da “instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e linguísticas, assim como de seus processos de estabilização” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 19, grifos nossos). Ao assumir uma relação instável entre os dois campos, elas consideram que a questão deva ser deslocada da forma como a entidades da língua rotulam o mundo para os processos que asseguram alguma estabilidade a essas entidades. É a partir dessa reformulação que as autoras rompem com a noção clássica de referência e adotam o conceito de referenciação.

2 Um percurso mais detalhado dos postulados teóricos que permitiram os avanços e a complexificação da noção de referência ao longo do Século XX pode ser encontrado na obra Kaspar Hauser, ou a fabricação da realidade, de Blikstein (1983).

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Essa mudança de foco impacta consideravelmente o modo de enxergar a questão da construção da referência linguística. Em primeiro lugar, não se questiona mais como os estados do mundo são linguisticamente representados de forma adequada, mas “como as atividades humanas, cognitivas e linguísticas, estruturam e dão um sentido ao mundo” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 20). Em segundo lugar, passa a ser imprescindível que se entenda que essas práticas não são realizadas por um sujeito abstrato, idealizado e solitário, mas por sujeitos reais, localizados, os quais constroem sociocognitivamente a realidade a partir de uma relação indireta entre a língua e o mundo. Nas palavras de Mondada e Dubois (2003, p. 20), essas práticas envolvem a “construção de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo”.

3.2 O papel da referenciação na construção de objetos e de categorias discursivas

A referenciação é, portanto, uma abordagem dinâmica por natureza, visto que implica na busca pela compreensão das atividades discursivas de discretização e estabilização. Esses processos emergem a partir de sujeitos reais que, como já dito, constroem o mundo ao curso de suas práticas sociais, e o tornam estável graças às categorias e aos objetos que são discursivamente construídos e cognitivamente situados. É por isso que, para essa perspectiva, no processo de nomear, sugerir ou representar algo, não estamos simplesmente escolhendo referentes que designam o mundo, mas efetivamente construindo sociocognitiva e discursivamente categorias e objetos de discurso.

Quanto aos objetos de discurso, Mondada e Dubois (2003) adotam uma linha de pensamento congruente com a de Blikstein (KOCH, 2004). O autor já defendia, em sua obra, que o fato de o referente ser extralinguístico não significa que ele deveria ser desconsiderado pela Linguística, visto que ele estaria simplesmente “situado atrás ou antes da linguagem, como um evento cognitivo, produto de nossa percepção” (BLIKSTEIN, 1983, p. 39). Também ele já afirmava, de acordo com Koch (2004), que o mecanismo gerador desse sistema perceptual, “fabricante” de referentes, residiria nas nossas práticas sociais (Práxis). É essa a linha de raciocínio que nos leva a entender a referenciação como uma atividade sociocognitiva-discursiva, culturalmente situada, por meio da qual os sujeitos constroem as suas versões públicas do mundo.

Essas questões estão diretamente relacionadas aos processos de categorização, uma vez que, para Mondada e Dubois (2003, p. 20), os sujeitos constroem o mundo “ao curso do cumprimento de suas atividades sociais e o torna estável graças às categorias – notadamente

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às categorias manifestadas no discurso”. Desse modo, assim como os objetos de discurso, as categorias pelas quais os sujeitos conceptualizam a realidade não são preexistentes, dadas a

priori, mas partem da mesma instabilidade constitutiva, sendo reelaboradas ao curso das

atividades discursivas e da interação. Apesar de Mondada e Dubois (2003) advertirem que as noções de referenciação e categorização precisam ser diferenciadas a fim de se evitar a redução de um dos conceitos ao outro, é notório que ambos os processos estão imbricados, visto que são ambos concernentes às práticas, aos sujeitos e aos discursos.

Assim, pode-se entender a categorização como um processo que ocorre também ao longo das práticas discursivas, a partir da elaboração e reelaboração de objetos de discurso nas atividades de referenciação. Por meio dessas atividades, “As categorias utilizadas para descrever o mundo mudam [...] sincrônica e diacronicamente: quer seja em discursos comuns ou em discursos científicos, elas são múltiplas e inconstantes; são controversas antes de serem fixadas normativa ou historicamente” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 22). Essa afirmação reforça a instabilidade que constitui a relação entre as palavras e as coisas. Assim, ao longo da interação, uma mesma pessoa pode ser tratada como “comunista” ou “progressista”, a depender do ponto de vista ideológico adotado. Considerando a questão a partir da hipótese de Tomasello (1999), podemos entender que essa possibilidade estaria relacionada a uma das principais funções da linguagem: a de direcionar/manipular a atenção das pessoas, induzindo-as a perceber diferentes perspectivinduzindo-as de um mesmo fenômeno.

