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Capítulo III – Cafés Históricos do Porto: estabelecimentos

1. Cafés Históricos do Porto extintos

1.6. Café Palladium

A 18 de agosto de 1939, em pleno tempo de guerra na Europa, abre portas, no núcleo urbano de cafés nas imediações das ruas de Sá da Bandeira e Santa Catarina, o

Café Palladium. Localizado na esquina sudoeste do cruzamento das ruas de Santa

Catarina e Passos Manuel, no edifício que foi projetado por Marques da Silva para albergar os antigos armazéns de móveis de António Nascimento [Fig. 130], o Palladium

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foi anunciado, na época, como o maior café da Península Ibérica445 [Fig. 131]. É verdade que outros estabelecimentos desta natureza, abertos na mesma década, já tinham sido anunciados de igual forma pela imprensa da época, mas a realidade é que este café era, de facto, verdadeiramente grande.

Tendo o arquiteto Mário Abreu como projetista das obras de reconversão e decoração do novo estabelecimento, localizado no interior do edifício projetado por Marques da Silva, o Palladium – propriedade de Albertino Cardoso de Freitas – [Fig. 132] era constituído por quatro grandiosos e deslumbrantes pisos. No piso térreo localizava-se o café, que ocupava toda a sua área envolvente e possuía um salão de chá em local sobrelevado. No primeiro piso, com o aproveitamento de uma galeria, encontrava-se uma sala de jogos recheada de mesas, onde decorriam verdadeiras maratonas de xadrez, palavras cruzadas, charadas e dominó446. No segundo localizava- se o salão de bilhares, onde se podiam encontrar “onze bilhares de snoocker americano, jogo então novo entre nós e que, gradualmente, viria a substituir os bilhares tradicionais dos cafés”447. O terceiro piso veio, ligeiramente mais tarde, a funcionar como cabaret (salão de baile), com entrada e elevador exclusivo pelo lado da Rua de Santa Catarina, e tornou-se muito famoso na cidade, em meados do século. Os jornais da época

445

Séculos XIX e XX: Os Cafés Mais Importantes. In Cafés do Porto. Consultado em 11 de julho de 2012. Disponível em http://cafesemblematicos.blogspot.pt/p/cafes-emblematicos.html.

446

Ibidem.

447

DIAS, Marina Tavares; MARQUES, Mário Morais – Porto Desaparecido, p. 170.

Figura 130: Localização Geográfica do Café Palladium. Imagem recolhida em 17 de julho de 2012. Fonte: http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/Default.aspx.

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publicitavam este café, de forma entusiástica, fundamentalmente pela novidade do

snoocker, “do serviço especial de barman, do serviço de grill-room e da venda de café a

retalho. Café de café só o do Paladium era o slogan publicitário”448.

Ao nível da arquitetura, este estabelecimento localizou-se no “primeiro edifício portuense a utilizar estrutura de betão armado”449, o que lhe atribui um valor histórico muito particular e de grande relevância para a história da arquitetura da cidade do Porto, até porque, em questões de estrutura formal, segue na linha artística da Arte Nova, onde predomina a tónica ornamental florista, naturalista e curvilínea, com a grande profusão de espelhos em toda a fachada.

Em questões decorativas, o Palladium, a par com outros estabelecimentos seus contemporâneos, “trouxe a Arte Deco para o espaço interior dos cafés portuenses,

448

Ibidem.

449

COSTA, Maria Teresa Castro – Os Cafés do Porto, p. 11. Figura 131: Edifício projetado por Marques da Silva, onde se localizou o Café Palladium. Imagem de meados do século XX.

Fonte: COSTA, Maria Teresa Castro – Os Cafés do

Porto, p. 11.

Figura 132: Folha representativa do capital que os acionistas do Café

Palladium detinham.

Fonte: DIAS, Marina Tavares; MARQUES, Mário Morais – Porto

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inserido num edifício que mantinha traços estruturais de Arte Nova”450. De facto, este café possuía uma decoração interior luxuosa e muito requintada, com paredes onduladas e rasgadas por grandes vãos espelhados, onde predominavam os sumptuosos espelhos, os magníficos candelabros, as mesas redondas com tampos em mármore e pernas em madeira, preciosamente trabalhada, tudo ao gosto Arte Deco [Fig. 133]. Destacavam-se como grande novidade para a época, “as colunas de vidro cor-de-rosa espelhado e gravado a ácido, em vários tons, e os néons, que iluminavam o interior e o exterior”451.

Em plena véspera de inauguração, António Ferro (escritor, jornalista e político português), acompanhando uma delegação espanhola, foi recebido no Palladium ao som do hino dos dois países. Esta efeméride prefigura bem o prestígio que este café iria alcançar, no seio da sociedade portuense daquela época.

