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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

4- RUMO À CRÍTICA DA RAZÃO DIALÉTICA

4.3 Os desafios da passagem à Crítica da razão dialética

A esfera da moral (pelo menos aquela dos Cahiers) não permitira a Sartre equacionar os dilemas da intersubjetividade oriundos de O ser e o nada. Saint Genet, verdadeiro ponto de inflexão do trajeto sartriano, conquanto colaborasse para o aprofundamento do tema, demonstrando maior preocupação com as “condições objetivas”, a sociedade, e a situação histórica na qual se exerce a liberdade (frutos de sua crescente afinidade com a teoria de Marx), permanecia, como tratado acima, preso a uma concepção mistificada da sociedade (e da História), decorrente da própria estrutura do Ser-Para-outro através da qual Sartre buscava explicar a vida social. Com efeito, a simples ampliação do conceito de situação não poderia entregar, em solução de continuidade, aquelas dimensões, exceto de modo abstrato, uma vez que este movimento, por si só, se mostrava incapaz de resolver satisfatoriamente as antinomias da ontologia fenomenológica. Tais antinomias, é preciso acrescentar, pareciam vedar a Sartre a apreensão de toda a dinâmica das relações humanas, especialmente da sociedade capitalista contemporânea, lacuna que se chocava com

481 “O que se tem é o aumento da complexidade da estrutura de reciprocidade do ser-para-outro: não há nada

que escape à relação dual e recíproca entre os para-sis, exceto a força exercida por esse grande Outro que, pela vigilância do outro próximo, exerce influência sobre todos. Esse Outro está fora do para-si e, ainda assim, faz parte dele (ou a fórmula contrária, que daria no mesmo), Ele engloba todos e cada um dos homens” (SILVA, 2010, p. 158).

482 Voltaremos a essa discussão ao longo do exame da Crítica da razão dialética.

483 Neste momento, convém indicar que, malgré lui-même, Sartre ainda ecoa (assim como nos Cahiers) a clássica visão liberal de sociedade, baseada no reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos individuais autônomos, que se relacionam entre si a partir de seus próprios interesses e vontades, em condição de igualdade. Desconsidera, portanto, as relações de poder e força política que permeiam nosso contato e nossas atitudes em relação a outrem, criando esse cenário mistificado no qual todos seriam, para fins de interação e reconhecimento, iguais. Ora, como bem observava Bourdieu (que, de resto, trava um fecundo diálogo com Sartre, mormente no que diz respeito ao que ele denomina “ultra-subjetivismo” sartriano), todas as formas de interação social

estruturada, ou seja, todos os modos de relação intersubjetiva – sejam elas simbólicas (como a “troca de palavras”, a comunicação linguistica), sejam, acrescentemos, o reconhecimento do outro enquanto tal – dependem “não somente (...) da estrutura do grupo de interação no qual elas se realizam, mas também das estruturas sociais nas quais se encontram inseridos os agentes em interação (isto é, a estrutura das relações de classe)” (BOURDIEU, 1983, p. 52).

seu papel de crescente destaque nas discussões políticas da época, agora inteiramente subsumidas à conjuntura da “Guerra Fria”.

Assim, apesar da paulatina aproximação do materialismo histórico, já observada em Saint Genet, havia brechas importantes no pensamento filosófico sartriano que era preciso preencher. Merleau-Ponty, por exemplo, sublinhou sucessiva vezes, contra Sartre, que a compreensão da História não poderia se limitar a “sobrevoar” os caracteres da atividade humana, mas deveria dar conta também de explicar o papel inerte das estruturas, a

passividade que joga sua densidade sobre a práxis, na medida em que esta última realiza “certa variante num campo de existência já instituído, que está sempre atrás de nós, e cujo peso, (...) intervém até nas ações pelas quais nós o transformamos” 484. Com efeito, não se trataria de escolher entre subjetividade e objetividade, atividade e passividade, contingência e necessidade, eu e o outro. A experiência histórica, bem entendida, só poderia ser pensada como interrelação, entrelaço entre essas dimensões, mediação, seu sentido sendo justamente o vetor resultante desse quiasma: “Para quê se perguntar se a história é feita pelos homens ou pelas coisas”, alertava finalmente Merleau-Ponty no prefácio de Signos, “já que, com toda evidência, as iniciativas humanas não anulam o peso das coisas, e já que a ‘força das coisas’ opera sempre através dos homens?” 485. A História humana, afinal de contas, é dialética.

