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DA RAZÃO DIALÉTICA

2.2 Prático-inerte, alienação e vida serial

O conceito de alienação é chave para o desenrolar argumentativo da Crítica. Não só ele se torna essencial para compreendermos o estatuto da alteridade no pensamento de Sartre, quanto ele é decisivo também para o propósito geral de promover uma conciliação entre o seu existencialismo e o marxismo, conforme será analisado no capítulo 4.

Por enquanto, vale lembrar que, em O ser e o nada, a alienação surgia de maneira contingente pela aparição do outro em meu mundo. O mundo dócil e sem densidade com o qual o Para-si até então se relacionava tornava-se um mundo objetivo, já não mais auto-centrado, e na qual sua liberdade, até então soberana, era como que “aspirada” por outra. O sujeito purificado ganhava um dehors e a “perda do mundo” se convertia em reificação (ser objeto para outrem), perda da transparência a si, portanto, alienação. Já nos Cahiers, a alienação ganhava um contorno sócio-histórico, conquanto ainda abstrato. A história humana, ontologicamente entendida como a história da alienação e processo de reconquista da

liberdade, recebia um tom moral que, ao fim e ao cabo, apenas prolongava as agruras do Ser- Para-outro do ensaio de ontologia fenomenológica, antropologicamente condensadas no conceito de opressão. Em ambos os casos, por conseguinte, a alienação tomava parte de uma inescapável condition humaine, fruto direto e dramático da pluralidade de consciências. Neste ponto, não obstante representar certa inflexão no pensamento sartriano, especialmente por conta da aproximação do filósofo com o materialismo histórico, Saint Genet ainda seguia a trilha dos escritos da década de 1940.

Na Crítica, até aqui, vimos que o sentido unilateral da intersubjetividade de O

ser e o nada terminou por ser conservado (ao contrário do que se fazia inicialmente anunciar), sendo materialmente fundado pelo conceito de escassez. Segundo Sartre, a escassez tornaria os homens antagonistas entre si, não obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua sobrevivência. Vimos igualmente que a universalização do fenômeno da escassez como mola propulsora da História, tal como adotada por Sartre, não encontra respaldo etnográfico. Em nosso entendimento, este agenciamento se explicaria, primeiramente, como um artifício conceitual utilizado para fundamentar, em uma perspectiva materialista, aquela intuição do sentido originariamente negativo da intersubjetividade. Mas, independentemente desta operação, e do acerto ou da incorreção de nossa posição, o fato é que Sartre sugere a possibilidade – ainda que sem esclarecer como e por quais meios – de uma superação positiva da escassez, superação essa que permitiria conceber um novo patamar de relações inter-humanas. A princípio, se esta possibilidade pudesse se concretizar, nossas relações perderiam o acento conflituoso e, sem tamanha pressão externa de luta pela sobrevivência (isto é, em termos marxistas, livre dos constrangimentos impostos pelas determinações materiais), poderiam se desenvolver de modo mais positivo e plural; livre, enfim.

Contudo, como dito, não é apenas a escassez, externamente, que interfere e altera a reciprocidade entre os indivíduos e suas práxis. De acordo com Sartre, a própria forma com que os homens se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e incontornavelmente, alienante. Sendo assim, se o fator externo, embora improvável, pudesse ser suplantado, a oposição interna parecerá, mais uma vez, insuperável.

A História humana, tal como a define Sartre, é a história da ação dos indivíduos sobre a matéria com vistas a satisfazer suas necessidades orgânicas em um cenário de escassez. Neste movimento, a matéria inerte torna-se matéria trabalhada e ganha uma

significação propriamente humana. É a própria estrutura da práxis que garante a inteligibilidade desse processo. “O único fundamento concreto da dialética histórica é a estrutura dialética da ação individual”, que revelou a “inteligibilidade dialética como lógica da totalização prática e da temporalidade real” 583. Neste momento, a lógica dialética sartriana nos afasta do domínio ainda abstrato do primeiro momento da espiral dialética, concentrado na definição do campo de ação da práxis individual, e institui o campo de sociabilidade que Sartre denominará prático-inerte (pratico-inerte).

Diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em relação a ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no interior do grupo diminuem. No entanto, esse fenômeno positivo logo se transmuta em seu contrário. Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece num nível mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana, ou sua objetivação, na linguagem hegeliano-marxista, torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade.

Trocando em miúdos: se a história daquilo que Marx chamava de “indústria humana” se caracteriza por uma crescente dominação do homem em relação à natureza, permitindo-lhe uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da alienação” 584.

Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental, mas da própria forma de relação que os homens estabelecem entre si mediados pela matéria, isto é, de um dado ontológico, inscrito em nosso próprio ser social. Nas palavras de Sartre, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de trabalho dos outros” 585. Daí que, no momento do trabalho, “é o produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em outra Espécie, em contra- homem. É no produto que cada um produz sua própria objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como um Outro” 586.

Em suma, e em claro contraste com Marx, é o próprio processo de produção social, em si mesmo, quem oporia direta e originariamente o indivíduo a todos os outros,

583 SARTRE, 1985, p. 329. 584 SARTRE, 1985, p. 262. 585 SARTRE, 1985, p. 262. 586 SARTRE, 1985, p. 262-3.

através do retorno da ação de todos sobre cada um tornado Outro587. Sartre recupera o caso dos camponeses chineses que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de alimentos. Essa prática social, a princípio positiva, terminaria, com o correr dos anos, por arrasar culturas inteiras devido às inundações suscitadas por este mesmo desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica Sartre, o homem vê sua práxis alterada pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem – fato que teria passado despercebido por Marx. O resultado de minha ação nem sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre, segundo o filósofo, porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis do outro. Essa interferência inevitável impede, ao final, que eu me reconheça nos produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, torna-se proibitivo compreender porque, ao agir de determinada maneira, obtive um resultado diverso daquele que eu esperava. Como afirmava Sartre, ainda em

Questão de método, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” 588.

Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria de toda a atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo589.

O ponto a ser destacado é que a matéria tem como função unificar todas as

práxis individuais, singulares, parciais, mas essa síntese se dá de um modo específico: “não é que a matéria absorva as ações humanas e as coisifique ou as reifique: primeiramente, ela as unifica, e ela as unifica da maneira pela qual a matéria pode unificar, isto é, desindividualizando-as, dessingularizando-as, portanto, massificando-as” 590. Logo, o

processo de unificação da práxis só pode tornar esta práxis estranha a si mesma. A “objetivação é alienação” 591, afirma Sartre, nas pegadas de Hegel, justamente porque, através dela, cada um “retorna a si como Outro” 592.

587 Assim, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23).

588 SARTRE, 1985, p. 74. 589 SARTRE, 1985, p. 74.

590 FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 305.

591 SARTRE, 1985, p. 274. 592

Esta realidade de ação e estranhamento593 é o que Sartre denomina prático-

inerte. O prático-inerte é o campo de socialização de nossa vida diária, isto é, em que se define nossa “situação” 594. Com ele, a investigação sartriana deixa definitivamente para trás o domínio abstrato da práxis individual para se colocar, decididamente, no plano concreto do ser social. Nesse sentido, atesta Sartre, vivemos cotidianamente em uma esfera na qual a liberdade é dramaticamente convertida em necessidade: os fins humanos adquirem o caráter de contra-finalidades naturais e a atividade prática torna-se “atividade-passiva”, recorrência inercial, independente da vontade dos indivíduos. A sociedade, deste ponto de vista, se torna uma “síntese passiva da multidão” 595, isto é, unidade incompleta de uma “multiplicidade prática” de indivíduos a priori atomizados e massificados. Sendo assim, porém, é forçoso notar que o ser social sartriano perde (novamente) tudo aquilo que poderíamos reputar como sua especificidade: ao invés de ser apreendido a partir de si mesmo, como uma realidade que supera as individualidades e as funda (tal como seria de se esperar de uma investigação inspirada na dialética marxista), ele é mais uma vez assimilado como o vetor resultante da soma das ações individuais596. Não há, portanto, mediações entre os planos individual e social, mas uma passagem imediata de um ao outro.

O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão, e isso não significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças “naturais”, às forças “mecânicas” e aos aparelhos “anti-sociais”. Isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real e materialmente em seu corpo e que ele contribui a sustentar e a reforçar pela própria luta que, individualmente, ele trava contra ela597.

Dentro do projeto sartriano, convém reforçar, o prático-inerte funcionaria como uma espécie de “fundamento lógico” da alienação capitalista descrita por Marx598, na

593 Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308).

594 Vale ressaltar, porém, que o prático-inerte não é apenas uma ampliação da antiga noção de situação. Sua dialética permite vislumbrar uma dimensão de “envolvimento”, para utilizar um termo merleau-pontiano, que reputamos ausente daquele conceito. Esta perspectiva de envolvimento, aliás, seria a chave da inteligibilidade histórica a ser delineada no tomo II da Crítica, como veremos ao final.

