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PRIMEIRA PARTE: O DRAMA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO

4- RUMO À CRÍTICA DA RAZÃO DIALÉTICA

4.2 Saint Genet

Através da exemplar análise da “conversão de Genet ao Mal” 471, como explica Luciano Silva, Sartre buscava demonstrar “concretamente”, agora a partir de um estudo de caso, e já municiado de algumas das categorias básicas do pensamento marxista (além, claro, de sua “Psicanálise Existencial”), tanto a liberdade absoluta do homem que se revela na escolha de seu projeto, quanto compreender o papel do Outro na definição desse projeto. Logo, aprofundar o entendimento da interferência alheia no exercício da própria liberdade, o que implicava também em compreender como se fundamentaria a inserção do indivíduo na vida social. Saint Genet surgia, em resumo, com o intuito de ratificar a validade das categorias de O ser e o nada para o estudo da realidade humana, enriquecidas de uma visão sócio- histórica mais bem delineada por conta da afinidade paulatina em relação ao pensamento de Marx.

Todo o exame biográfico levado a cabo por Sartre é orientado pela constatação fundamental do momento em que Genet torna-se Jean Genet, isto é, quando é pego em flagrante furtando um objeto: “Uma voz declara publicamente: ‘você é ladrão’. Ele está com dez anos” 472. A liberdade, esclarece Sartre, é fazer algo daquilo que os outros fazem de nós473. Genet, desde o momento em que é flagrado roubando, longe de recusar o papel que lhe fora imputado por outrem, decide assumi-lo por inteiro. Na verdade, diz Silva, o olhar do outro lhe trazia “um ser que ele já era no silêncio de sua subjetividade” 474, mas que agora vinha à luz e era incorporado com toda a intensidade. No entanto, ao assumir esse ser, o ser- Outro da sociedade, o Mal, Genet deixava de gozar a reciprocidade da qual ele – criança – era participante até então: agora, ele era tão somente o ladrão: “Objeto, primordialmente – e objeto para os outros –, eis o que é Genet, no mais profundo de si mesmo” 475.

Sem alongar nessa descrição, mesmo por conta da larga extensão do estudo de Sartre, cumpre sublinhar que análise da vida de Genet indubitavelmente conferia um ar mais concreto às categorias de O ser e o nada, reforçando a ideia de liberdade – agora mais explicitamente inserida em uma situação concreta, real – e o papel do outro em conformidade com aquele quadro conceitual. “Para Sartre”, como sintetiza Silva, “a conversão de Genet é 471 SILVA, 2010, p. 153. 472 SARTRE, 2002, p. 29. 473 Cf. SARTRE, 2002, p. 61. 474 SILVA, 2010, p. 137. 475

livre decisão sua de se tornar aquilo que todos dizem que ele é, de engajar completamente sua liberdade no ser ladrão; enfim, encarnar o Mal, assim como era dele esperado por aqueles que definiram e objetivaram como tal” 476.

A exposição mais bem elucidada relação entre eu e outro, entre um Para-si e o meio no qual ele vive – que no caso de Genet toma a forma radical de recusa de qualquer reciprocidade (Genet é o Outro, o Mal, o excluído da “sociedade de Bem”) –, permite a Sartre novamente tentar delinear como se poderia pensar em sociedade a partir do escopo conceitual de O ser e o nada. “Num grupo fortemente estruturado, Deus, para cada membro, é o Outro. O Outro absoluto e infinito, que legitima a tradição, os costumes e a lei; é o fundamento e a garantia da ordem e dos imperativos sociais; perfaz a integração do indivíduo à comunidade; atua como um fator de normalização” 477. Sartre recupera, aqui, a mesma estrutura do “Nós- objeto” da obra de 1943, e que também se fazia notar nos Cahiers (e nos Manuscrits Gorz): a presença de um terceiro termo na relação inter-individual seria a chave de formação de um agrupamento coletivo enquanto objeto-para-um-terceiro. O olhar do outro (o olhar divino seria o caso-limite) torna-se, assim, o elemento conectivo da vida social, capaz de garantir uma mínima coesão à dinâmica conflituosa inerente à relação entre os Para-sis, ou seja, impedir que este conflito recaia em um estado de guerra permanente.

No entanto, é preciso questionar: se esse outro não é forçosamente uma entidade divina (Sartre terminantemente o recusa), e nem mais um valor moral, ou uma obra de arte478, quem ou o quê mais poderia cumprir este papel?