Sartre, como se sabe, assume crescentemente a perspectiva da dialética histórica – a mesma contra a qual se insurgia, por exemplo, nos Cahiers pour une morale. Na década de 1950, com efeito, o aprofundamento dos laços com o marxismo demanda do filósofo novas reflexões, capazes de esclarecerem, seja a massificação alienante da socialização capitalista, seja as possibilidades de uma revolução. Mas, naquela sociedade baseada no olhar do Outro, ou a partir daquela concepção de História cujo futuro se reduzia à esperança de “conversão” universal dos homens, não havia espaço, por exemplo, para uma

práxis revolucionária, no sentido solicitado pela teoria e pela política marxista. No entanto, a “força das coisas” empurrava Sartre nessa direção, exigia repensar seu entendimento das possibilidades de ligação ou “fusão” de sujeitos, o estabelecimento de uma práxis comum, a compreensão da política, o entendimento dos índices de determinação estrutural na vida, na consciência e nas escolhas dos indivíduos, as mediações históricas etc.

De fato, diante do que vimos até aqui, se Sartre pretendia ampliar seu estudo das relações humanas e dar conta de explicar as nuances da realidade social e da inteligibilidade histórica, dentre outras coisas seria preciso reconhecer (ao menos em tese) que

484 MERLEAU-PONTY, 2003, p. 267.

a experiência da alteridade é muito mais rica do que aquela confinada à alienação. Ou, ao menos, que a alienação surge como um fenômeno social e histórico específico, e não como uma determinação perene do ser humano. Nesse sentido, se exigia uma noção de intersubjetividade que, imersa no processo histórico, alargasse os limites notadamente estreitos da alteridade em O ser e o nada – algo que seus trabalhos posteriores ainda não tinham contemplado de modo satisfatório. Era preciso compreender as relações com o outro e as formas diversas que tomam o contato inter-humano de tal forma a ser possível redefinir, por exemplo, as possibilidades de uma experiência coletiva, na qual eu e o outro não fossemos apenas “perspectivas incompatíveis que se anulam à distância” 486, como acusava Merleau- Ponty, mas que também pudéssemos realizar uma narrativa comum, intersubjetiva na mais profunda acepção do termo; uma narrativa real entre sujeitos que se reconheçam enquanto tal. Dito de outro modo, a tarefa que se impunha a Sartre era fazer da “pluralidade de sujeitos” de

O ser e o nada uma verdadeira relação intersubjetiva, capaz de reverter ou situar historicamente a perspectiva da alteridade como alienação, e adequada a abarcar toda a espessura da vida social, no mesmo compasso de apreensão da dialética que atravessa o conteúdo de toda experiência histórica. Era necessário, enfim, descobrir o mundo, “o intermundo”, como dizia Merleau-Ponty, construído coletivamente pela práxis humana, como

mediador objetivo de nossas relações, repensando, assim, a posição que apreendia o outro “frontalmente”, isto é, exclusivamente pela via da negação interna.

Nesse sentido, se antes o indivíduo podia ser entendido como uma espécie de

totalidade487, encerrado que estava no seu circuito de ipseidade, e no qual o outro surgia como um limitador de seus possíveis, dado contingente, conquanto insuperável, de sua situação, agora, em respeito à dialética, é a História que deveria se apresentar como tal (portanto, não apenas como “situação ampliada”). Para Sartre, porém, jamais no sentido de uma totalidade inerte (assim como o indivíduo também não o era), mas como uma estrutura delimitada pela interrelação da práxis com seu meio, sincrônica e diacronicamente totalizante: “totalidade- destotalizada” 488, como o filósofo definia vagamente desde os Cahiers pour une morale. A História é esse meio que, inclusive como gênese de toda forma de consciência, envolve, em seu movimento totalizador, a irredutibilidade dos projetos particulares nascidos em seu bojo, mas sempre rumo a uma nova e mais vasta totalização que os ultrapassa e os ilumina489.

486 MERLEAU-PONTY, 2003, p. 175.

487 Cf. SARTRE, 2007, p. 608-9. 488 Cf. SARTRE, 1985.

489 Compreender a experiência histórica significaria, portanto, admitir que o estatuto das relações humanas não se explica apenas pelos propósitos de uma consciência livre de todo constrangimento, mas também pelos

Todos estes apontamentos parecem se chocar frontalmente com a filosofia de

O ser e o nada. Mas, conforme acenado anteriormente, Sartre tentará operar este necessário movimento de “conversão à História” engenhosamente sem reelaborar suas categorias ontológicas fundamentais (algo que, aos olhos de Merleau-Ponty ou dos marxistas, por exemplo, parecia impossível). Com efeito, o movimento de Sartre será buscar uma concepção filosófica da História e um novo estatuto das relações intersubjetivas que, longe de implicar

ruptura com as linhas de força de O ser e o nada, fosse, na verdade, capaz de contemplá-las (mesmo que adicionando novas linhas em seu repertório fundamental). Buscava, assim, resolver seus dilemas filosóficos, sem sacrificar sua permanente démarche filosófica: a irredutível liberdade individual, a defesa da subjetividade, o “ponto de partida” do cogito. Portanto, como ficará claro na sequência, sem abrir mão da concepção que demarcava a experiência original da alteridade como alienação.