595 A definição de é Hadi Rizk (RIZK, 1996, p. 57 e ss.).

596 A nosso ver, isso não significa que Sartre tenha recaído na tese da sociedade como mera expansão do Ser-

Para-outro, como acontecia, por exemplo, nos Cahiers e em Saint Genet. Indubitavelmente, e conforme pode-se depreender pelas observações iniciais deste capítulo, a sociedade da Crítica é muito mais “concreta” do que aquele delineada nos escritos supracitados, baseada na dinâmica do olhar. Mas, é preciso reconhecer que há inevitavelmente uma tensão: a dialética exige uma abordagem do ser social (como totalidade) que Sartre não se dispõe a aceitar. Voltaremos a este último problema no capítulo 4.

597 SARTRE, 1985, p. 437.

598 Assim, também a ideologia seria inteligível em termos de prático-inerte. Enquanto “reverso simbólico da prática material”, isto é, “anverso da alienação” (cf. BAROT. In: BAROT, 2011), a ideologia não se reduz, em

medida em que serviria de anteparo à alienação característica dos modos de produção, alienação a posteriori, que “começa com a exploração” 599. Segundo Barot, o prático-inerte seria

o nome das determinações genéricas através das quais o Capital pôde nascer como forma histórica maior da auto-alienação do trabalho, como figura histórica do retorno da práxis contra ela mesma sob a forma, nascida na sociedade, de uma potência anti-social de divisão e de dominação600.

De fato, neste governo da matéria, “equivalência da práxis alienada e da inércia trabalhada” 601, a relação dos homens entre, si atravessados pela impotência, cria imperativamente uma força anti-social: na medida em que agem sobre a matéria em busca de garantir sua sobrevivência orgânica, a matéria trabalhada se contrapõe dialeticamente às

práxis nos termos de uma férrea necessidade. Uma vez absorvida pela matéria, a práxis se transforma em exis, permanência, e a liberdade em inércia. O importante a se notar, com efeito, é que isso não se reduz à simples absorção da práxis pela matéria. Por exemplo: o desmatamento, ação dos homens sobre a natureza, não é igual à ausência de árvores, dado inerte da realidade material, mas uma relação de alienação promovida pelo concurso das

práxis.

Em resumo, é a própria estrutura da alteridade que, mais uma vez, encerra a alienação originária da liberdade e opõe os homens entre si. Na Crítica, o postulado da existência do outro como fonte original de alienação da liberdade perdura, mesmo que agora ela não seja explicada pelo movimento de objetivação direto de uma liberdade sobre outra – próprio ao plano puramente ontológico –, mas pela relação que os homens estabelecem entre si através da matéria. Ambas as posições, porém, longe de se excluírem, são solidárias, e mesmo complementares, no quadro de uma filosofia do sujeito e da liberdade radical, tramada Sartre, à visão marxista clássica de “falsa consciência”, “mistificação”, “ilusão” etc. Rejeitando o dualismo base- superestrutura, Sartre compreende que a ideologia extrapola o plano meramente gnosiológico. Ela nasce das coisas, da matéria trabalhada, conforme dito anteriormente. Mesmo antes da Crítica, por exemplo, em conferência proferida na Sorbonne, em maio de 1956, Sartre já chamava a atenção para a “materialidade da ideia”, isto é, para o fato de a ideia ser uma “coisa” (cf. SARTRE, 1956, p. 32). Em suma, a ideologia é o próprio sistema prático-inerte apreendendo-se a si mesmo, se convertendo em Ideia e se impondo a seus membros através de suas próprias ações e pensamentos (“seriais”). Com efeito, o sucesso de uma ideologia depende da sua capacidade de se fazer interiorizar por cada indivíduo, na medida em que este se encontra em relação serial para com os demais. Embora não seja o objeto da tese, no momento da análise do conceito de série e, no próximo capítulo, através da noção de êxtero-condicionamento, a forma pela qual os indivíduos se submetem à ideologia deverá ficar mais bem esclarecida. Para uma introdução geral ao tema da ideologia em Sartre, sugerimos o artigo de Emmanuel Barot supracitado.

599 SARTRE, 1985, p. 336.

600 BAROT. In: CABESTAN & ZARADER, 2011, p. 178-9.

a uma percepção negativamente enviesada das relações humanas que Sartre, como se nota, jamais abandona. No pensamento sartriano – como, de resto, em toda “filosofia da consciência” – a existência do outro representa, acima de tudo, um problema.

