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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

4- RUMO À CRÍTICA DA RAZÃO DIALÉTICA

4.1 O “peso das coisas” e a “conversão” à História

Em O ser e o nada, a sociedade, quando aparece, surge como pano de fundo, mais ou menos distanciado, da “aventura individual” do Para-si. Na maior parte do tempo, porém, e inclusive ao tratar da intersubjetividade, o fosso entre as realidades individual e social é profundo455. Os Cahiers pour une morale, não obstante ampliarem o horizonte da

455 Para além da experiência do “Nós”, descrita no capítulo 2, há um outro momento em que Sartre esboça uma

relação entre indivíduo e sociedade que diminui o fosso cavado pela ontologia fenomenológica entre estes dois domínios. No capítulo dedicado à liberdade e à situação, Sartre concede certo papel “social” sobre estruturas aparentemente individuais, como no “uso” do corpo próprio e o compartilhamento de “técnicas corporais” ou, como ele denomina, técnicas coletivas. Segundo o autor, são essas técnicas que “determinam meu pertencimento a coletividades” (SARTRE, 2007, p. 557), e, consequentemente, moldam a forma como eu me “aproprio” do

intersubjetividade, reforçam essa dicotomia, porque reduzem as linhas de força do meio social à interioridade dos sujeitos. No entanto, a “força das coisas”, para além das contradições internas de seu próprio pensamento, tornam flagrante a necessidade de Sartre fazer com que seu caleidoscópio ganhasse novas figuras, novas camadas conceituais, a fim de contemplar as demandas de sua nova “situação”.

Não que as penetrantes análises de O ser e o nada devessem ser esquecidas. Muito pelo contrário. Afinal, como é preciso deixar claro, o núcleo problemático da Terceira Parte do ensaio de 1943, não se encontra nas descrições do amor inautêntico, do desejo, do masoquismo ou do sadismo. Na verdade, nessas páginas se desvelam, com a sagacidade que sempre foi peculiar a Sartre, aquilo que Marcuse bem denominou de “zonas de perigo” 456 das relações humanas contemporâneas. Por exemplo, o desvendamento de alguns dos mecanismos de reificação de si ou do outro, a partir da alienação promovida pelo surgimento de outra consciência, o lado envenenado que nossas relações podem assumir (e que frequentemente assumem). A dificuldade aparece no momento em que, de uma apreensão da alteridade enviesada pela rigidez dicotômica de seus pressupostos conceituais, Sartre via-se obrigado a elevar, inclusive sem maiores considerações históricas, sociais ou conjunturais, o conflito ao

status de referencial ontológico da intersubjetividade457, desdobramento lógico da concepção

humana se define, com efeito, pelo uso de técnicas bastante elementares e bastante gerais: saber andar, saber segurar, saber julgar o relevo e a grandeza relativa dos objetos percebidos, saber falar, saber distinguir o verdadeiro do falso, etc.” (SARTRE, 2007, p. 557). Naturalmente, acrescenta Sartre, não se tratam de estruturas gerais ou universais, como no caso das estruturas a priori de Kant. Saber falar já é saber falar uma língua específica. Aprender uma técnica já é aprender uma técnica específica. Assim: “Ser da Savóia”, diz Sartre, “não é simplesmente habitar os altos vales da Savóia: é, entre milhares de outras coisas, praticar esqui no inverno, usar o esqui como meio de transporte. E, precisamente, esquiar conforme o método francês, e não o de Arlberg ou dos noruegueses. (...) com efeito, conforme utilizemos o método norueguês, mais adequado às encostas suaves, ou o método francês, mais propício às encostas íngremes, a mesma encosta mostrar-se-á mais íngreme ou mais suave, exatamente como um aclive parecerá mais ou menos íngreme ao ciclista, conforme pedale ‘em velocidade média ou baixa’” (SARTRE, 2007, p. 558). Como observa Morris (2009), tais observações aproximam-se claramente da orientação dos estudos do antropólogo francês Marcel Mauss sobre o uso das técnicas corporais, isto é, das “maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (MAUSS, 2003, p. 401). Tratam-se, porém, de observações pontuais. Apenas na Crítica da razão

dialética, Sartre conseguirá diminuir o fosso entre a realidade individual e o ser social.

456 “[Sartre] transforma a destruição e a frustração, o sadismo e o masoquismo, a sensualidade e a política em condições ontológicas. Ele expõe zonas de perigo da sociedade, mas as transforma em estruturas do Ser” (MARCUSE, 1948, p. 335).

