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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

2- AS RELAÇÕES ORIGINÁRIAS COM O OUTRO

2.4 O caminho para a ação

A descrição do Nós-sujeito indica os caminhos que Sartre trilhará na sequência. Pois, enquanto o Nós-objeto “é a revelação de uma dimensão da existência real e corresponde a um simples enriquecimento da experiência original do Para-outro” 309, o Nós-sujeito “é uma experiência psicológica realizada por um homem histórico, imerso em um universo trabalhado e em uma sociedade de tipo econômico definido; [porém,] nada revela de particular, é uma ‘Erlebnis’ puramente subjetiva” 310. Vislumbra-se aqui, ainda que timidamente, a necessidade de ampliar o horizonte estreito da intersubjetividade também para o domínio social e histórico. Mas, porque a experiência da alteridade é originariamente alienação, o conflito, e

305 SARTRE, 2007, p. 468. 306 SARTRE, 2007, p. 468. 307 SARTRE, 2007, p. 468. 308 SARTRE, 2007, p. 468. 309 SARTRE, 2007, p. 470. 310

não o Mitsein, é a essência da intersubjetividade311. Nem a experiência do Nós-objeto (que exige o surgimento do terceiro), nem o Nós-sujeito (experiência psicológica que requer um conhecimento prévio acerca do outro) poderiam alterar o sentido original do Para-outro.

O Para-si não é somente um ser que surge como nadificação do Em-si que ele é e negação interna do Em-si que ele não é. Essa fuga nadificadora é inteiramente recapturada pelo Em-si e fixada como Em-si desde que o outro aparece. O Para-si, sozinho, é transcendente ao mundo, é o nada pelo qual há coisas. O outro, ao surgir, confere ao Para-si um Ser-no-meio-do-mundo como coisa entre coisas. (...) Aprendemos, em primeiro lugar, que o Para-si era nadificação e negação radical do Em-si; agora, constatamos que, pelo simples concurso do outro e sem contradição alguma, ele também é totalmente Em-si, presente no meio do Em-si. Mas esse segundo aspecto do Para-si representa seu lado de fora: o Para-si, por natureza, é o ser que não pode coincidir com seu Ser-Em-si312.

Portanto, qualquer tentativa do Para-si identificar-se a um Ser-Em-si, criar um Ser-Em-si-Para-si, seja nas atitudes de má-fé, seja nas relações intersubjetivas, é fadada ao fracasso. Mas a experiência do Nós-sujeito sinaliza algo importante. Como observa Angèle K. Marietti, ela nos coloca “no caminho da ação em sua forma coletiva e histórica”, pois, “após a teoria geral do Ser, [o Nós-sujeito abre o caminho para] a parte mais extensa de O ser e o

nada: a teoria da ação” 313. De fato, o malogrado projeto de Ser leva à constatação de que, para a realidade humana, “ser reduz-se a fazer” 314. A ação surge, em O ser e o nada, como “assunção da contingência” 315 que é o fracasso inevitável do desejo-de-ser do Para-si316. O Para-si não é, jamais pode ser. Resta a ele se fazer. O fracasso ontológico desemboca em uma tarefa prática, existencial.

Em linhas gerais, naturalmente, Sartre descreverá o horizonte da ação com base na incontornável liberdade humana. Existente injustificável, sem fundamento e sem pré- determinações (sejam exteriores, sejam interiores), o homem é o único responsável por

311 Cf. SARTRE, 2007, p. 470. 312 SARTRE, 2007, p. 470. 313 MARIETTI, 2005, p. 53. 314 SARTRE, 2007, p. 521.

315 Valemo-nos da ideia de Hadi Rizk em “L’action comme assomption de la contingence”. In: BARBARAS, 2005.

316 Lembremos que a própria argumentação de O ser e o nada, após a Introdução da obra, na qual se revelam as

duas dimensões de ser, traça o seguinte itinerário: primeiramente, Sartre apresenta o Para-si como Nada e, por conseguinte, como projeto de autofundação ou desejo-de-ser (Em-si-Para-si). Nesse sentido, se explicam os três ek-stases do Para-si na tentativa de realizar esse desejo originário: a má-fé, a reflexão impura e, por último, o ek- stase mais radical, o Ser-Para-outro. Com a demonstração do fracasso inevitável do desejo-de-ser, Sartre desloca a argumentação do plano do ser para o plano da ação, esfera na qual seria possível contornar existencialmente o projeto que está na raiz do Para-si. Daí que, na sequência de O ser e o nada, Sartre se propunha a constituição de uma “moral da esperança e da salvação”.

estabelecer seu projeto existencial317, isto é, os móveis (subjetivos) e motivos (objetivos) de sua ação, seus fins e seus valores. E é justamente na esfera da ação, que se confunde com nossa existência concreta, que a alteridade poderia ser vivida (isto é, construída) de outras formas. No entanto, O ser e o nada se limita a demarcar o horizonte (“inautêntico”, convém adiantar) no qual o homem age. Para que a intersubjetividade pudesse suplantar o quadro conflituoso originário, seria preciso uma ética capaz de orientar essas novas relações. É o que se expõe a seguir.

317 Para Sartre, a liberdade se traduz na existência do homem como pro-jeto. Isto significa que o Para-si define-se por seu fim; ou, em outros termos, a realidade humana só pode ser compreendida a partir de suas finalidades. Cada homem decide livremente seu projeto original, que nada mais é que a forma originária de ser-no-mundo, isto é, a maneira pela qual ele se relacionará com o Em-si e com sua facticidade. Esse projeto original, que ilumina (mas jamais determina) nossas escolhas e nossas ações, porém, não é algo eterno e imutável. Pelo contrário, uma vez que a liberdade não tem apoios, “o projeto, para ser, deve ser constantemente renovado” (SARTRE, 2007, p. 525). Trazer à luz a escolha desse projeto original, para poder compreender o indivíduo enquanto totalidade, seria papel da Psicanálise existencial. Ocorre que, segundo Sartre, na maior parte do tempo, para fugir à angústia e à responsabilidade advinda desse projeto, bem como no intuito de procurar justificativas exteriores para nossos atos, utilizamos de recursos de má-fé. Assim, a Psicanálise Existencial se justifica como “um método destinado a elucidar, sob uma forma rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, isto é, faz-se anunciar a si mesma aquilo que ela é” (SARTRE, 2007, p. 620). Nesse sentido, ela é uma “descrição moral, pois nos fornece o sentido ético dos diferentes projetos humanos. Ela nos indica a necessidade de renunciar à psicologia do interesse, bem como a toda interpretação utilitária da conduta humana, nos revelando a significação ideal de todas as atitudes do homem” (SARTRE, 2007, p. 674). Assim, prossegue Sartre, “a ontologia e a psicanálise existencial (ou a aplicação espontânea e empírica que os homens sempre fizeram dessas disciplinas) devem revelar ao agente moral que ele é o ser pelo qual os valores existem. É então que sua liberdade tomará consciência dela mesma e se descobrirá na angústia como a única fonte do valor, e como o nada pelo qual o mundo existe” (SARTRE, 2007, p. 675). Para maiores detalhes a respeito da Psicanálise Existencial, bem como sobre a contraposição à psicanálise clássica, ver: SARTRE, 2007, p. 602-20. O trabalho de Betty Cannon, Sartre et la psychanalyse, além de esclarecer aspectos cruciais do pensamento de Sartre a respeito do tema, traz também uma série de aplicações práticas (clínicas) deveras ilustrativas do método da Psicanálise Existencial (cf. CANNON, 1993).

3- OS IMPASSES DA ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A