De facto, o ambiente que aqui se viveu, ao longo dos meados do século XX foi, verdadeiramente, glamoroso e de grande animação diária. Sobre o piso térreo do estabelecimento, e em concreto, o sobrelevado salão de chá, informa-nos, com nostalgia, o engenheiro João António Ferreira Lamas que, passando as tardes naquele espaço, numa mesa grande e redonda, sentia “o sussurro indistinto das conversas alheias, que não dava para distrair mas era suficiente para não deixar adormecer”452. Juntamente com João Lamas reunia-se o seu colega da Faculdade de Engenharia, Jorge de Sena, que mais tarde frequentou este sobrelevado, assiduamente, com “alguns dos escritores da Presença: José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Sant’Anna Dionísio, Alfredo Pereira Gomes e Alberto de Serpa”453. Também aqui se juntavam os então alunos das Belas-Artes: Nadir Afonso e Júlio Resende, entre muitas outras personalidades ilustres das artes, da política, da literatura, do jornalismo e do comércio, de meados do século XX [Fig. 134].

450

LOFF, Manuel; FERREIRA, Silva – História do Porto – Insubmisso à Tirania: A Cidade Durante a

Ditadura, p. 69.

451 DIAS, Marina Tavares; MARQUES, Mário Morais – Porto Desaparecido, p. 170. 452

LAMAS, João António Ferreira – Breves Notas Recordativas da Vida do Engenheiro Civil Jorge de Sena Durante o Seu Tempo de Estudante Universitário. Ingenium – Revista da Ordem dos Engenheiros. Lisboa, Fevereiro de 1988. Citado por DIAS, Marina Tavares; MARQUES, Mário Morais – Porto

Desaparecido, p. 172. 453

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No primeiro piso, o ambiente não era menos animado. À volta da galeria projetada por Marques da Silva, juntavam-se os jogadores do dominó, das damas, do xadrez, das palavras cruzadas e das charadas. Aqui se reunia, assiduamente, o grupo de xadrez de onde saíram os grandes campeões daquela modalidade, tal como, os membros do Clube de Xadrez do Porto. Foi também aqui recebido, em 1941, o famoso campeão mundial de xadrez da época, Alexandre Alekhine, aquando de uma sua visita à cidade do Porto454.

Sendo o bilhar uma atividade de grande relevo e importância em meados do século XX, o Palladium era, sem dúvida, o local privilegiado para a sua prática. No seu segundo andar com onze mesas, “onde se podia jogar desde o bilhar livre até ao das três tabelas, o russo e o snoocker”455, ocorreram os mais aferroados desafios, envolvendo os mais afamados jogadores da época. Ficou na memória de muitos portuenses um célebre campeonato, que tinha ocorrido em todos os salões de bilhar dos principais cafés da cidade, e que teve a sua final derradeira no Palladium, dando a vitória ao mais prestigiado jogador da época – o Zé Almeida. Helder Pacheco conta-nos, de forma muito eloquente, este episódio:

454 Cf. Ibidem. 455

PACHECO, Helder – Porto: da Cidade e da Gente. Porto: Edições Afrontamento, 2003, p. 198. Figura 133: Interior do Café Palladium,

em meados do século XX.

Fonte: DIAS, Marina Tavares; MARQUES, Mário Morais – Porto

Desaparecido, p. 169.

Figura 134: Algumas personalidades ilustres em tertúlia, no interior do Café Palladium, em meados do século XX. Da esquerda para a direita: João Alves, Sant'Anna Dionísio, Carlos Sanches, José Régio, Jorge de Sena, Alfredo Pereira Gomes, Adolfo Casais Monteiro e Alberto de Serpa. Imagem recolhida em 11 de julho de 2012. Fonte:

http://antonioquadros.blogspot.pt/2011/03/cafe- palladium.html.

194 Figura 135: Estado atual do edifício projetado por

Marques da Silva, onde se localizou, outrora, o Café

Palladium e se encontram, hoje, as instalações da FNAC. Foto tirada em 17/07/2012.

Fonte: Imagem do autor.

