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3 CONSTRUINDO OBJETOS DE DISCURSO EM MEIO AO EMBATE DE IDEIAS:

4.2 Descrição do modelo de análise

4.2.1 Visualização dos dados

Mapear as cadeias referenciais, em qualquer texto, demanda primeiro o levantamento das estratégias de progressão referencial adotadas pelo interlocutor. Seguimos, pois, a notação exposta abaixo para uma melhor detecção e visualização das expressões referenciais e das funções que elas exercem no texto:

a) expressão referencial em negrito: ativação de novo objeto de discurso;

b) expressão referencial em itálico: manutenção de referente por meio de estratégia de refocalização;

c) expressão referencial em negrito e itálico: mudança de referente por meio de estratégia de alteração.

Partindo desse sistema, mapeamos a progressão referencial por meio da identificação das estratégias de referenciação emergentes, tomando como base, principalmente, Marcuschi e Koch (2002; 2006).

Após o levantamento desses processos, o passo seguinte foi o de organizar as expressões referenciais de modo a formar uma cadeia que represente a progressão referencial do texto, o que inclui a introdução, identificação, continuidade e retomada de um determinado referente (MARCUSCHI, 2008). Em textos escritos, essa organização obedeceria às próprias limitações do processo de escrita; nos nossos dados, contudo, as especificidades do texto falado e a natureza interativa e emergente da produção textual trazem outros desafios a esse tipo de levantamento.

É sabido que a construção do texto falado apresenta uma dinâmica própria, na qual são comuns rupturas, interrupções e hesitações. Além disso, nas interações face a face, como as que analisamos aqui, a alternância dos turnos implica em uma organização tópica ainda mais específica, na qual a alternância muitas vezes se dá por meio de superposição e movimento de tópico (Cf. JUBRAN, 2006). Essas especificidades do texto da oralidade, especialmente no que diz respeito à sua progressão tópica, impactam, naturalmente, a progressão referencial, em ambos os processos de introdução e retomada de referentes. O caráter conflituoso das interações que analisamos, que influencia até mesmo o grau de dialogicidade do texto, acentua ainda mais essa instabilidade: muitas vezes, o interlocutor opta por não dar continuidade ao que é dito pelo adversário, preferindo, em vez disso, retomar a si mesmo para marcar ainda mais a posição contrária, ou introduzir um novo tópico e outro conjunto de objetos de discurso.

Todas essas especificidades acarretam desafios na constituição das cadeias referenciais. Algumas delas se desenvolvem extensamente ao longo da interação, com seus referentes sendo descontinuamente desfocalizados e reintroduzidos. Por essa razão, precisamos criar um padrão que facilite a visualização das cadeias. Procuramos primeiro os elementos que tinham como função ativar o objeto de discurso, seguido das expressões com função referencial. A garantia da progressão referencial dos textos se dá por meio das estratégias de refocalização, mas observamos também as estratégias de alteração relevantes para o desenvolvimento tópico e referencial do texto.

Para tornar essas especificidades visualizáveis na cadeia, vamos seguir a seguinte notação:

a) cada cadeia referencial será nomeada com os eventos discursivamente construídos: julgamento de Dilma Rousseff, ação política e reformas constitucionais;

b) as expressões referenciais, bem como a estratégia de referenciação utilizada, serão listadas na ordem em que emergem no debate com uma cor específica para cada participante. As expressões referenciais serão designadas de acordo com as seguintes estratégias:

r. l.: anáfora nominal do tipo repetição lexical;

a. n.: anáfora nominal do tipo sinonímia ou paráfrase; n.: nominalizações;

d. d.: descrição definida;

e. n. i.: expressão nominal indefinida;

r. a.: relações associativas do tipo parte/todo; r. i.: relações indiretas;

exp./d.: explicações ou definições.

c) os movimentos referenciais (introdução, retomadas, remissões) entre os interlocutores serão indicados por setas que indicam como surgem e como são desenvolvidos ao longo do debate.

Há alguns casos específicos que precisam ser mencionados. Primeiro, as anáforas nominais realizadas por meio de repetição lexical foram consideradas enos casos em que cumpriram algum papel argumentativo ou pragmático específico, além da própria manutenção referencial. Segundo, não consideramos as pronominalizações, pois, apesar de abundantes, não operam sobre o referente focalizado algum tipo de refocalização ou alteração referencial. Terceiro, sobre as expressões nominais indefinidas, bastante recorrentes em nossos dados, assumiremos o posicionamento de Cunha-Lima (2004) de que elas podem exercer a função de qualquer uma das estratégias de referenciação. Portanto, elas só são diferenciadas em nossa análise nos casos em que a opção por uma forma indefinida assume uma função argumentativa e/ou pragmática específica no texto. Não seguimos, pois, a visão tradicional de que o indefinido não teria função anafórica ou a teria apenas em casos previstos e limitados.

5 ANÁLISE DAS CADEIAS REFERENCIAIS EM DEBATES DO PROGRAMA FLA-

FLU

5.1 Análise das cadeias referenciais no debate entre Guilherme Boulos e Demétrio Magnoli

Começaremos pelo programa Fla-Flu exibido em 16 de abril de 2016. Naquela tarde de sábado, a Câmara dos Deputados se preparava para decidir pela abertura ou não do processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff. Enquanto isso acontecia, a TV Folha convidou a liderança do MTST, Guilherme Boulos (doravante GB) para um debate com o sociólogo e jornalista Demétrio Magnoli (doravante DM). GB sempre adotou uma linha contrária a este processo, enquanto DM passou de uma posição contrária a outra favorável ao impeachment. O jornalista Fernando Canzian (doravante FC) mediou o debate e tentou guiá-lo para os temas que a Folha de S. Paulo vinha destacando à época em sua pauta, dentre os quais estavam os protestos contra o impeachment e as consequências deste evento para a agenda econômica nacional.

Ao longo do debate, GB e DM exploram diversos aspectos que um deles ou ambos assumem como relevantes para a compreensão da natureza do processo de impeachment. No tensionamento que é criado em torno da construção do objeto de discurso mais adequado para categorizar o evento, diversas instituições e figuras públicas são envolvidas. Essa tensão primeira perpassa todas as outras questões e envolve as estratégias de referenciação. Ao longo da interação, toda essa complexa teia referencial é organizada em torno de um conflito em que elementos textuais e contextuais emergem para provocar a ampliação do desacordo e a impossibilidade de consenso. A disputa, que é antes de tudo pelas verdadeiras razões do

impeachmentimpeachment, não abre margens para conciliações.

Partindo disso, vamos analisar, no texto, o julgamento de Dilma Rousseff por meio da formação de cadeias que constroem os objetos de discurso Golpe de estado e Processo de

impeachment. Ambas as conceptualizações do evento já estão amplamente difundidas nos

conflitos oriundos da polarização social e no embate entre os divergentes campos político- ideológico que os interlocutores assumem o papel de defender: afinal, este impeachment foi

golpe ou foi um impeachment legítimo? No caso desta pesquisa, não interessa tanto o que de

fato está no âmago do evento do mundo, mas a disputa pela sua categorização enquanto objeto de discurso textualmente e conjuntamente construído. Analisaremos ainda a construção referencial do objeto de discurso Uma ponte para o futuro, que faz parte de uma série de

propostas de reformas constitucionais que alterariam, de modo relevante, a influência do estado e as relações trabalhistas na sociedade brasileira.

Devido ao caráter interativo e emergente do texto, comentaremos trechos relevantes para a progressão referencial e que não estão diretamente na formação das cadeias focalizadas.