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Capítulo I – Cafés Históricos: critérios de definição e valorização

3. Critérios de definição e valorização do Café Histórico como

3.1. Valor para a História

O valor para a história de um determinado bem – seja ele de cariz cultural, social ou político – manifesta-se, no nosso entender, como um dos mais relevantes critérios, no sentido de definirmos a identidade de uma determinada sociedade. Segundo Maria Oliveira, “os hábitos sociais e culturais estão intimamente ligados com o local onde o indivíduo nasceu e vive, […], com as suas tradições e costumes, com a classe social em que se insere, com a situação económica em que se encontra e com a formação que tem”133. Os costumes sociológicos e culturais de uma sociedade organizam-se, de forma muito condicionada, por este tipo de fatores, realidade esta que não se verifica somente na atualidade.

Ao longo da história, este tipo de hábitos e atividades sociais e culturais foram- se alterando e atualizando de forma permanente, “havendo muitas vezes a ânsia de procurar o mais novo, mais moderno e, claro está, mais socialmente reconhecido”134. No âmbito desta realidade, desde sempre se manifestou uma relação muito próxima entre o poder – de conotações fundamentalmente políticas – e a cultura. Na linha de pensamento de João Lopes, “o que se passa no campo cultural não é independente do estado das relações objetivas entre posições e disposições nos outros campos, em especial no campo do poder”135. Este poder, como facilmente podemos depreender, identifica-se, na sua génese primordial, com as realidades políticas que se foram diferenciando ao longo da história, e às quais a sociedade e a sua cultura são indissociáveis.

Munidos destes princípios, e segundo defende Hanningan, percebemos que, desde o século XIX, a população das cidades – e a cidade do Porto não é exceção, apesar de todas as agitações socias, culturais e políticas que se fizeram sentir neste espaço urbano, ao longo do século XIX –, através do aumento de salários e do facto das mulheres começarem, lentamente, a fazer parte da classe trabalhadora, passa a dispor de mais tempo para as atividades de lazer. É, então, no seio desta realidade, que os cafés começam a ser locais de frequência cada vez mais assídua, em parceria com as idas à

133

OLIVEIRA, Maria Alexandre Bacharel – Tipificação dos espaços privados, p. 13.

134

Ibidem.

135

LOPES, João Teixeira – A cidade e a cultura: um estudo sobre práticas culturais urbanas. Porto: Edições Afrontamento, 2000. Citado por OLIVEIRA, Maria Alexandre Bacharel – Tipificação dos

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ópera, aos museus, às corridas de cavalos e, para as classes mais baixas da sociedade, a frequência dos teatros de variedades, verificando-se, no trânsito do século XIX para o XX, uma afluência cada vez mais acentuada aos cinemas136.

Os cafés passam, assim, a ser considerados os locais de culto dos novos hábitos, fontes dos pensadores ou escolas do saber, como alguns os intitulavam, preparando os tempos que iam mudando:

“Em Viena, Mozart jogava bilhar nos cafés; Schubert fazia deles escritório. Goethe deixou escrito: São uma espécie de clube democrático (…),

onde se pode ficar sentado durante horas, a discutir, escrever, jogar às cartas, receber correio e, sobretudo, folhear um número ilimitado de jornais e de revistas. Em Veneza, o Florian guarda memórias de Byron, Dickens, Prouste e

Youcenar. Em Paris, a revolução começa praticamente à mesa do vetusto (e ainda existente) Procope; a vasta bibliografia sobre os cafés reúne nomes como Diderot, Montesquieu, Goncourt, Baudelaire e Verlaine. Todos poderiam ter escrito nos próprios cafés as frases que lhes dedicaram. Balzac resumiu-as todas: O café é o parlamento do povo”137. (Itálicos nossos).

