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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

3- OS IMPASSES DA ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA E A “MORAL DA ESPERANÇA E DA SALVAÇÃO”

3.4 O idealismo da primeira moral sartriana

441 SARTRE, 1983, p. 498. 442 SARTRE, 1983, p. 522. 443 SARTRE, 1983, p. 487. 444 SARTRE, 1983, p. 16.

Do que foi exposto, parece lícito concluir que moral sartriana é, no limite, um

apelo àquela responsabilidade universal de cada indivíduo perante todos os outros. Se há pluralidade de consciências, posso me deixar levar pela “atitude natural” que se traduz em alienação e conflito, ou posso conferir novo sentido a essa contingência, recriando a forma pela qual me relaciono com o outro e, por conseguinte, redesenhando minha própria situação em nome da generosidade e do respeito à outra liberdade. Se no plano privado e temporalmente restrito – no qual a relação entre escritor e leitor é o paradigma –, esta solução pode ser factível (a literatura o prova), no plano público, na vida social e histórica, ela não dá sinais de sustentação.

Com efeito, é preciso reconhecer que a situação ideal à qual a moral dos Cahiers finalmente aponta, a realização de um sentido ético da História promovido pelo concurso espontâneo das múltiplas individualidades, parece pouco ou nada provável de se concretizar, tendo em vista que, por definição, todo homem é adversário de todos os outros, porque a alteridade é, originariamente, a fonte da alienação que se quer, junto com os outros, superar. Há aí um círculo vicioso insuperável. De fato, toda forma de interação humana de maior alcance, necessária ao estabelecimento deste (ou de qualquer outro) fim socialmente convergente, fatalmente esbarra, mais cedo ou mais tarde, na antinomia que encerra a alteridade, na falta de interação dialética entre eu e o outro, fechados que estamos em nosso próprio circuito de ipseidade, e no qual o outro só pode surgir como inimigo em potencial, ou como “meio” de realização do projeto originário (isto é, sem ver respeitada sua própria alteridade). Mesmo que em determinados instantes eu possa modificar tal cenário, e conferir um sentido ou uma significação diferente ao meu encontro com outrem (mais precisamente, com determinado outro), o fantasma do desejo-de-ser, estrutura última de nossa realidade humana, jamais desaparece. Por conseguinte, toda forma de reconhecimento, de reciprocidade positiva, torna-se, com o passar do tempo, inevitavelmente suspeita. No plano sócio-histórico, a dificuldade oriunda dessa tensão chega ao seu limite, tornando-se, por conta de minha responsabilidade perante todos, ainda mais dramática445.

445 Nesse sentido, a sentença redigida mais acima poderia, agora, ser reformulada como se segue: o mundo social é, para Sartre, o vetor resultante da soma nada pacífica das frustrações individuais. Diz Sartre: “Todo esforço do Para-si para ser Em-si é, por definição, fadado ao fracasso. Assim, pode-se dar conta universalmente do Reino do Inferno, isto é, dessa região da existência na qual existir é usar todas as artimanhas (ruses) para ser e é malograr no bojo dessas artimanhas e ter consciência do fracasso. É o mundo da loucura, do qual falam Espinosa e os estóicos. Ora, o fracasso pode ser indefinidamente mascarado, compensado, mas por si só tende a revelar o mundo como mundo do fracasso e pode forçar o Para-si a se colocar a questão prejudicial do sentido de seus atos e da razão do fracasso. O problema se colocaria assim: por que o mundo humano é inevitavelmente o mundo do fracasso? O que há na essência da tentativa humana para que ela seja em princípio condenada ao fracasso?” (SARTRE, 1983, p. 488).

Assim, sobre essas bases, a construção de uma sociedade livre, desalienada, na qual o homem recuperasse seu papel criador, torna-se, a nossos olhos, um fim praticamente inalcançável. Apoiada apenas na liberdade absoluta do Para-si, sob a espada do paradoxo que se ergue sobre a realidade humana, a mediação moral de nossas relações sempre está a ponto de ceder lugar à busca de realização do projeto-de-ser. Logo, a se dissolver nas malhas de nossos condicionantes ontológicos. Por conseguinte, na órbita dos Cahiers, a busca de um sentido ético coletivo para a História, esta lida como um (possível) processo de desalienação da humanidade, de recuperação de sua liberdade criadora e do caráter autêntico do contato intersubjetivo, enquanto empreendimento comum e livremente efetivado por cada existente desde sua interioridade, é um iminente fracasso. Na melhor das hipóteses – mesmo que Sartre se esforce por negar –, é tão somente uma ideia transcendental, um “dever-ser” intangível, a nosso ver incapaz de impulsionar, orientar ou modificar o sentido da consciência e das ações humanas. E ainda que se considere (corretamente, aliás) que “o reino dos fins está precisamente na preparação do reino dos fins”, logo, que tão importante quanto o fim em si seria a travessia rumo a esse fim hipotético, entendemos que nada em sua teoria até então – para não falar da própria realidade à qual ela se dirigia – permite vislumbrar que essa convergência de fins pudia sugerir que, na História, a cisão ou a dicotomia entre o ser e o dever-ser poderia suprimida. Mas, porque Sartre recusa uma Aufhebung (de qualquer ordem), aquela cisão se conserva, ao fim e ao cabo, intacta.