Tomasello (1999) atribui à propriedade de perspectivação da língua a capacidade humana de construir, de diversas maneiras, a referência em torno de um evento do mundo. Para o autor, os símbolos linguísticos são caracterizados pela capacidade de incorporar determinadas perspectivas à determinada entidade ou evento. Ainda para o autor, a perspectivação permite o direcionamento da atenção dos interlocutores para uma maneira específica de construção dos eventos e participantes. É por essa razão que, sob determinados contextos, um objeto do mundo pode ser construído como um cachorro, um animal ou uma fera. Do mesmo modo, um determinado lugar pode ser construído como uma área pública de lazer ou um perigoso ponto de venda de drogas. Como lembra Tomasello (1999, p. 107, tradução nossa), “A natureza perspectival dos símbolos linguísticos multiplica indefinidamente a especificidade com que eles podem ser usados para manipular a atenção

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dos outros, e esse fato tem profundas implicações para a natureza da representação cognitiva [...]”3.

É importante ressaltar o caráter proposital desse fenômeno, visto que o direcionamento de atenção se dá a partir das intenções comunicativas dos sujeitos. É por essa razão que Tomasello (1999) fala em direcionamento e em manipulação da atenção. A ideia de

manipular está relacionada à capacidade dos sujeitos de induzirem uns nos outros a adoção de

determinada perspectiva em um fenômeno. Koch (2005) parte de um pressuposto semelhante para relacionar os processos de referenciação à orientação argumentativa dos textos. Para ela, as formas de referenciação constituem escolhas do sujeito em função de um querer-dizer. Assim, sujeitos ativos fazem suas opções, ao longo da interação verbal, sobre o material linguístico que têm à sua disposição, a fim de “guiar” o outro a construir sentido a partir de uma determinada intenção.

A partir da discussão levantada, pode-se afirmar que, no processo de categorização e recategorização dos objetos de discurso, um mesmo evento de mundo pode ser interpretado e construído de maneiras diferentes. Isso ocorre porque, como Marcuschi (2007, p. 68, grifos do autor) recorrentemente reporta em seus trabalhos, “a linguagem é uma atividade constitutiva e não uma forma de representar a realidade; mais que um retrato, a língua é um trato da realidade”. Esse trato (construção), ocorrendo juntamente à reelaboração dos dados sensoriais, se daria essencialmente ao longo do discurso (MARCUSCHI; KOCH, 2006) e da interação (MORATO, 2004). Além disso, essa construção obedeceria a certas restrições, impostas pelas condições culturais, sociais, históricas, bem como pelas condições de processamento dos usos linguísticos (KOCH, 2004). Tentaremos resumir o que foi discutido até aqui pelas palavras de Koch (2002, p. 94):

a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos através da interação com o entorno físico, social e cultural.

3.3 Cadeias referenciais e estratégias de referenciação

Como já dito, ao partir da noção de referenciação, rompemos com a visão de que haveria uma relação de correspondência direta e estável entre a elaboração linguística e a

3

Traduzido do original: “The perspectival nature of linguistic symbols multiplies indefinitely the specificity with which they may be used to manipulate the attention of others, and this fact has profound implications for the nature of cognitive representation, which we will explore later” (TOMASELLO, 1999, p. 107).

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própria realidade extralinguística. Esse rompimento implica na adoção uma noção de língua que não a simplifica como um simples instrumento de transmissão de informação (MARCUSCHI; KOCH, 2002), mas como uma atividade que permite, muito além da elaboração informacional, a discursivização ou textualização do mundo por meio da construção, estruturação e até fundação do próprio real.

