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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

3- OS IMPASSES DA ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A “MORAL DA ESPERANÇA E DA SALVAÇÃO”

3.1 Solipsismo, encarnação e conflito: os obstáculos da ontologia fenomenológica

Dentro da economia interna de O ser e o nada, o surgimento do outro ocorre após a análise do conhecimento. Recordemos que, nas duas primeiras partes da obra, Sartre desvela a realidade do Para-si em um contato solipsista com o Ser. A partir da questão gnosiológica, é o corpo conhecido pelo outro que pauta a necessidade de se apreender também esta outra dimensão constitutiva da realidade humana, o Para-outro. Assim, explica Renaud Barbaras, o “recurso ao para-outro vem conciliar o [irrecusável] respeito fenomenológico do corpo com o sistema de oposições definido na primeira metade de O ser e o nada” 318.

De fato, conforme assinalado desde o início, no horizonte teórico delineado desde a introdução de O ser e o nada, não há interação categorial, mas oposição bruta,

antinomia. Reciprocidade sempre imperfeita. Não há dialética, no sentido forte do termo319. Não surpreende, portanto, que este sistema de oposições tenha sido conservado ao longo do exame da alteridade. Conforme a prévia descrição do Para-si como nada, logo, como liberdade absoluta, o surgimento do outro, isto é, meu encontro com ele, só pode assumir o caráter tenso sublinhado na Terceira Parte de O ser e o nada. Deparar-se com o outro, na filosofia de Sartre, significa para o Para-si “perder seu mundo”, a soberania de sua plena liberdade. Daí a noção, consagrada na peça Entre quatro paredes (Huis clos) de que “o inferno são os outros” 320. A relação com o outro é infernal justamente porque, em sua presença, nossa liberdade é revelada de modo mais profundo no instante de sua alienação, nossos possíveis são solidificados, nosso ser é fixado sem nosso concurso; porque, enfim, não posso controlar outra liberdade.

Do ponto de vista da alteridade, porém, a alienação da liberdade diante do olhar alheio tem um aspecto filosoficamente positivo, como vimos: a confirmação da

existência do outro. Se o outro existe, se sou Para-mim e Para-outro, tal como o outro também é Para-si e Para mim, logo, o obstáculo do solipsismo, fantasma invariavelmente presente na tradição filosófica cartesiana, seria derrubado. Não obstante, é preciso notar que essa solução

