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Caminhos para a imaginação nacional I: questão racial e identidade

Capítulo 1. Imaginando a nação mestiça

1.1. Cultura e política: a década de 1930

1.1.5. Caminhos para a imaginação nacional I: questão racial e identidade

A questão racial estava no centro dos debates, tanto entre intelectuais de esquerda, quanto nos que seguiam correntes de direita. Segundo Elide Rugai Bastos, esta importância toda ocorreu porque ela era “componente fundamental da definição do povo e das instituições que lhe são

convenientes” (2006: 74). Como lembra a mesma autora, Viana foi o expoente máximo do ensaísmo da década de 1920, que construiu uma visão da formação nacional a partir “da

aceitação das análises sobre a inferioridade física, psicológica e moral das raças ‘não-brancas’, e sobre as consequências disso sobre a mestiçagem” (2006: 73). Esse tipo de reflexão, em parte analítica, em parte explicitamente programática, via no branqueamento da população, na sua arianização, a superação dos males do presente e ganhou caráter oficial quando, por exemplo, o

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Francisco de Oliveira Viana, nasceu em 1883, em Saquarema, Rio de Janeiro e formou-se em 1906, na Faculdade de Direito do mesmo Estado. A partir de então, desempenhou diversas atividades no meio político e intelectual. Em 1916, por exemplo, começou a lecionar Direito Judiciário e Penal e Direito Industrial na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Niterói e em 1940, além de eleito para a Academia Brasileira de Letras, tornou-se ministro do Tribunal de Contas da República. Publicou livros como Populações meridionais do Brasil (1920); Raça e assimilação (1938); e Instituições políticas brasileiras (1949). (Botelho e Schwarcz, 2009: 424).

censo de 1920 usou suas interpretações para afirmar um suposto crescimento do coeficiente da raça branca na população (ibid.: 74).

Sem perder de vista a importância das instituições onde se produzem os conhecimentos, para Renato Ortiz a periodização feita por Antonio Cândido deve ser ajustada para dar conta da explicação histórica do período50, uma vez que Sérgio Buarque e Caio Prado, por exemplo, estariam na origem de uma instituição mais recente da sociedade brasileira, a Universidade. Posto que Cândido, a meu ver, esboça na seleção das três obras, diferentes tipos de associação entre os estudos sociais e as ideologias políticas com solo na experiência da Revolução de 1930, posso concordar apenas parcialmente com a afirmação de Ortiz. Mas o destaque dado à obra de Gilberto Freyre, dentre os três é bastante relevante, tanto pela passagem conceitual que opera, quanto pelo lugar institucional em que vai produzir. Para Ortiz na obra de Gilberto Freyre:

“A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de

dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. Ela permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o social, o que possibilita uma análise mais rica da sociedade. (...) Mas, a

operação que Casa Grande & Senzala realiza vai mais além (...) a ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum,

ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional”. (Ortiz, 1985: 41)

50 Para Ortiz ela estaria mais próxima do testemunho, e sua crítica – a forma como foi tomada – se dirige especialmente para a análise de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo: Ática, 1977.

É justamente na etapa de elaboração e consolidação de novas análises, visando superar as “ambiguidades racistas”, provenientes em grande parte dos estudos dos “homens de sciencia” 51 do século XIX que encontramos Gilberto Freyre e também outros estudiosos importantes como Artur Ramos. Ambos produziram suas análises no momento em que o pensamento racialista ainda tinha importantes defensores, embora já sofresse severas críticas52. Estas reiteram a maior importância da dimensão econômica, social e cultural, em detrimento das supostas diferenças biológicas e somáticas (Schwarcz, 1995: 54). Em um dos casos reveladores da dificuldade para superação do paradigma racialista, Lilia Schwarcz lembra o esforço de Artur Ramos, para atualizar a análise de um dos grandes teóricos racialistas do século XIX: Nina Rodrigues53. Ao

reeditar as obras do médico maranhense, a quem creditava a criação de um verdadeiro programa para a antropologia brasileira, Ramos sugeria sua completa atualidade ao substituir-se o uso que este fazia do termo raça por cultura. Assim, como “num passe de mágica, com uma pequena

mudança de termos, tudo resultava bem e não passava de um grande mal-entendido” (1995: 54). Transitando da área médica para a antropologia, e com elevado interesse pela psicologia, Artur Ramos, ao lado de Gilberto Freyre, foi um dos principais personagens do pensamento social do pós-trinta a desenvolver uma nova abordagem nos estudos sobre o negro e seu papel na formação nacional. Formado na Faculdade de Medicina da Bahia, a mesma em que Rodrigues lecionou nas

51 A expressão é utilizada por Schwarcz para delimitar no final do século XIX, os intelectuais misto “de cientistas e políticos, pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários” (1993: 18-9), que se esforçaram para “se mover nos incômodos limites que os modelos lhes deixavam: entre a aceitação das teorias estrangeiras – que condenavam o cruzamento racial – e a sua adaptação a um povo a esta altura já muito miscigenado” (ibid.)

52 Campos demonstra, em palestra proferida em 1933, como Ramos já criticava as análises sobre a questão racial de Oliveira Vianna: “Contra Vianna, Arthur Ramos lançaria, no decorrer de sua obra, uma série de objeções à teses da inferioridade da raça negra no Brasil” (2003: 64).