Por esses motivos, a moral da liberdade e da responsabilidade absolutas desemboca em um idealismo voluntarista que, olhado retrospectivamente, também parece inevitável (tanto quanto o eram a perspectiva da alteridade como alienação e do conflito como sentido do Ser-Para-outro) diante das categorias através das quais Sartre havia empreendido seu estudo sobre a realidade humana. Especialmente por localizar a alienação no bojo da alteridade, isto é, como o primeiro e incontornável fenômeno oriundo da pluralidade de consciências, não parece haver saída de longo prazo que não reedite os tormentos provocados pelo aparecimento do olhar alheio e tudo o que ele representa, tal como descrito em O ser e o

nada. Exceto pela vã esperança que alimenta essa Moral – e que só se sustenta por uma perspectiva afetada pelo fantasma solipsista, diga-se – de que minha escolha pela autenticidade devesse, malgré tout (isto é, independente das condições objetivas nas quais os indivíduos vivem e agem), se alastrar como exemplo a ser adotado pelos demais sujeitos.

O idealismo dos Cahiers (idealismo no sentido de postular algo absolutamente improvável, quiçá impossível de ocorrer) torna-se ainda mais visível quando percebemos a forma pela qual Sartre, naquele momento, se relaciona com a dimensão da vida social que,

por excelência, deveria servir de mediação entre o presente e o futuro, permitindo-nos efetivamente vislumbrar a superação concreta do estado de alienação histórica: a política. Por exemplo, Sartre não enxerga contradição alguma em sua proposta de que a alienação e a opressão históricas, fenômenos definitivamente sociais, como o próprio filósofo assume, devessem ser superadas pela via “individualista” da conversão Moral (curiosamente denominada de “Apocalipse” do reconhecimento recíproco das liberdades) e não pela dimensão coletiva da política, pela revolução das condições materiais, concretas de vida – elementos que, quando aparecem, são completamente secundários, isto é, não têm qualquer interferência importante na Moral ali desenhada.

A inesperada omissão da perspectiva política em um estudo que visava conciliar ética e história, liberdade e opressão, se explica, segundo o testemunho de Francis Jeanson – que escrevia sobre a moral sartriana no mesmo instante em que os Cahiers eram redigidos, portanto, impregnado da conjuntura daquele momento – porque a política, na visão do Sartre de 1947446, seria uma atitude “artificial”, uma vez que ela se pautaria por “soluções imediatas”. De fato, diz Jeanson, a política “ilude o humano, e desconhece que, nele, os progressos não são transformações técnicas, mas conversão subjetiva e tomada de consciência a partir da atitude natural” 447. Por isso, toda empresa em nome da recuperação da liberdade “não deverá ser política, mas antes de tudo moral – a política visa criar condições novas em nome de certos princípios, ao passo que a atitude moral visa transformar a situação existente para torná-la acessível a estes princípios” 448. O próprio termo de cunho religioso do Apocalipse, mais uma vez demonstra que, para Sartre, a “salvação” era uma obra prioritariamente relativa à interioridade de cada sujeito, jamais uma empresa coletivamente alinhavada (mesmo que essa obra devesse ser universalizada).

Assim, a política é dissolvida na moral. Na verdade, no horizonte filosófico de Sartre, subsumir a política à moral equivale a subsumir o social ao individual, o objetivo ao subjetivo, eliminando o nexo dialético que poderia unir ambos, em nome de salvaguardar a todo custo plano absoluto da subjetividade e da liberdade.

Mas, desde nossa perspectiva, postular uma solução subjetiva (conversão) a um problema objetivo (o mundo real da alienação), opondo um extremo ao outro, só poderia resultar em alguma sorte de voluntarismo, na prática, impotente. O fato é que, naquele momento, carecia a Sartre um exame mais concreto da realidade objetiva que determina o

446 Levando-se em conta que Sartre corroborava, em prefácio, com o trabalho de Jeanson, pode-se deduzir que as posições ali expostas eram também a daquele filósofo.

447 JEANSON, 1965, p. 287. 448

campo de ação e relação dos homens, a partir da qual os valores nascem e são assimilados ou rejeitados. Faltava, por conseguinte, uma compreensão mais acurada da dialética histórica, das relações entre o sujeito e seu meio, da cisão social entre classes antagônicas, que, impedindo o “reconhecimento universal das liberdades”, porquanto promotora de uma desigualdade estruturante, inclusive inviabiliza o universalismo da moral então proposta.