319 Na verdade, o estatuto da dialética em O ser e o nada é uma questão controversa. Um filósofo abertamente

anti-dialético, como Guillaume Guindey, atesta: “Se devêssemos entender por este qualificativo exatamente o que Hegel entendia ao formular suas concepções, nenhum outro pensamento, à exceção do seu, o mereceria. Mas, se estabeleceu como usual considerar como dialética toda filosofia segundo a qual existe, no seio do ser, um movimento auto-propulsor e auto-gerador animado, não por qualquer Deus ou princípio transcendente, mas por uma força interna que, sob nomes variados, tais como ‘alienação’, ‘cisão’, ‘nadificação’, ‘objetivação’, é sempre a negação. Se nos adequamos a este uso, não resta dúvida de que a filosofia sartriana deve ser ‘dialética’” (GUINDEY, 1947, p. 79). Mas, isso bastaria para classificar a ontologia fenomenológica com a alcunha de dialética? Philippe Cabestan, por exemplo, chama a atenção para o fato de que, na verdade, O ser e o nada permanece “silencioso” sobre este conceito. “É certo que o Em-si sartriano não se desdobra de nenhuma maneira por uma série de negações e de negações de negações. O Para-si, tanto quanto o Em-si-Para-si, não são – se nos ativermos ao ponto de vista ontológico – um momento de desdobramento do Em-si. Não esqueçamos que o nada, para Sartre, permanece exterior ao ser que é em si” (CABESTAN, 2004, p. 390-1). Assim, complementa Cabestan, nos anos 1940 (Materialismo e revolução, de 1946, tornaria explícita essa posição), a dialética é, para Sartre, “um modo de desenvolvimento sintético pertencente somente à ideia e à reflexão da ideia nela mesma” (CABESTAN, 2004, p. 391). O não-ser, em Sartre, não era o contrário, mas o contraditório do ser, o que impediria a assimilação imediata de Guindey entre uma filosofia do negativo e uma filosofia dialética. Assim, se algo minimamente próximo a uma dialética há no horizonte sartriano de 1943, é uma dialética “do mesmo e do outro – não há transformação da antítese inicial, nem síntese, nem progresso. Por outro lado, nessa dialética, um dos termos tem o privilégio sobre o outro, e mantendo este à distância, o incorpora, porque é o termo que aciona todo o movimento do conhecimento. A autonegação do nada é a mola propulsora pela qual ele incorpora o ser” (CHAUÍ, 1967, p. 188). Nesse sentido, Merleau-Ponty denominaria a filosofia sartriana como “analítica”, justamente por não haver circularidade ou equilíbrio, tampouco interação dialética, mas sempre a necessidade de se escolher entre o ser e o nada, entre o polo objeto e o polo sujeito, sendo que a opção é sempre a favor do Para- si. No ensaio de ontologia fenomenológica há, quando muito, e implicitamente, uma dialectique manquée, em particular quando se pensa a relação entre o Para-si e o Em-si à luz do conceito de situação. O interessante a se notar é que, posteriormente, mesmo no momento de sua aproximação com o marxismo, esta orientação heterodoxa da dialética (que, possivelmente, remonta à influência do trabalho de Jean Wahl, como citado em nossa Introdução) será, em sua essência, conservada, criando uma tensão metodológica permanente na Crítica da

razão dialética. 320

encerra alguns questionamentos importantes, que não poderíamos deixar de pontuar. Pedro M. S. Alves, em artigo no qual trata do tema da intersubjetividade em Husserl e Sartre, ajuda a identificá-los:

Há duas questões de natureza diversa de que uma teoria da intersubjetividade se deve ocupar. Uma é: como é que vejo um outro sujeito e tenho certeza de sua existência? Outra é: como é que me vejo na consciência que tenho de um outro sujeito? Sartre respondeu à segunda crendo que respondia à primeira. Daí todas as ambiguidades e insuficiências da sua posição 321.

Essas “ambiguidades e insuficiências” decorreriam precisamente do modo pelo qual Sartre é obrigado a conceber a alteridade a partir de suas categorias ontológicas fundamentais. Com efeito, observa Alves, o outro, em O ser e o nada, aparece como um “puro prolongamento da reflexão, [que] apenas intensifica a dualidade reflexiva e acrescenta- lhe uma segunda negação interna” 322. Em outros termos, como ek-stase que radicaliza o movimento de constituição de um Si ideal. Ao concebê-lo nesses termos, porém, o outro tem sacrificada sua alteridade; torna-se apenas “uma ocasião e um suporte para a consciência de mim mesmo” 323. Por isso, completa Alves, “ter consciência de um outro sujeito é, sartrianamente, vermo-nos pela hipóstase de uma outra consciência” 324.

A manipulação das categorias basilares pelas quais Sartre intenta empreender um estudo da realidade humana sinaliza, de fato, alguns impasses insolúveis. Merleau-Ponty, por exemplo, cujo testemunho é sempre relevante no que diz respeito à filosofia sartriana, dizia que o Para-si – com seu correlato, o Em-si – sempre foram as preocupações de Sartre: “as formas mistas do Para-outro exigem a cada instante que pensemos ‘como o nada vem ao mundo’. A verdade, porém, é que ele não vem, ou que só fica nele por um instante” 325. Nesse sentido, observava que, em Sartre, desde que se concebia a consciência como pura negatividade e o mundo como pura positividade, tudo estaria pronto, não para uma experiência de outrem, mas para uma experiência da passividade do sujeito no interior do ser326. Na perspectiva merleau-pontiana, ao projetar uma consciência indiferente à transcendência do ser e do mundo, Sartre, mesmo com toda a radicalidade com que tenta equacionar as aporias da filosofia clássica, jamais poderia se ver livre dos nós impostos pelo