“As coisas corriam-lhe bem. O Zé, apoiado no taco, concentradíssimo, assistia, impávido e sereno, ao jogo do antagonista, que, a continuar assim, lhe daria autêntica pisa. E o dito-cujo continuava o baile enquanto o Zé […] nem desviava os olhos do pano verde onde deslizavam as duas bolas brancas e a vermelha. […] E como a diferença de pontos era já considerável, ninguém, na sala, acreditava que fosse possível a recuperação. O Zé Almeida estava condenado à derrota. Mas, de repente, sem ele contar, a bola de partida do antecipado vencedor bate na branca, mas falha a vermelha por diferença mínima. […] Era a vez do Zé pegar no jogo. […] A primeira tacada foi perfeita. A segunda idem e, com o jogo na mão, ia acertando sempre. Com precisão, as carambolas sucederam-se, até acontecer a jogada monumental da noite: o jogador, com habilidade e arte nunca observadas, encostou as três bolas a um canto da mesa e, em pequenos toques, foi carambolando com a bola do ponto, que era a sua, as outras duas, fazendo com que todas, sem se desviarem das tabelas, dessem várias voltas ao bilhar. […] Aproximando-se das cento e cinquenta carambolas, número alcançado pelo outro finalista, continuou carambolando e ultrapassou-o. […] Mas o Zé queria, além do impossível, conseguir o milagre: impedir que o adversário voltasse ao jogo, até o tempo se extinguir. Então, o milagre aconteceu e o jogo terminou com a vitória do seu herói, numa série ininterrupta de duzentas carambolas […]”456.

Com este pequeno episódio, facilmente depreendemos qual o ambiente de verdadeira competição, que aqui se vivia em meados do século XX. Nem sempre este afamado salão de bilhares servia, apenas, para tardes e noites de puro lazer e diversão. Os aferroados campeonatos de snoocker foram uma realidade assídua, durante esta época.

No terceiro piso, onde se localizava o cabaret (salão de baile), o ambiente era já bem mais requintado e seleto. Equipado com mesas de chá, redondas, a toda a volta, onde se sentavam as famílias, sendo-lhes aí servido o que ficaria

conhecido por chá-dançante, era neste espaço que compareciam muitos pais a acompanhar as filhas casadoiras, nos serões de domingo à tarde, em que atuava, assiduamente, uma orquestra ao vivo que, “quando atacava os tangos, slows ou valsas, os cavalheiros atravessavam a sala, apertavam o botão do

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casaco, aproximavam-se da mesa onde estava a dama requistada, faziam pequena vénia e, cheios de salamaleques, perguntavam: Dança?”457. A boa educação era reinante e por esta citação poder-se-á imaginar o ambiente de glamour e delicadeza que se vivia neste salão do Café Palladium, durante estes memoráveis tempos.

Com uma atividade de trinta e cinco anos de sucesso, no seio da sociedade portuense de meados do século XX, o Café Palladium acabou por encerrar no dia 31 de março de 1974. Atualmente, todo o espaço que servia de instalações ao café encontra-se ocupado pela FNAC [Fig. 135], não tendo sido conservado, à exceção da fachada do edifício, qualquer indício da estrutura formal interior do antigo café.

1.6.1. Identificação do Café Palladium com os três critérios de definição e valorização de um Café Histórico

Pelo que foi possível verificar anteriormente, depreende-se que o Café

Palladium responde, na íntegra, aos três critérios de definição e valorização de um café histórico, previamente estabelecidos.

O critério de valor para a história é verificado pelo facto de este café ter sido frequentado por ilustres personalidades da sociedade portuense de meados do século XX, salientando-se, como foi atrás referenciado, nomes como José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Sant’Anna Dionísio, Alfredo Pereira Gomes e Alberto de Serpa – ligados à editora Presença. E os artistas Nadir Afonso e Júlio Resende, que por aqui deambularam frequentemente. Também fica para a história o facto de este café se ter localizado no primeiro edifício da cidade do Porto a utilizar estrutura de betão armado numa construção arquitetónica.

O valor artístico é facilmente identificável neste café, pelo facto de o mesmo se ter localizado no interior de um dos mais célebres edifícios projetados por Marques da Silva, e que obedece às características que identificam o estilo Arte Nova na cidade do Porto. Este critério também se identifica no interior do estabelecimento, que, como foi possível verificar anteriormente, se encontrava decorado com uma ornamentação de cariz Arte Deco, onde predominavam os sumptuosos espelhos, os magníficos

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candelabros, as mesas redondas com tampos em mármore e pernas em madeira, entre muitos outros aspetos decorativos.

Já o critério de valor de memória justifica-se pelos célebres campeonatos de bilhar que se realizaram no interior do Palladium, com especial relevo para a efeméride que nos foi descrita por Helder Pacheco, sobre a vitória de Zé Almeida – um dos mais prestigiados jogadores de bilhar da cidade do Porto, em meados do século XX – numa das grandes finais de um campeonato de snoocker, que foi realizada no interior do Café

Palladium, como foi possível descrever anteriormente. Também os célebres bailes do

terceiro piso do café, que eram realizados nas tardes de domingo, se encontram, certamente, na memória nostálgica de alguns cidadãos portuenses, que ainda hoje se recordam desses tempos.