Sartre responde com uma espécie de trocadilho: o Outro é todos e é ninguém. Essa resposta é plausível na medida em que representa, ao mesmo tempo, o papel de carrasco e de vítima em uma dada sociedade. O juiz aplica a lei, mas pode ser condenado por outros homens; o soldado prende, mas está à mercê de ser preso; todos os homens podem denunciar, e serem denunciados. Na solidão de sua vida privada todas as pessoas, invariavelmente, cometem transgressões e até crimes. Os homens de Bem cometem delitos; a diferença entre eles e Genet é que não foram vistos, não foram acusados, não foram excluídos da reciprocidade. Gozam do reconhecimento dos outros homens, do Outro que cada um desses olhares compõem; mas assim como a espada de Dâmocles, o Outro lhes espreita, podendo surpreendê- los, a qualquer momento, no exercício pleno de sua liberdade. Na contrapartida, o

476 SILVA, 2010, p. 148. 477 SARTRE, 2002, p. 142.

478 Contudo, vale notar que a arte, em Saint Genet, continuará a ter o papel potencialmente “desalienante” prefigurado nos Cahiers e em O que é a literatura?. Com efeito, a poesia permite a Genet se apropriar de uma potência criativa que se traduz com “pura atividade”, através da qual o poema, enquanto objetivação de sua personalidade, aparece como algo completamente transparente ao poeta. “O trajeto de Genet é assim apresentado por Sartre como aquele conduzido da maior alienação, isto é, da mais completa reificação à libertação de sua subjetividade, ou seja, à afirmação de si mesmo como atividade pura, como atividade radicalmente desobjetivada, totalmente exterior ao mundo objetivo. E essa exterioridade à objetividade em geral é, para Sartre, a realização mais bem acabada da liberdade” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 298-9).

mesmo homem que pode ser denunciado, nomeado, objetivado, denuncia, nomeia e objetiva. O Outro, ao qual cada um está sujeito, é todos os outros homens e não é nenhum deles em especial479.

Saint Genet, conforme mencionado anteriormente, pode ser lido como uma aplicação coerente das categorias fundamentais de O ser e o nada, enriquecidas por uma visão mais atenta às “condições objetivas” (sociais, históricas etc.) no estudo “de uma vida”. No que diz respeito à problemática das relações humanas, ele de fato permite vislumbrar alguma forma de expansão da intersubjetividade para um domínio mais extenso do que aquele das “relações originárias com o outro”, especialmente através da explicitação do papel do terceiro homem e da relação entre o indivíduo e seu meio social. No entanto, é preciso indicar que, no que diz respeito ao tema da tese, Saint Genet padece do mesmo mal dos Cahiers: assim como, neste último, a articulação entre moral e História naufragava na medida em que a experiência sócio-histórica se reduzia formalmente ao conflito entre liberdades (tornado opressão), sem qualquer mediação possível, isto é, resolvia-se como ampliação indefinida da estrutura fundamental do Ser-Para-outro, também em Saint Genet a mesma operação se repete, e a “sociedade”, encarada como uma intersubjetividade ampliada, ainda peca por sua falta de espessura. Torna-se uma multiplicidade de indivíduos precariamente unidos pelo olhar abstrato de um outro qualquer, imersos em um conflito moral entre o Bem e o Mal.

Nesse sentido, uma última passagem de Luciano D. Silva, na qual ele sintetiza o ganho teórico de Saint Genet para o tema do outro, pode auxiliar a compreender o núcleo do problema assinalado:

Sartre mostra em Saint Genet que é um erro afirmar a impossibilidade de constituir a sociedade a partir do ser-para-outro de O ser e o nada; a sociedade tem como fundamento a reciprocidade negativa, ou seja, é porque o homem livremente busca objetivar seus semelhantes que os papéis exercidos em sociedade fazem sentido. E é por meio dessa relação que é criado o conceito de Outro, que não se reduz a um indivíduo, mas está presente em todos os homens e em nenhum em especial480.

Em resumo, a sociedade, para Sartre, ainda se definiria como uma mera expansão da estrutura da reciprocidade negativa (a radical oposição eu/outro), alinhavada com um terceiro termo, um “grande Outro”, como diz Silva, que, não obstante, mantém intacta a falta de interação (dialética) daquela forma antagônica de relação. A circularidade entre o ser- que-olha e o ser-que-é-visto fundamentaria papéis e posições sociais, permitindo, no entanto, apenas uma coesão instável (porquanto fundamentada na tensão provocada pelo olhar alheio).

479 SILVA, 2010, p. 157. 480

Assim, por um lado, é verdade que há aí a possibilidade de uma mínima reciprocidade (externa ou “serial”, como será definido na Crítica) entre seus membros, a partir do

reconhecimento entre os Para-sis, possibilitado pelo poder desse terceiro que se encontra

partout et nulle part481. Mas, por outro lado, também é verdade que se perde, nessa perspectiva, a concretude e a dinâmica específica do ser social, que a nosso ver, vale insistir, não se resume à mera soma dos seres individuais482. A sociedade de Saint Genet, assentada na estrutura do Ser-Para-outro, ainda é uma abstração483.