cogito cartesiano e da metafísica dele decorrente. Por conseguinte, a pureza negativa do Para- 321 ALVES, 2007, p. 107-8. 322 ALVES, 2007, p. 107. 323 ALVES, 2007, p. 107. 324 ALVES, 2007, p. 107. 325 MERLEAU-PONTY, 2000, p. 198. 326 Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 87-8.

si não lhe permitiria ultrapassar a ilusão solipsista; o encontro com o outro “não exige, para ser pensado, nenhuma transformação da ideia que faço de mim mesmo. Ele atualiza o que já era possível a partir de mim” 327.

Nesse sentido, reforça Dan Zahavi, a filosofia sartriana não deixa espaço para uma “personalizing alter-ation” 328 no encontro original com o outro. Isto porque, embora sua aparição em meu mundo traga consigo a revelação de uma dimensão de ser que sou sem poder conhecê-la (minha dimensão de outro-objeto), ela não acrescenta nada de propriamente

novo ao meu universo, mas apenas confirma minha facticidade, a existência de um dehors – como o próprio Sartre indica em diversos momentos – do qual, a bem da verdade, eu já tinha consciência, ainda que precária. Por isso, ainda nos valendo de Merleau-Ponty, não parece despropositado afirmar que o outro que surge na Terceira Parte de O ser e o nada é tão somente um outro “sem rosto”, sem identidade, como uma ipseidade exterior ratificada pela positividade reinante da minha ipseidade329.

Assim, em nosso entendimento, se por um lado, a análise sartriana do Ser-Para- outro acentua, com razão, a insuperável transcendência e a alteridade do outro, contra qualquer tentativa de dissolvê-las em alguma modalidade de “supra-consciência”, por outro, essa alteridade, ao mesmo tempo, pode vir a ser anulada em uma nova (ainda que mais sutil) forma de solipsismo. Porque não posso compartilhar de sua perspectiva, porque estamos irremediavelmente encerrados em nosso circuito de ipseidade – no qual cada um surge ao outro apenas como um incômodo –, porque somos duas interioridades absolutas, e só somos externos a nós mesmos (isto é, partes de um mesmo mundo) quando nos convertemos em objetos para outrem, qualquer relação entre sujeitos torna-se, a rigor, impraticável. Em Sartre, afirma com boa dose de razão Merleau-Ponty, “há uma pluralidade de sujeitos; não há intersubjetividade” 330.

É verdade que o encontro com o outro se dá num mundo cujo sentido é constituído livremente pelo próprio Para-si. Deste modo, poderia ser alegado, a favor de Sartre, que o papel do outro nesse mundo depende diretamente daquele sentido. Portanto, não necessariamente viverei, no domínio existencial, a determinação ontológica da alteridade como alienação. Nos quadros do pensamento sartriano, a Moral, aliás, será crucial para a formação de novas vivências, conforme ficará explícito mais adiante. Mas, com isso, há

327 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 99.