457 Como explica Renaud Barbaras: “A fidelidade à experiência que Sartre demonstra (fait preuve) volta-se à distância (se retourne en distance), porque ela é fidelidade a uma experiência, aquela do olhar. Sartre retoma a percepção de outrem a partir de uma modalidade, a mais radical, da relação que mantemos com os outros. Ora, a dimensão de negação, de conflito, inerente ao vivido da vergonha, representa apenas uma variante extrema de uma relação com outrem que também pode ser harmoniosa, e que é finalmente neutra em relação à alternativa do conflito e da harmonia. Certamente, o outro não poderia aparecer como objeto, mas disso é preciso concluir que ele só seja acessível como olhar, como o juiz ou como o Deus que me esmaga na poeira do mundo? Em Sartre, a fenomenologia do outro recobre, na realidade, uma psicologia fenomenológica, ou mesmo uma psicologia empírica: uma experiência toda particular encontra-se erigida à própria estrutura da relação com o outro. Na realidade, a experiência do outro não se esgota na prova (l’épreuve) de um olhar que me nadifica (m’anéantit): ao contrário, o outro só pode chegar a representar a negação de minha liberdade porque há, primeiramente, uma

da presença originária do outro como alienação de meu ser458. Criava, assim, um “inferno das Paixões” 459 perene que nem mesmo uma “conversão radical” – mesmo que fosse exequível, o que, como vimos, não é nada evidente – parecia capaz, no longo prazo, de suplantar.

É esse um dos principais dilemas com o qual Sartre, a partir do pós-Guerra, terá de lidar: perante a “força das coisas”, conseguir compreender a vida social e, ao mesmo tempo, concertar filosoficamente a esperança de uma ação revolucionária460 (cada vez mais necessária a seus olhos) que sua ontologia tout court não conseguia promover.

Diante do que foi exposto até aqui, poderíamos suspeitar que se Sartre quisesse ampliar o horizonte da intersubjetividade para além da inautenticidade, da alienação e do conflito (e, no mesmo gesto, superar o obstáculo do solipsismo e o problema da encarnação – conquanto Sartre jamais os tenha admitido como problemáticos), algumas de suas categorias filosóficas mais importantes deveriam ser modificadas; ou, ao menos, revistas. A começar, pela ideia de liberdade absoluta, que redunda na definição do outro como ser alienante. Nesse sentido, a longa passagem a seguir, extraída das memórias de Simone de Beauvoir, é deveras ilustrativa do pano de fundo que se desenhava naquele momento, tanto para ela quanto para Sartre:

Não pertencíamos a nenhum lugar, nenhum país, nenhuma classe, nenhuma profissão, nenhuma geração. Nossa verdade estava em outra parte. Ela se inscrevia na eternidade e o futuro a revelaria: éramos escritores... Engajados de corpo e alma na obra que dependia de nós, nos desprendíamos de todas as coisas que não dependiam... Esse descolamento, a imprudência e a disponibilidade que as corrente de comunicação, um ajustamento dos olhares, um ao outro. A própria visão ‘faz o que a reflexão jamais compreenderá: que o combate às vezes não tenha vencedor e o pensamento doravante, não tenha titular’ (O

visível e o invisível). Isso não significa que eu possa perceber o outro de frente, e nisso consiste a verdade da posição de Sartre. Mas, precisamente porque o outro jamais aparece em face de mim, tampouco eu posso estar em face dele, reduzido a um objeto: o outro se dá a mim apenas lateralmente, antes de olhar, ele me envolve (il

m’enveloppe plutôt qu’il ne me regarde); e o face a face do qual um vencedor deve emergir representa tão somente a modalidade mais radical, jamais realizada completamente, dessa ‘lateralidade’ primeira” (BARBARAS, 1991, p. 160).

458 Franck Fischbach chega a afirmar (a nosso ver, com alguma dose de exagero) que, ao lado das análises sartrianas, operadas em certo nível de abstração, “mesmo a descrição da vida inautêntica e alienada feita por Heidegger em Ser e tempo quase poderiam parecer sociologizantes” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 297). É verdade que o exame sartriano da intersubjetividade, em nível ontológico, não se preocupa com os condicionantes sociais, históricos e materiais que se fariam sentir mais tarde, na órbita da Crítica da razão

dialética. No entanto, sua eidética da má-fé guarda um pé no concreto, como se pode depreender, por exemplo, mesmo da análise crítica de Marcuse a esse respeito. Neste ponto, o problema principal, em nosso entendimento, vale mais uma vez ressaltar, foi Sartre converter uma gama restrita de fenômenos, baseados na dinâmica de uma única experiência, em chave de compreensão de uma dimensão, por essência (inclusive se considerarmos que se tratam de relações “entre liberdades”, como quer Sartre), dinâmica e plural.