53 Nasceu em 1862, na cidade de Vargem Grande, depois batizado de Nina Rodrigues, no Maranhão. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1892, transferindo-se três anos depois para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1889, foi indicado como Professor Adjunto da cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1891, assumiu a cadeira de Medicina Pública, tornando-se titular em 1895. (Botelho e Schwarcz, 2009: 422-2).

décadas anteriores, Artur Ramos invoca uma continuidade entre a abordagem do médico maranhense e a sua, mas procurando ajustar a interpretação francamente naturalista e baseada em pressupostos sobre a natureza biológica do negro e do mestiço, para uma concepção mais próxima do relativismo cultural. O médico alagoano ocupará posições institucionais importantes, como a primeira cátedra de Antropologia e Etnografia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, em 1939. Após o retorno de uma breve estadia em universidades norte- americanas, Artur Ramos fundará ainda a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia (1941). No fim dos anos 40, sua projeção internacional foi confirmada pelo convite recebido para dirigir o departamento de Ciências Sociais da Unesco, onde se tornou um dos principais responsáveis pelo apoio à pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Deve-se notar que este convite se deu algum tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial, que teve como uma de suas justificativas um elevado racismo contra certas populações, e o Brasil era àquela altura, visto como um exemplar modelo de convivência racial harmoniosa. Ramos foi, sem dúvida, um dos mais otimistas defensores do modelo brasileiro de convivência racial, reelaborando termos que seriam, posteriormente, bastante difundidos para caracterização do Brasil, tais como “sobrevivência”, “aculturação”54 e “sincretismo”. Este último, ampliado em seu uso no campo

das religiões para a cultura em geral:

“Será preferível chamarmos ao resultado harmonioso, ao mosaico cultural

sem conflito, com a participação igual de duas ou mais culturas em contato, de sincretismo. Ampliamos assim o significado de um termo que já havíamos empregado com referência à cultura espiritual, especialmente religiosa

(...)”. (Ramos, apud Campos, 2003: 147)

54 Campos informa que com o uso do termo aculturação, Ramos procurava colocar a cultura no centro do debate, em contraposição ao conceito sociológico de assimilação (2003: 146)

Muito se discutiu sobre as diferenças entre Artur Ramos e Gilberto Freyre. Na configuração de suas identidades autorais, Freyre, por exemplo, costumava classificar o colega, com base em sua formação na Medicina, no campo da Antropologia Física; ao passo que ele estaria vinculado à Antropologia Cultural, uma vez que teria sido aluno de Franz Boas. A classificação também foi feita a partir da primazia das regiões para realização dos primeiros estudos. Assim, enquanto Freyre destacava Recife e os trabalhos do médico Ulisses Pernambucano, Artur Ramos, defendia como precursor da Antropologia Brasileira, o médico Nina Rodrigues da Faculdade de Medicina da Bahia e seus estudos locais. Por fim, autores como Bastide, entendiam que ambos davam ênfases diferentes ao papel da escravidão na conformação de novas culturas. Se Ramos, preocupado com as sobrevivências, acreditava na variabilidade dos estados de preservação das culturas negras fora da África, Freyre partiria da situação social do negro escravizado em seu novo país (Bastide apud Campos, 2003: 32).

Considerando o estudo de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre a obra de Gilberto Freyre na década de 1930, parece ter sido mais complexa a operação realizada por este, pois o sociólogo, sem deixar de operar completamente com a lógica do conceito de raça, consegue articular tal nome à noção de cultura e também a de clima55, para criar uma concepção de mestiçagem como

um equilíbrio de antagonismos, uma justaposição dos contrários, sem totalizar ou indicar seu futuro desdobramento, ou ainda, um processo no qual:

“(...) as propriedades singulares de cada um desses povos [negros, índios, europeus, por exemplo] não se dissolveriam para dar lugar a uma nova figura, dotada e perfil próprio, síntese das diversas características que

55 Sobre este conceito na obra afirma: “(...) esta noção deve ser compreendida como uma espécie intermediária entre os conceitos de raça e de cultura, relativizando-os, modificando o seu sentido mais frequente e tornando-os relativamente compatíveis entre si...” (Araújo, R. 2005: 37)

teriam se fundido na sua composição. Desta maneira, ao contrário do que sucederia em uma percepção essencialmente cromática da miscigenação

(...) temos a afirmação do mestiço como alguém que guarda a indelével lembrança das diferenças presentes em sua gestação”. (Araújo, 2005:41) Embora Gilberto Freyre não seja o único autor a positivar a imagem do mestiço, sua obra será absolutamente lembrada como a interpretação revolucionária que desloca a compreensão negativa da presença negra na fábula das três raças formadoras do Brasil. Alguns dos principais intelectuais do modernismo comemoraram sua reflexão dedicando-lhe elogios ou poesias56. No campo intelectual, o pernambucano ainda seria responsável pela realização do Congresso Regionalista em 1926 e do 1° Congresso Afro-brasileiro, em Recife, no ano de 1934, sendo esta uma importante iniciativa para congregar pesquisadores e marcar publicamente o reconhecimento e importância dos elementos africanos.