328 ZAHAVI, 2002, p. 273.

329 Como também nota Zahavi, “o que nossa experiência de sermos vistos indica é a presença de um Outro- sujeito pré-numérico (prenumerical), que Sartre equipara diretamente com um indiferenciado eles (on)” (ZAHAVI, 2002, p. 273).

igualmente de se reconhecer, desde já, que o destino da experiência intersubjetiva recai inteiramente no domínio da interioridade do sujeito, concentrando-se exclusivamente sobre cada um a responsabilidade por tentar reverter a inércia do projeto de ser. Afinal, cabe ao Para-si a última palavra em definir o outro como “meio” de realização de seu projeto ou, na melhor das hipóteses, como elemento constitutivo de um projeto transcendente. Logo, poderíamos afirmar que o outro se torna inessencial diante da essencialidade de meu projeto331. Assim, sua alteridade, ao mesmo tempo em que é posta, é esvaziada. Não por acaso, arremata Pedro Alves, “a consciência de si é o círculo em que fatidicamente sempre nos encerramos” 332. Toda tentativa de abandonar este círculo e encarar o outro só poderá resultar em conflito333.

A perspectiva do conflito como sentido original da intersubjetividade encontra na encarnação sua base fáctica. E, como não poderia deixar de ser, ele reforça a tese – subjacente à dificuldade sartriana em superar o solipsismo – da soberania da consciência; desta vez, não em relação a outra consciência, mas ao próprio corpo.

É verdade que Sartre advoga uma concepção fenomenológica na qual o homem e o mundo não são encarados como duas substâncias radicalmente separadas; pelo contrário, o homem existe, desde sempre, imerso no mundo. Dito de outro modo, o engajamento do Para- si encontra-se fenomenologicamente assegurado pela facticidade de seu ser-no-mundo, logo, por sua corporeidade. Contudo, é preciso observar que a ontologia do Em-si e do Para-si, a extrema oposição entre consciência e mundo, ameaçam a experiência da encarnação, justamente na medida em que ela tende a bloquear o entendimento daquele engajamento materializado no estatuto do corpo próprio ou, como O ser e o nada denomina, corpo-para- mim334. Senão, vejamos.

331 Enfim, o outro, deixando de ser apreendido enquanto tal, torna-se apenas um índice da facticidade de um projeto exclusivamente meu. Ainda que precise dele para apreender uma dimensão da verdade do meu ser que escapa à circunscrição das minhas vivências imediatas ou de minha reflexão, e que em sua liberdade ele seja capaz de interferir e mesmo modificar tal projeto, este nunca deixa de ser meu projeto, minha responsabilidade. Daí que, como novamente observa Merleau-Ponty, “o sujeito sartriano é absoluta individualidade e, por este meio, imediatamente, absoluta universalidade” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 162).

332 ALVES, 2007, p. 107.

333 Quer dizer, segundo Alves, a consciência sartriana encerrar-se-ia na solidão do soi-même e das reverberações de seu ser, isto é, de seus ek-stases (a cissiparidade reflexiva, o segundo ek-stase do Para-si e, depois, a cissiparidade intersubjetiva). Superar a cissiparidade intersubjetiva, porém, significaria anular completamente a subjetividade do outro, o que, como tão bem demonstra Sartre, é impossível; há sempre um nada que resiste à completa absorção na subjetividade alheia, tal como em qualquer tentativa de identidade plena consigo mesmo nas atitudes de má-fé. Daí o conflito que se segue como pano de fundo incontornável de nossas relações.