Este cenário alienante no qual o reconhecimento inter-individual é bloqueado à medida que os produtos da práxis se alienam de seus agentes gera um modo de socialização característico do prático-inerte que Sartre denomina série. O conceito de série é um dos mais relevantes na teoria da Crítica, e será igualmente importante na sequência de seu pensamento. Ademais, ele constitui, provavelmente, uma das melhores contribuições de Sartre para a compreensão de alguns aspectos da sociabilidade capitalista contemporânea, o que exige uma cuidadosa explanação.

Quando dois indivíduos se incluem um no campo de totalizações do outro, se estabelece uma relação recíproca de interioridade, em contraste com a de exterioridade, em que a reciprocidade é encontrada em algo externo. Para compreendermos a formação das coletividades, dentro do processo espiral dialético, Sartre sugere que nos atenhamos, primeiramente, à forma mais simples de reciprocidade, a saber, aquela em que há uma oposição entre a reciprocidade como relação de interioridade e a solidão dos organismos enquanto relação de exterioridade. O resultado é a relação simultaneamente interna-externa denominada de serialidade (sérialité).

No modo de existência serial, indivíduos isolados, antagônicos e intercambiáveis entre si são unidos apenas pelo concurso da matéria exterior. Como foi mencionado, no prático-inerte, a práxis se transforma em exis, e a liberdade, alterada pelo concurso da ação de outras individualidades (sem necessária comunicação direta entre si), torna-se necessidade, fatalidade, destino. Numa palavra, a objetivação se converte em alienação. Esta, diz Sartre, é a realidade ao qual estamos subsumidos cotidianamente. Por exemplo, consideremos um grupo de pessoas em fila aguardando o ônibus. Elas formam uma “pluralidade de solidões”. Os indivíduos permanecem lado a lado, junto ao ponto de ônibus, mas sem qualquer senso de comunidade. São apenas indivíduos justapostos, cuja coexistência é mediada pela matéria exterior (no caso, o ônibus que aguardam).

Nesse nível, as solidões recíprocas como negação da reciprocidade significam a integração dos indivíduos à mesma sociedade e, nesse sentido, podem ser definidas como uma certa maneira (condicionada pela totalização em curso) de viver em interioridade e como reciprocidade, no seio do social, a negação exteriorizada de

toda interioridade (...). Finalmente, a solidão torna-se (...) o produto real e social das grandes cidades602.

A solidão, portanto, pode ser compreendida como a primeira característica da serialidade. Mas, para Sartre, ela não é apenas fruto da dinâmica de nossa vida em sociedade, mas é também um projeto, ou seja, ela é vivida, suportada. Quando leio um jornal aguardando o ônibus, utilizo de um coletivo nacional com o intuito de me isolar, por exemplo, das outras três pessoas que estão na fila comigo. Tal situação se generaliza: o projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao mesmo tempo.

Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada um é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário603. A mudança de qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral. Tanto faz se a pessoa que está ao meu lado no ônibus seja uma jovem universitária, preocupada com seus exames finais, ou que a pessoa à minha frente na fila do banco seja um senhor de meia idade, com dificuldades financeiras para pagar suas contas. Afinal, nada mudaria se outros ocupassem aqueles lugares, tendo outras histórias, outros interesses, outros motivos para estarem ali. Não guardo nenhum vínculo com eles, exceto pelo fato – que foge ao meu alcance – de ocuparmos, naquele momento, um mesmo “campo material”, isto é, de sermos passageiros do mesmo ônibus ou clientes de uma mesma agência bancária. Destarte, o objeto serial, apesar de ser condição de unidade da série, é, ao mesmo tempo, índice de separação de seus membros constituintes. Isso advém da exigência do prático-inerte: por exemplo, o fato de não haver lugar para todos naquele ônibus opõe entre si os indivíduos que precisam tomá-lo, ou o fato de o atendimento da pessoa à minha frente, no banco, atrasar o meu, cria em mim certa antipatia por ela604.

Novamente, cada um é excedente, é redundante. “Cada um é o mesmo que os Outros na medida em que ele mesmo é outro” 605. A série, assim, só pode ser inteligível através do conceito de alteridade. A alteridade, enquanto “unidade das identidades encontra-se sempre necessariamente alhures” 606. Mas, alhures há apenas um Outro que é outro inclusive

602 SARTRE, 1985, p. 365.

603 Na série, se fundamenta a impessoalidade que Sartre, lembremos, já verificava ao tratar da estrutura do Nós- sujeito, em O ser e o nada.

604 Assim, há também modos seriais de comportamento, sentimentos seriais, pensamentos seriais. Por exemplo, a

ideia serial (como são o colonialismo e o racismo) é um objeto do prático-inerte, e não um momento consciente