Portanto, a saída pela conversão demonstra o corte idealista da filosofia (moral) sartriana dos anos 1940. Incapacitada de apreender estruturas, e bloqueando a ação coletiva de longo prazo, Sartre é obrigado a recorrer a um apelo universal incondicionado à consciência dos indivíduos em nome de uma vida autêntica (passando em silêncio, por conseguinte, sobre em que bases reais este apelo poderia ou não se concretizar, mesmo que Sartre, agora, se abra à questão da História). A ausência, nos Cahiers, de uma perspectiva política mais consistente, demonstra, afinal, os limites da proposta redentora sartriana.

Enfim, a passagem pelos Cahiers permitiu entrever que Sartre ainda estava longe de poder superar os impasses provocados por suas categorias ontológicas fundamentais. A forma pela qual descrevera a realidade humana, especialmente nossas possibilidades de interação, a partir do postulado do conflito como referencial ontológico da intersubjetividade, erguia algumas barreiras difíceis de serem transpostas. A solução moral para os problemas iniciais, especialmente quando tomada numa perspectiva histórica, mostrava-se insuficiente. Primeiro, porque não era capaz de superar as antinomias daquelas categorias, expressas, por exemplo, na oposição entre ser e fazer (ou ser e dever-ser, ontologia e existência). Segundo, porque se desdobrava numa concepção ainda abstrata de História, na qual a sociedade surgia como mera ampliação da estrutura de reciprocidade negativa de O ser e o nada, cujo núcleo era a transmutação antropológica do Ser-Para-outro como opressão. Por isso, pouco ou nenhum espaço havia ali para a existência de sujeitos coletivos capazes de sustentar uma ação comum de maior envergadura – o que remete, no limite, à impossibilidade intrínseca de o pensamento sartriano, naquele momento, superar de fato o solipsismo. Não havia espaço, pois, para a ação política, única esfera na qual o “dever-ser” perde seu caráter abstrato, transcendental, e se enraizando na “realidade efetiva”, na “relação de forças em constante movimento” 449, pode de fato criar novas condições de existência, uma nova sociedade, ou, como quer Sartre, um novo sentido para a História.

Para Sartre, neste momento, a política é (no plano teórico, ao menos) absolutamente secundária, subsumida que estava à subjetividade moral e, porque não dizê-lo, a uma visão “atomizada” da sociedade450. A única alternativa de equacionamento dos dilemas da intersubjetividade histórica era o apelo abstrato do intelectual à consciência individual, em nome da construção subjetiva de um (a priori) inalcançável “reino dos fins”, isto é, um estado de reconhecimento universal das liberdades. Contudo, não obstante a inegável justeza que motivava esse apelo, o fato é que, tão logo ele era posto, era traído por seu idealismo de fundo. Filosoficamente, ao buscar resolver as antinomias da interação humana, mormente no plano da interioridade do sujeito, isto é, sem levar em conta, por exemplo, as “condições objetivas” e sua influência na conformação do pano de fundo das relações sociais, bem como ao desconsiderar a ação política como mediação prática entre a situação presente e o futuro, recorrendo a um movimento individual via conversão451, era inevitável que Sartre, por conseguinte, reeditasse as mesmas dificuldades presentes no ensaio de ontologia

fenomenológica452, ainda que em outra esfera.

Com isso, porém, andamos em círculo e retornamos ao início. A dicotomia paralisante (porque insolúvel) entre ser e fazer, que atravessava a existência humana descrita por Sartre, impedia a articulação almejada entre a ontologia e a moral (e a História). Ainda mais importante, a alternativa da conversão, ainda que pudesse contornar provisoriamente o conflito na esfera da vida privada, não resistia a uma ampliação para o domínio sócio- histórico, no qual a transformação das relações inter-humanas exige mais do que a simples tomada de consciência individual ou a condenação moral da ordem vigente. Não parece despropositado, portanto, que Sartre, depois de mais de 500 páginas manuscritas, tenha abandonado a redação dos Cahiers. Tampouco que, mais tarde, ele mesmo classificasse essa primeira Moral, calcada em certo voluntarismo e postulando uma improvável “salvação” quase religiosa para os homens, como “idealista” 453.

450 Sartre até aqui reedita, de algum modo, a clássica visão liberal da sociedade e das relações “atomizadas” que os homens travariam entre si, a subsunção do social à soma das vontades e ações individuais. Por isso, na órbita dos Cahiers (ou seja, também na de O ser e o nada), a existência de sujeitos políticos coletivos não encontra qualquer respaldo.

451 Não surpreende, por conseguinte, que o primeiro movimento político no pós-Guerra que conta com a franca

adesão de Sartre, o Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR), em 1948, se endereçasse, conforme o próprio filósofo admitia, não aos “grupos constituídos” (partidos, movimentos sociais etc.), mas aos indivíduos, ou seja, à sua consciência moral (cf. MÉSZÁROS, 2012, p. 249).

452 Mais tarde teremos ocasião de questionar se essa noção do social e da História como “intersubjetividade ampliada” não reaparecerá, com os obstáculos dela decorrentes, também na Crítica da razão dialética, embora ali o esforço de Sartre por apreender as condições formais da História real seja muito mais profundo.