334 Como aponta Marilena Chauí: “O que o para-si e o em-si são, no instante em que seu movimento se instala,

Segundo Sartre, não posso captar teticamente meu corpo. Ou seja, não posso posicioná-lo como um objeto exterior, como se abordasse uma pedra diante de mim. Exceção feita a algumas situações muito particulares (quando uso uma mão para golpear a noz que se encontra na outra, conforme o exemplo apresentado no capítulo anterior), só posso apreendê- lo lateralmente, por intermédio de uma experiência que me desvele esse corpo, como a dor física, por exemplo335. Sendo assim, o corpo-para-si se define como “inapreensível contingência”, o Passado, aquilo que a consciência ultrapassa em direção ao seu projeto-de- ser, aos seus possíveis. É isso que autoriza o filósofo a definir o corpo como “o obstáculo que sou a mim mesmo” para ser-no-mundo, não se diferenciando, portanto, da “ordem absoluta do mundo, essa ordem que faço chegar ao ser ultrapassando-a, rumo a um ser-por-vir, rumo a um ser-para-além-do-ser” 336. Mas, neste caso, aceitando a tese sartriana, torna-se lícito comungar da observação feita por Luiz Damon dos Santos Moutinho, a saber: “ao confinar o corpo a tal estrutura, ao torná-lo inapreensível contingência, Sartre reintroduz uma ruptura entre consciência e corpo, uma vez que faz uma distinção entre o projeto, que é da ordem do para- si, e o passado que é corpo” 337. Diante disso, o dualismo, que parecia superado com a noção de ser-no-mundo, e a descrição do corpo como parte das estruturas da consciência não-tética (de) si, ontologicamente contemporâneo ao próprio ato de surgimento do Para-si, reaparece – embora com uma roupagem diferente do dualismo clássico cartesiano – pela porta dos fundos. A relação de extrema oposição entre consciência e ser renasce. Perde-se, finalmente, a própria aderência da consciência com o mundo (o que é o cerne da crítica merleau-pontiana a Sartre, diga-se338), na medida em que a consciência não é fruto da relação com o mundo, mas, como domínio previamente estabelecido, preside soberanamente seu contato com ele339.

como equívoco – se a fenomenologia o explica, a ontologia não pode fazê-lo. Se a ontologia o determina, a fenomenologia se depara com dificuldades insolúveis” (CHAUÍ, 1967, p. 189).

335 Nesse sentido, cumpre notar que o corpo é parte das estruturas daquilo que Sartre denomina consciência não- tética (de) si, isto é, a consciência em seu nível irrefletido, ainda que não se possa igualá-lo a essa consciência. 336 SARTRE, 2007, p. 366.

337 MOUTINHO, 2006, p. 125. A esse respeito, ver também: MOUTINHO, 2006, p. 140 – nota.

338 Merleau-Ponty, especialmente na proposta de sua última ontologia, defende a tese segundo a qual uma fenomenologia coerente deveria recolocar o pensamento numa existência pré-reflexiva, o mundo sensível, tal como ele existe para nosso corpo. Na perspectiva merleau-pontyana, a filosofia de Sartre, “pensamento do negativo puro,” é um caso de “pensamento de sobrevôo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 97), justamente porque impede essa aderência do Para-si ao Em-si, porque não parte da abertura ao ser, mas de uma “idealização, uma aproximação da forma total” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 119), isto é, da dicotomia radical “o ser é” e “o nada não é”. Para o autor de O visível e o invisível, a partir dessa oposição absoluta, não seria possível mergulhar efetivamente na experiência sensível, pré-objetiva, no “Ser bruto” que é a fonte de toda experiência. Diz o filósofo: “A analítica do Ser e do Nada estendia sobre as próprias coisas uma película impalpável: o ser para

mim delas que as deixava ver em si mesmas. Ora, enquanto de meu lado aparecia a camada de ser corporal em

que minha visão se atola (s’enlise), do lado das coisas [aparecia] uma abundância de perspectivas diferentes de nada e que me obrigam a dizer que a coisa mesma está sempre mais distante. A visão não é a relação imediata do Para-si ao Em-si, e [por isso] somos convidados a redefinir tanto o vidente quanto o mundo visto. A analítica do