459 SARTRE, 1983, p. 515.

460 A Revolução (lida essencialmente em termos de uma “conversão universal”) é o sentido último de seu engajamento político, ainda que, à época, o comunismo e o marxismo fossem alvos equidistantes de suas

circunstâncias nos permitiam, era tentador confundi-las com uma liberdade soberana... Nossa indiferença quanto ao dinheiro era um luxo que podíamos nos oferecer porque possuíamos o suficiente para não passar por necessidades e não ser encurralados em trabalhos pesarosos. Devíamos nossa abertura de espírito a uma cultura e a projetos acessíveis somente à nossa classe. Era nossa condição de jovens

intelectuais pequeno-burgueses que nos incitava a nos crer incondicionados... Mensurávamos o valor de um homem de acordo com o que ele realizava: seus atos e suas obras. Esse realismo tinha seu lado positivo. Mas nosso erro era crer que a liberdade de escolher e de fazer se encontra em todo mundo. Por isso, nossa moral permanecia idealista e burguesa. Imaginávamos que apreendíamos em nós o homem

em sua generalidade. Assim, manifestávamos, sem saber, nosso pertencimento àquela classe privilegiada que pensávamos repudiar... Semelhante, neste ponto, à vida de todos os intelectuais pequeno-burgueses, nossa vida se caracterizava por sua

des-realidade (dé-réalité). Tínhamos uma profissão que exercíamos corretamente, mas ele não nos arrancava do universo das palavras. Intelectualmente, éramos sinceros e aplicados. Como Sartre me disse um dia: tínhamos um sentido real da

verdade, o que já é alguma coisa. Mas isso não implicava, de forma alguma, que tivéssemos um sentido verdadeiro da realidade461.

No plano filosófico, Sartre se empenhava por encontrar este “sentido verdadeiro da realidade”, por exemplo, através da busca por novas formas de vivência da alteridade. Nesse sentido, ao lado dos Cahiers, ou de O que é a literatura?, convém indicar que, também em 1947, uma série de apontamentos, agrupados sob o nome de Notes sur la

morale ou Manuscrits Gorz462, revelam a profunda preocupação do filósofo com o problema específico da alteridade e da intersubjetividade, que a redação da Moral per se não parecia equacionar. Mais ainda, é interessante notar, aqui, o germe de algumas das ideias cruciais de sua segunda grande síntese filosófica, que coroaria o caminho de “conversão à História” que Sartre trilhará doravante, a Crítica da razão dialética.

Antes de expô-los, porém, é preciso esclarecer que o caráter inédito destes manuscritos impõe severas restrições em relação a seu uso (sob forma de citações). Ademais, como dito, algumas das ideias ali esboçadas seriam desenvolvidas na sequência por Sartre, o que torna desnecessário uma análise mais minuciosa neste momento. Além disso, diferentemente dos Cahiers, se tratam de notas fundamentalmente esparsas, sem maior solução de continuidade entre si. Por tudo isso, para nosso intuito, basta pontuar o que se segue.

A importância desse manuscrito para o objeto da tese é sua consagração integral ao tema do outro: alienação, reciprocidade, relação indivíduo e sociedade, formação dos grupos, História etc. Grande parte das observações, é verdade, são recuperações e desenvolvimentos das posições prévias, de O ser e o nada ou dos próprios Cahiers pour une

461 BEAUVOIR, apud JEANSON, 1972, p. 108-9.

462 Trata-se de um conjunto de 121 folhas manuscritas, sem ordem ou algum plano visível, datadas de 1947, e

doadas por André Gorz à Bibliothèque nationale de France (daí o outro nome que receberam). Os manuscritos podem ser consultados sob a rubrica DS 71-74, no “Fond Sartre” da BnF.

morale. Assim, fica nítido o esforço sartriano em dar conta de domínios e estruturas até então negligenciados por sua filosofia, ampliando o entendimento possível da realidade humana, sem abrir mão de seus pressupostos filosóficos mais caros.

Duas observações nesse sentido são importantes. Em primeiro lugar, também aqui, Sartre conserva a posição que assimila a experiência originária da alteridade como alienação. É a partir dessa intuição primeira que o filósofo tentará expandir seu horizonte conceitual. A alienação, indica Sartre, é a estrutura fundamental da comunidade463, e a história é história da alienação, tal como definida também nos Cahiers. Em segundo, a ideia de que toda união inter-individual requer a presença de um terceiro. Nestas anotações, o filósofo delineia (aqui com mais clareza) aquela orientação para a análise do grupo e da sociedade (mais precisamente, “meio social”) que já vimos nos Cahiers: a sociedade entendida como resultado direto da soma das múltiplas ações individuais, isto é, como “síntese pluridimensional” 464. Neste momento, porém, Sartre ressalta – o que será importante mais tarde, na Crítica – que essa síntese une as multiplicidades em sua “dispersão”, ou seja, como individualidades irredutíveis opostas entre si, precariamente vinculadas por aquele meio465. Enfim, o grupo se define como “não-realidade” e, como não poderia deixar de ser, “situação” ontologicamente irrealizável466.