Para Koch (2004), o processo de construção de objetos de discurso envolve a elaboração contínua de uma representação que funciona como uma memória compartilhada (memória discursiva, modelo textual) que é alimentada pelo próprio discurso. Os sucessivos estágios dessa representação são em parte responsáveis pelas possibilidades de seleção verbal feita pelos interlocutores, em se tratando de expressões referenciais. Uma vez produzidos, conteúdos linguisticamente validados, bem como os conteúdos implícitos, são integrados à memória discursiva e passam a ser susceptíveis de anaforização (KOCH, 2004). Ainda segundo a mesma autora, a constituição da memória discursiva ao longo do processamento textual envolve três operações básicas:

a) construção/ativação: na qual um objeto textual até então não mencionado passa a ocupar um nódulo (endereço cognitivo) na rede conceitual do modelo textual. São dois os tipos de ativação possíveis: quando um objeto de discurso totalmente novo for introduzido no texto, ele será não-ancorado; por sua vez, quando um novo objeto de discurso for ativado em função de algum tipo de associação e/ou inferência, ele é do tipo ancorado;

b) reconstrução/reativação: neste caso, um endereço cognitivo já anteriormente ativado é reintroduzido na memória de trabalho, por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto de discurso permanece em foco. Esta operação envolve muitos dos casos em que ocorrem as anáforas textuais e a progressão referencial, envolvendo ou não correferencialidade e recategorização;

c) desfocalização/desativação: no momento em que a posição focal de um objeto de discurso é ocupada por um outro objeto de discurso recém-ativado, ocorre a desfocalização. O objeto retirado, contudo, permanece em stand by, podendo voltar à posição focal a qualquer momento. Ou seja, ele continua disponível para uma nova ativação.

A repetição constante dessas estratégias permite a estabilização do modelo textual, mas, por outro lado, também por meio delas, esse modelo é continuamente reelaborado e modificado (KOCH, 2004). Essa propriedade – reconstrução – é responsável pela manutenção

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ou mudança de foco dos objetos introduzidos, que ocorre ao longo da progressão referencial do texto.

Para Marcuschi (2008, p. 141, grifos do autor), para quem a questão referencial é central na produção textual, a progressão referencial “diz respeito à introdução, identificação, continuidade e retomada de referentes textuais, correspondendo às estratégias de designação

de referentes”. Ainda segundo o autor, é a soma dessas estratégias, ao longo da progressão

textual, o que se pode denominar cadeia referencial.

Koch (2002) entende que as principais estratégias que permitem a categorização e recategorização dos objetos, ao longo da progressão referencial do texto, são as seguintes: a) uso de pronomes ou elipses; b) uso de expressões nominais definidas (nominalização e descrição definida); e c) uso de expressões nominais indefinidas. Exploraremos essas operações integrando-as à macrocategoria estratégias de referenciação. Quanto a elas, Marcuschi e Koch (2002) afirmam que se manifestam nas seguintes condições particulares: a) estratégia de descrição definida; b) estratégia de nominalização; c) estratégia de associação; e d) estratégia pronominal (pronominalização)4.

Segundo Martins (2011, p. 75), as estratégias de referenciação compreendem “dois grandes movimentos referenciais: refocalização e alteração”. Determinaremos seis categorias a partir desses movimentos, encontrados principalmente em Marcuschi e Koch (2002). O primeiro caso trata das ocorrências de manutenção do referente textual (correferência), mas opera-se sobre ele algum tipo de perspectivação. São as ocorrências de anáforas nominais (repetições, sinonímias, paráfrases), nominalizações e descrições definidas. Já o segundo caso se refere à recorrência de mecanismos não correferenciais, ou seja, os que alteram o foco para outro objeto de discurso. São os usos de hiponimia/hiperonímia, relações indiretas (associação) e definições ou explicações. Trataremos brevemente de cada uma delas antes de seguirmos para os aspectos metodológicos da análise que propomos.

Primeiramente, falaremos das estratégias de refocalização. Neste grupo, estão incluídos os usos de:

I. anáforas nominais: os casos de anáfora nominal são representados pelo uso de repetições lexicais, sinonímias e paráfrases que são, em princípio, correferenciais,

4 Marcuschi e Koch (2002) apontam que existem certas distinções em relação aos usos dessas estratégias nas modalidades escrita ou falada da língua. No primeiro caso, é mais comum o uso das expressões nominais definidas para a progressão referencial, quando se opera uma seleção para evidenciar determinada propriedade de um referente. Já no segundo caso, em que a fala não prima pelo rigor e exatidão, há mais ocorrências de associações, ou seja, anafóricos sem referente textual explícito.

Referências

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