Diante desse potencial dualismo consciência/corpo, um dualismo complementar, corpo/corpo, ainda ameaça surgir. O corpo se torna objeto revelado pelo olhar do outro, portanto, ao mesmo tempo em que é corpo-para-mim é corpo-para-outro. Não há interação entre essas esferas. A recusa sartriana ao fenômeno da “dupla sensação”, por exemplo, o atesta. Sartre, afinal, rejeita a ideia de que possa haver na experiência – primeiramente explorada por Husserl – na qual uma de minhas mãos toca a outra, alguma forma de ambiguidade, como defenderia o próprio Husserl e, sobretudo, Merleau-Ponty, para quem o corpo é sujeito-objeto, isto é, dotado de uma “reversibilidade iminente” 340. Para Sartre, tocar e ser tocado são dois domínios “radicalmente distintos” 341, pois não posso ser ao

mesmo tempo sujeito e objeto de uma mesma ação. Se por um lado essa ideia é logicamente válida nos termos em que Sartre a enquadra, por outro, se evidencia, a nosso ver, certa limitação explicativa provocada pela rigidez dicotômica de seu quadro conceitual. Novamente, porque não há interação possível (“ou sujeito, ou objeto”), passa longe do horizonte de Sartre, por exemplo, qualquer ideia de comunhão inter-dimensional, intermundo ou de um sentido do ser342 anterior à própria clivagem entre sujeito e objeto, como é possível depreender, por exemplo, do conceito merleau-pontiano de reflexão carnal, isto é, da carne como estofo da reversibilidade que sustentaria a “dupla sensação” 343 e superfície de união e separação entre eu e o outro.

que se vê, que tenta forçar a passagem em direção ao ser puro e ao nada puro instalando-se na visão pura, que se faz visionário, mas que é remetido à sua opacidade de vidente e à profundidade do ser” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 106). A seguir, Merleau-Ponty atesta: “Daí essa espécie de mal-estar que deixa uma filosofia do negativo: ela descreveu nossa situação de fato com uma acuidade jamais feita - e, entretanto, nos fica a impressão de que essa situação é sobrevoada, e ela realmente o é: quanto mais se descreve a experiência como uma mistura de ser e do nada, mais sua distinção absoluta é confirmada, mais o pensamento adere à experiência, e mais ele a mantém à distância” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 118).

339 Vale observar que, embora com alguns atenuantes, essa concepção da consciência não como produto, mas como esfera constituinte do mundo, reaparecerá, mais uma vez, na Crítica da razão dialética – ali, contra o materialismo marxista.

340 Cf. MERLEAU-PONTY, 2004, p. 191.

341 SARTRE, 2007, p. 343.

342 Assim, “o conceito de carne, tal como será tematizado por Merleau-Ponty, por exemplo, é estranho à proposta sartriana: a afirmação de uma inscrição essencial da consciência no registro da exterioridade, de um pertencimento originário da consciência no mundo que ela faz aparecer, não podem ter sentido para ele” (BARBARAS. In: MOUILLIE, 2000, p. 281). Novamente, é preciso esclarecer: não se trata de advogar que a concepção merleau-pontiana resolva todos os desafios postos pelo problema da alteridade. O que queremos ressaltar, com o auxílio de Merleau-Ponty, é que a estrutura conceitual adotada por Sartre (bem denominada em

O visível e o invisível de “analítica do ser e do nada”) bloqueia potencialmente a compreensão de fenômenos que escapam à fixa (ou não-dialética) dicotomia entre sujeito e objeto.

343 Katherine Morris tenta contornar essa dificuldade do seguinte modo: “Sartre poderia dizer que ser um sujeito (o que toca) é ainda necessariamente ser um objeto potencial (tocado) e ser um objeto (tocado), ao menos como corpo-como-objeto, é ser um sujeito potencial (o que toca). Ele poderia inclusive acrescentar que a minha consciência posicional de ser tocado é, ao mesmo tempo, uma consciência não-posicional da potencialidade da mão ser tocada, de tal maneira que o papel de sujeito e o papel de objeto de cada mão estão internamente relacionados” (MORRIS, 2009, p. 131). “Assim”, completa Morris, “poderíamos concluir que, enquanto Merleau-Ponty usa os termos ‘sujeito’ e ‘objeto’ para se referir à potencialidade de ser tocado, respectivamente,

Em face do exposto, é forçoso notar, porém, que a lógica da dualidade entre eu