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Capítulo 1. Imaginando a nação mestiça

1.2. A Revolução de 1930 na Bahia

1.2.2. História e Antropologia na Bahia

Em relação aos estudos sociais e históricos, a Bahia teve papel destacado tanto pelos seus círculos intelectuais locais, como por servir de campo de estudos e exemplo para ensaístas que se

adequados e felizes. É um mundo idealizado, atemporal, harmônico. Lírico, se quiserem. Não há nenhuma pretensão de atuar aí como intelectual orgânico...” (ibid: 221)

90 Estas produções de Walt Disney faziam parte da nova orientação da política externa norte-americana para a América Latina, também conhecida como “política da boa vizinhança”.

dedicaram ao tema da identidade nacional e cientistas sociais estrangeiros ávidos por conhecer seu modelo de convivência racial. A questão racial para identidade baiana ocupa um lugar destacado entre as preocupações dos intelectuais locais desde meados do século XIX, estando presente nas suas principais instituições como a Faculdade de Medicina e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB): “Nesses espaços (e particularmente no Instituto), as questões sobre

o caráter racial do povo baiano foram amplamente discutidas, servindo como elementos de interesse comum e, consequentemente, de pontos de diálogo com o Estado” (Silva, 2006).

Essas instituições foram, em grande parte, responsáveis por elaborar teorias segundo o paradigma científico da época, alimentando um ideal de civilidade baseado na condição étnica da população, que seria mais bem alcançado pela ausência ou minimização das raças consideradas inferiores, como negros e mestiços. Tal perspectiva tinha impacto direto na ação do Estado, como comprova o esforço das políticas de imigração na virada do século, estimulando o branqueamento da população, o que se chocava frontalmente com a realidade étnica da sociedade baiana (ibid.). Sobre a atuação do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGBH), Paulo Silva apresenta uma análise que enfatiza o alinhamento de seus intelectuais com o movimento autonomista surgido com a Revolução de 1930, produzindo um discurso historiográfico com sentido laudatório em relação às elites locais. O Movimento Autonomista foi a reação à intervenção de Vargas na correlação de forças políticas baianas, nomeando Juraci Magalhães para o comando do Estado. A notícia teria sido recebida com grande mal-estar pelas elites políticas locais (Silva, 2000: 25), embora um de seus mais tradicionais integrantes, J.J. Seabra, houvesse apoiado a campanha da Aliança Liberal, pela qual concorreu Vargas no ano anterior.

Além de desequilibrar o jogo de forças entre as facções políticas baianas ao chegar como interventor, Juraci Magalhães não era da Bahia (nasceu no Ceará) e tinha patente militar, o que

quebrava uma longa hegemonia dos bacharéis na direção política do Estado. Esta oposição dos políticos baianos não teria se desenrolado apenas na arena política, mas também teria tomado parte em instituições como IGHB. Como nota Silva, ao analisar alguns de seus mais destacados pesquisadores fica evidente que: “No caso da Bahia dos anos 1930 e 1940, o discurso

historiográfico comportou pronunciado comprometimento com uma determinada estratégia

política: a de retomada da autonomia do Estado para conforto e bem estar de suas elites dirigentes” (ibid.:19). Dentre os envolvidos nas disputas das facções políticas baianas, estava Nelson Carneiro, considerado braço direito de J.J. Seabra nas disputas com Juraci Magalhães, e que publicou, em 1933, um texto-denúncia contra este91. Apesar do pai de Nelson, o Professor

Souza Carneiro, defender com certa convicção o seabrismo, não conseguiu impedir que um de seus outros filhos, Edison, se aproximasse das correntes de esquerda que ganhavam terreno na Bahia.

A família Carneiro não possuía uma situação financeira confortável, em contraste com as outras do estrato ao qual pertencia, porém, seu pai ocupava o posto de Professor da Escola Politécnica, o que habilitava sua passagem pelos círculos da elite mais letrada da Bahia. Jorge Amado, filho de um coronel enriquecido pelo ciclo do cacau, comentou a situação de pobreza característica da família do amigo: “O mais pobre de todos nós seria Edison Carneiro, membro

de família numerosa. O pai, professor Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal

ganhava para as despesas inadiáveis da prole (...)” (Amado, 1992: 426). Antes mesmo de formar-se bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia (1935), Edison já exercia a atividade jornalística e compartilhava com Jorge Amado um grande interesse pelo papel do negro na sociedade.

91 Humilhação e devastação da Bahia (análise documentada da administração do Sr. Juraci Magalhães reunida e anotada por Nelson de Souza Carneiro).

Começando sua carreira no momento em que o modelo racialista sofria fortes críticas e o papel do negro e do mestiço passava a ser visto como positivo, Carneiro acompanhou de perto a forte repressão que estas populações sofriam em Salvador, cujas elites almejavam uma “desafricanização das ruas” 92. Jorge Amado testemunha a convivência com uma das práticas comuns da população negra93 da capital baiana, alvo da ira de algumas elites: “Edison, Aydano

do Couto Ferraz, eu, nós todos éramos um pequeno grupo de jovens que frequentava candomblés. Na época, representávamos uma exceção... Era perigoso, a repressão era violenta...” (Raillard, 1990 :84). Em outro texto ele complementa, afirmando o sentimento do grupo: “...sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele

construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia” (Amado, 1992: 85). A conclamada proximidade é evocada como uma das razões que os levaram a defender as religiões afro- brasileiras e seus representantes frente aos poderes repressivos da polícia e às críticas da imprensa. Por outro lado, a aproximação entre intelectuais com orientação de esquerda e os candomblés fez com que estes fossem também reprimidos, como se fossem esconderijos de subversivos: “durante a ditadura, a do Estado Novo sob o regime de Vargas, Edison Carneiro

foi perseguido como comunista – naqueles tempos ele era comunista. Foi escondido no candomblé de Aninha...” (Raillard, 1990: 84). Os primeiros estudos de Carneiro94 e, principalmente a realização do 2° Congresso Afro-Brasileiro em Salvador no ano de 1937, guardam parte importante de seus sentidos como uma reação a este contexto.

92 Dias comenta que nas primeiras décadas do século XX, na “Bahia, procurou-se não só modificar a paisagem arquitetônica da capital, mas também e, sobretudo se buscou ‘desafricanizar as ruas’” (Dias, 2006: 26)

93 Dias comenta que: “Como a concentração de renda era grande e secularmente centrada nos brancos, não é difícil perceber qual era a cor da pobreza e dos costumes que tanto contrariavam as elites” (ibid.)

94 Carneiro, Edison. Religiões negras – notas de ethnographia religiosa, de 1936 e Negros Bantus – notas de

ethnographia religiosa e de folk-lore, de 1937, ambos pela Editora Civilização Brasileira, por intermédio de Artur Ramos.