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A encruzilhada de Edison Carneiro: entre a antropologia e o folclore

Capítulo 1. Imaginando a nação mestiça

1.2. A Revolução de 1930 na Bahia

1.2.4. A encruzilhada de Edison Carneiro: entre a antropologia e o folclore

A esta altura, Carneiro era alçado à categoria de líder dos estudos africanistas na Bahia, tornando-se uma referência para muitos outros estudiosos que aportaram em Salvador naqueles

96 Sansone identifica nesta relação um exemplo das “fortes e tensas relações de poder, que interligam os intelectuais-chave no contexto local, com padrinhos nacionais e ‘brookers’ acadêmicos internacionais. Edson Carneiro dependia de Artur Ramos, que, por sua parte, dependia de Melville Herskovits” (2002: 7)

97 Da Bahia, além de Edison, participaram Jorge Amado, Áydano do Couto Ferraz, Clóvis Amorim, Reginaldo Guimarães e o prof. Martiniano Eliseu do Bonfim (Oliveira, W., 1987: 29).

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Foram recebidos trabalhos de Manoel Diégues Júnior e Alfredo Brandão (Alagoas), Renato Mendonça, Jacques Raymundo e Robalinho Cavalcanti (Rio de Janeiro), Dante Laytano e Dário Bittencourt do Rio Grande do Sul (ibid.).

99 Enviaram colaborações Melville Herskovits (EUA) e Salvador Aguero (Cuba). Donald Pierson (EUA) presidiu sessões e apresentou trabalhos (ibid.).

anos. Dentre as mais famosas constam a antropóloga Ruth Landes101, que produziu toda sua pesquisa de campo em Salvador na companhia do etnólogo baiano, o que teve como consequências certo afastamento em relação a Artur Ramos102. Embora reconhecido como autoridade nos estudos sobre o negro, Carneiro vai mudar-se para o Rio de Janeiro em 1939, desiludido com as condições de exercer suas atividades intelectuais em Salvador. Seguirá colaborando com periódicos e, em 1948, publicará sua principal obra sobre as religiões afro- brasileiras: Candomblés da Bahia.

No fim da década de 40, Carneiro se aproximará do Movimento Folclórico, que ganha força com a criação da Comissão Nacional de Folclore (1947) e passará a articular a questão racial no interior da discussão sobre folclore. A aproximação de Carneiro com este tema não é fortuita, uma vez que já em suas primeiras obras ele se referia ao tema, a exemplo de outros autores, como Artur Ramos. Como exemplo, mencionamos seu segundo livro, intitulado Negros Bantus – notas

de ethnographia religiosa e de folk-lore (1937), onde a questão do folclore é tratada nos termos de “sobrevivências culturais”, de maneira semelhante à análise empreendida por Ramos dois anos antes em O folk-lore negro do Brasil – Demopsychologia e Psychanalise. Em um caso como no outro, o folclore emerge como dimensão de transição ou diluição (nas palavras de Ramos) das

101 A antropóloga Ruth Landes, que chegou à Bahia em 1938 para pesquisar as religiões de matriz africana, foi uma das primeiras pesquisadoras enviadas pela Universidade de Columbia, inaugurando a cooperação internacional junto ao Museu Nacional. Seu principal interlocutor em Salvador foi Edison Carneiro, àquela altura (um ano depois do 2° Congresso Afro-brasileiro) principal autoridade no campo de pesquisa sobre candomblé na Bahia. Carneiro a acompanhou na maior parte do tempo, o que é evidenciado no livro da antropóloga sobre esta pesquisa, A cidade das mulheres publicada em 1947. Sobre o encontro com Carneiro, a antropóloga conta a seguinte versão: “Cartas de apresentação de eruditos da Universidade de Fisk e do Rio de Janeiro levaram-me em particular a um jovem etnólogo baiano, chamado Edison Carneiro (...) o número e a originalidade dos seus estudos faziam-me esperar um homem muito mais idoso (...)” (2002: 49).

102 Mariza Corrêa explora o conflito aberto com a presença de Ruth Landes detalhadamente no artigo “Diário de

Campo: Artur Ramos, antropólogos e a antropologia”. In: Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 119, 1999 - Rio de Janeiro, Edições Biblioteca Nacional, 2004.

criações mitológicas cristalizadas e veiculadas pelas religiões, adormecidas num inconsciente coletivo.

Embora pouco discutida, a articulação entre os estudos sobre o negro e o folclore reflete também um momento do impasse que os estudiosos dos anos trinta viviam em relação à definição do caráter nacional e das melhores teorias e métodos para alcançar sua adequada compreensão. Como notou Mariza Corrêa, em As ilusões da Liberdade, os intelectuais que se dedicaram ao estudo das relações raciais no período efetuaram duas alterações importantes no debate sobre identidade nacional: a primeira, ao definir o termo “relações raciais” como sinônimo quase exclusivo de relações entre brancos e negros; e a segunda, ao redefinir as relações raciais como contexto privilegiado de surgimento de uma cultura brasileira (2001: 223).

Ora, não podemos esquecer que tais definições ocorrem no exato momento em que a antropologia se consolida enquanto disciplina na moderna instituição universitária. Como se sabe, na disputa pela normalização do campo das Ciências Sociais, o folclore não atingiu o estatuto científico que para ele almejavam intelectuais como Mário de Andrade, Artur Ramos (durante algum tempo) e Edison Carneiro. Portanto, quando Corrêa aponta tal redefinição no debate, não estamos olhando para “todos os intelectuais que se dedicaram ao estudo das relações raciais”, nem necessariamente para “os mais importantes”; mas sim para aqueles que, no horizonte de consolidação da antropologia como disciplina acadêmica, compreendiam a questão racial no centro do debate.

Edison Carneiro foi um dos intelectuais que, acreditando na interdependência entre antropologia e folclore, ficou fora da academia, embora esteja incluso entre aqueles que se dedicaram ao estudo das relações raciais. Esta ponderação ajuda a localizar melhor como Edison Carneiro transitou da etnologia para o folclore, articulando, no interior do Movimento Folclórico,

posições bem mais ortodoxas sobre o caráter nacional do que outros folcloristas. A principal delas refere-se ao papel do candomblé, que Carneiro não considerava como folclore, tendo uma posição contrária a de outros colegas. Como etnólogo, ele entendia que as religiões do negro são a parte mais resistente à nacionalização, coexistindo com outras formas religiosas na sociedade brasileira. Já como folclorista, identificava que era nas manifestações populares praticadas pelos negros – qualificadas por ele como ‘folguedos’ – que a grande contribuição para o folclore nacional poderia ser observada, uma vez que nelas, “encontraremos o negro comportando-se

como brasileiro” (1957: 70). Era assim que assentava em sua reflexão as diretrizes para pensar uma nação brasileira, ambíguas, mas expressando sua preocupação com a passagem do negro visto como estrangeiro, para tornar-se brasileiro.