Estes testemunhos facilmente nos fazem perceber o valor cultural e político dos cafés, sem dúvida, indiscutível. Mas, para melhor comprovarmos esta realidade, nada melhor como aludirmos às palavras de Germano Silva que, referindo-se à cidade do Porto, afirma ter sido o Café Guichard local onde pontificavam “Camilo, Arnaldo Gama, Faustino Xavier Novais, António Alves Martins (futuro bispo de Viseu), António Girão e os Brownes (Manuel e Ricardo Clamouse Browne)”138. Adianta ainda o mesmo autor que este botequim “serviu a Junta do Porto e bateu-se na Revolução da

Maria da Fonte”139. Este último aspeto certamente não oferecerá dúvidas quanto ao valor histórico, de cariz político, que este café desempenhou. Esta realidade manifesta- se presente em muitos outros cafés portuenses que, a exemplo do Guichard, se encontram já extintos, tal como, em alguns, que ainda se conservam ativos na atualidade.

Pequena clareira interior, em espaço público, o café foi, desde a sua fundação, o local onde, à volta das suas mesas, se leu, escreveu, pensou e trocou ideias. Foi a “casa

136

Cf. HANNINGAN, John – Fantasy City. Pleasure and profit in the postmodern metropolis. Londres: Routledge, 1998. Citado por OLIVEIRA, Maria Alexandre Bacharel – Tipificação dos espaços privados, p. 13.

137

DIAS, Marina Tavares – Os Cafés de Lisboa, p. 8.

138

SILVA, Germano – Porto: nos atalhos da história. Alfragide: Casa das Letras, 2009, pp.218-219.

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dos que não tinham casa onde receber, escritório dos que não dispunham de outra mesa onde trabalhar, […]. Do Romantismo à Geração de 70, dos modernistas aos surrealistas, dos presencistas aos neo-realistas, todos escreveram sobre o mármore das mesas”140. Este excerto certamente comprova o valor para a história cultural, que estes estabelecimentos possuem.

O café era, assim, o local onde se passava o dia em ritmo de conversa, obedecendo aos caprichos da moda. Pelas mesas destes espaços de lazer e convívio, “exibiam-se cigarreiras, jornais do dia, luvas de pelica, encadernações de percalina, dotes oratórios, relógios e filosofias de bolso”141. A frequência dos cafés significava fazer parte de uma elite e apreciar a inveja que isso suscitava noutros. Pelas palavras ali proferidas, marcaram-se encontros históricos e duelos de morte. Na linha de pensamento de Marina Dias percebemos que “os cafés reconstruíam no ego da gente culta aquilo que as ruas nele desfaziam a cada investida da vida real. […] Os seus frequentadores conheciam de cor os cantos e as caras […]. Estavam ali em casa como nunca estavam em casa: sem famílias, encargos, assuntos quotidianos”142. Todos estes aspetos comprovam o seu valor social, que nos permite entender sociedades, nas quais nunca estivemos nem estaremos inseridos, mas que nos identificam como seres de um determinado território geográfico.

A formação política do portuense passou sempre pelo interior dos cafés, em volta das suas mesas, transformando estes espaços nos primeiros fóruns do povo. Por estes locais, “muitos manifestos e abaixo-assinados partiram das suas mesas e nelas circularam de mão em mão. Por isso todos os ditadores, todos os moralistas os odiaram de morte”143. Certa é a importância, mais uma vez aqui comprovada, dos cafés

históricos, no âmbito da história política de um determinado território.

Pelos fundamentos atrás enunciados, podemos perceber que o critério de valor

para a história: cultural, social ou política, define as características base que um

determinado estabelecimento – no caso particular deste estudo, os cafés da cidade do Porto – deverá possuir, para poder ser detentor da denominação reconhecida pela

140

DIAS, Marina Tavares – Os Cafés de Lisboa, p. 9.

141

Ibidem, p. 8.

142 Ibidem. 143

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expressão café histórico. No âmbito específico deste estudo, direcionado para os cafés

históricos do Porto, e em questões gerais e essenciais, dois aspetos se destacam: a

conveniência de estes espaços terem sido frequentados, assiduamente, por personalidades ilustres, tais como: literatos, artistas, políticos, jornalistas, entre outros, que se imortalizaram na história cultural, social ou política da cidade do Porto, e, o facto de estes estabelecimentos terem servido de locais de discussões, reuniões, tertúlias e delineamentos estratégicos, que decidiram e conduziram ao advento de alguns dos mais relevantes acontecimentos culturais, sociais e políticos da história da cidade do Porto.