Enfim, como já se anunciava desde o início da década de 1950, a dialética marxista será, para a estranheza de muitos, mas coerentemente do ponto de vista de suas preocupações e necessidades filosóficas e de suas posições políticas de esquerda, a fonte da almejada filosofia da História de Sartre, bem como de seu novo entendimento das possibilidades de relação entre os homens490. Mas, justamente porque jamais pretendeu abrir mão de suas concepções filosóficas fundamentais, tampouco de seu método de pesquisa491, tal movimento não seria nada pacífico e, desde o início, uma série de questões se colocava: seria possível conciliar existencialismo e marxismo, de tal forma que se pudesse reconhecer a resíduos do passado que impregnam o presente, pelas mediações historicamente construídas, pelas exigências materiais que saturam a liberdade do sujeito, pelo reconhecimento do outro em sua alteridade, na unidade do mesmo solo, da mesma Terra. Logo, a intersubjetividade se desenrola no interior de um desenvolvimento histórico mais abrangente; ação comum ou indiferença, diálogo ou conflito sobre um campo previamente instituído que exige um porvir, para utilizar um vocabulário merleau-pontiano. Não se trataria, portanto, de sufocar a subjetividade nas águas turvas de qualquer determinismo dogmático, mas de estabelecer que a densa atmosfera histórica também pesa sobre os ombros dos agentes individuais, não apenas como índice da facticidade que delimita a situação de exercício de sua liberdade, como se desenhava na teoria de 1943, mas ao mesmo tempo condicionando, em certo sentido, suas ações e escolhas, moldando, em parte, seu futuro. A totalização histórica deve ser, pois, abertura para a ação, inscrita numa estrutura dotada de um sentido intersubjetivamente válido, que reclama um futuro para-além do que cada consciência poderia abarcar.

490 Na verdade, Sartre se ocupa da filosofia da História de Marx desde há algum tempo. Na Transcendência do

ego, o materialismo histórico era definido como “uma hipótese de trabalho muito fecunda”, posição que se mantém em O ser e o nada. Mais tarde, apesar das críticas ao marxismo dogmático em Materialismo e

revolução, o fato é que a presença de Marx torna-se mais constante nos escritos sartrianos, como nos Cahiers

pour une morale. Ademais, os Manuscrits Gorz não deixam dúvidas de que Sartre se encontrava efetivamente engajado em, ao menos, compreender a teoria de Marx (pois, naquele momento, suas críticas à concepção dialética de história sugerem certa hesitação em abraçar essa perspectiva). Com efeito, afirma Bento Prado Júnior, “desde muito antes da Crítica da Razão Dialética, a filosofia de Sartre aponta, mesmo que à distância, para o materialismo histórico como complemento necessário da ontologia” (SARTRE, 2005, p. 11 – prefácio). 491 Sartre jamais abandonou a ideia (diferentemente de Merleau-Ponty, por exemplo) de que seria possível elaborar uma filosofia da consciência, do sujeito, sem cair nas armadilhas que prenderam seus antecessores, isto é, superando os impasses decorrentes da adoção do cogito cartesiano (inclusive quando transmutado em práxis

contribuição de ambos no herdeiro deste, à primeira vista, excêntrico matrimônio? Ou tal aliança não poderia se dar sem que um dos lados fosse sacrificado em detrimento do outro? Dialética e Psicanálise Existencial seriam duas perspectivas metodológicas compatíveis entre si? Seria possível, enfim, superar as velhas antinomias de O ser e o nada (no limite, as velhas antinomias da Razão clássica) sem uma reelaboração de suas categorias cruciais? Em resumo: era possível uma síntese entre Sartre e Marx? Essas questões, que estiveram na ordem do dia das discussões filosóficas dos anos 1950, especialmente na França, começarão a ser respondidas por Sartre no momento da redação da Crítica da razão dialética. Na verdade, desde três anos antes, quando a primeira versão de Questão de método, revisto e incorporado, em 1960, como prefácio da Crítica, é publicada numa revista polonesa que dedicava um número especial ao existencialismo francês.