A essas posições – que, no essencial, reproduzem o exposto nos capítulos anteriores – algumas novidades presentes nos Manuscrits Gorz chamam a atenção. Por exemplo, especialmente a partir da página 114 do manuscrito, Sartre tece algumas considerações a respeito de temas como o trabalho e a técnica. Vale notar que essas observações já possuem o tom materialista que seria doravante crescente no pensamento sartriano. Mais do que isso, Sartre se aproxima da concepção marxiana de trabalho, ao postular que a ação do homem, em sua essência, é a criação de ferramentas e produtos para satisfazer necessidades que são materiais. Por fim – o que é mais significativo –, o filósofo assinala, pela primeira vez, outras duas teses que se farão cada vez mais presentes em seu escopo conceitual: a) a relação originária entre os homens é mediada pela natureza (e que, por conseguinte, a relação do homem com a natureza é mediada pelo homem); e b) a escassez, dado intrínseco à natureza (porque nela não haveria bens e alimentos para todos), é o primeiro

463 Cf. SARTRE, 1947, p. 20. 464 Cf. SARTRE, 1947, p. 80.

465 Novamente, tal como esboçado durante a explicação da experiência do Nós-objeto, em O ser e o nada, é o

conceito de série, da Crítica da razão dialética, que Sartre desenha aqui. 466

fator a alterar (negativamente) a reciprocidade intersubjetiva467. Assim, os Manuscrits Gorz atestam algo que se tornaria filosoficamente explícito apenas na década seguinte (e que será o objeto da segunda parte desta tese): não apenas de um ponto de vista ontológico, mas também material, a visada unilateral da intersubjetividade persiste, e Sartre jamais abandona a ideia de que as relações entre os homens são essencialmente negativas e alienantes.

O tournant materialista de Sartre – ou seja, a absorção do “peso das coisas” e a paulatina “conversão” à História – que se esboça ao final dos anos 1940 (e se soma ao

tournant antropológico dos Cahiers), claramente coincide com sua aproximação – primeiramente crítica, é verdade – do marxismo468. Também, com a necessidade crescente de constituir uma filosofia da História capaz de superar os impasses trazidos à luz especialmente no momento de redação de sua Moral. O caminho até ela, porém, ainda seria longo. Conforme tão bem demonstra Luciano D. Silva 469, o trajeto de Sartre neste período foi marcado pela busca de uma contínua ampliação do conceito de situação – o que nossas passagens pelos

Cahiers e, em menor profundidade, pelos Manuscrtis Gorz, corroborou. O fato de Sartre, naquele momento, não ter publicado nenhuma obra filosófica significativa que revelasse suas novas preocupações, em nada altera a percepção do movimento então delineado pelo filósofo, que fica claro nas anotações que compõem os Cahiers pour une morale e os Manuscrits Gorz: estender o horizonte de sua filosofia rumo ao plano da sociabilidade e da História, buscando, assim, resolver (dentre outros) os problemas da intersubjetividade que decorrem do ensaio de

ontologia fenomenológica. Tudo, sem que seu leitmotiv – a liberdade “total e infinita” do homem – fosse sacrificado.

Na década de 1950, o aludido movimento ganharia um ponto de inflexão com a publicação de Saint Genet. A aproximação com Marx já parece irreversível, a ponto de Sartre tornar-se, também neste ano, “companheiro de viagem” do Partido Comunista Francês. No plano estritamente filosófico, o conceito de uma situação “paulatinamente ampliada” já poderia, segundo Silva, “ser identificada com a história” 470. Mas, de qual história se estaria falando? Saint Genet já apresenta uma concepção de intersubjetividade e de sociedade aptas a fundamentar a ação política sartriana? É com o intuito de buscar respostas a essas questões que convém, agora, dedicar alguma atenção à biografia do poeta Jean Genet escrita por Sartre.

467 Cf. SARTRE, 1947, p. 116.

468 Com efeito, o movimento de aproximação do marxismo se inicia filosoficamente na segunda metade dos anos

1940, com a publicação, em 1946, de Materialismo e revolução, no qual Sartre condena o materialismo dogmático de sua época como doutrina capaz de promover uma revolução socialista.

469 Cf. SILVA, 2010, p. 61 e ss. 470 SILVA, 2010, p. 129.