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Capítulo 2. Capoeiristas, intelectuais e Estado na Bahia: jogo de dentro e jogo de fora

2.5. Os anos de formação e alguns valores do mestre

Filho de José Señor Pastiña, imigrante espanhol e comerciante do Pelourinho e Eugênia Maria de Carvalho, negra, nascida na Bahia, vendedora de acarajé e lavadora de roupa de ganho (Barreto & Freitas, 2009), Pastinha via a si mesmo como “um mulatinho descendente de

190 Idem, ibidem.

escravos” 192. Raríssimas as vezes em que se referiu à descendência espanhola, e mesmo sobre a mãe ou sua relação com ambos na infância pouco se sabe. Por outro lado, em vários momentos o mestre usou uma frase lapidar para expressar sua compreensão sobre a capoeira, que pode bem iluminar sua própria vida:

“Tudo que penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na

porta da academia. Em cima só estas três palavras, Angola, capoeira, mãe. E embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio

capoeirista” (Abreu e Castro, 2009: 21). “Angola, capoeira e mãe”. Quando conta que seu aprendizado sobre a capoeira foi com um velho africano, por volta dos dez anos, seu significado como “proteção do mais fraco contra o mais forte” é evidenciado: “Quando eu tinha dez anos – eu era franzino – um outro menino mais

taludo que eu tornou-se meu rival (...) Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza” (ibid.: 24-5). A solução fora o aprendizado da capoeira com um “velho africano” que assistia a briga, chamado Benedito: “Então ele me ensinou a jogar

capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo” (ibid.: 25). A admiração pelo velho Benedito, que lhe ensinou a capoeira como meio de proteção, se estendeu a todos os africanos que, segundo Pastinha, ensinavam e “não cobrava nada, só queria divulgar a arte” 193. Foi a seleção da memória deste aprendizado da infância a que Pastinha recorreria muitas vezes para explicar como aprendeu capoeira, exercício que também abarcava certos valores. Dentre eles, o de proteção, escolhido também no aprendizado da capoeira com Benedito, que se o remetia a uma África imaginada, Angola, também facilitava sua filiação a esta narrativa mítica, pois como ele insistia

192 ibid.

em dizer, capoeira é mãe. Do elo que o africano Benedito representava entre a outra margem do Atlântico e a maternidade pela capoeira na Bahia, podemos entender também o pensamento que segue as palavras: “Mandinga de escravo em ânsia de liberdade”. Como bem destacou Letícia Vidor Reis, Pastinha sempre insistiu na associação entre capoeira e luta dos escravos por liberdade (1997: 141). Em uma das seções do livro de Pastinha lemos que: “Não há dúvida que a

capoeira veio para o Brasil com os escravos africanos” (1964: 20) Mas, ao contrário de criar um mito para “reafricanizar” a capoeira, ligando-a a uma Angola mítica, ele imaginou sua própria trajetória como um descendente de escravos, reagindo contra a opressão imposta, aprendendo sobre a “mandinga de escravo em ânsia de liberdade”. Pastinha experimentou outras situações que reforçam este deslocamento: “Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas

vezes a polícia em cima de mim (...) Quando tentavam me pegar eu lembrava de mestre Benedito e me defendia (...)” (Abreu e Castro, 2009: 25). Nessa entrevista, realizada em 1967, evidencia-se como a memória do Mestre operava uma seleção de fatos sobre uma narrativa já mítica, onde a prática emerge como um instrumento herdado do “velho africano” para defesa em situações de desigualdade.

Desta forma, Pastinha sedimentou ao longo do tempo uma narrativa em que imaginava ser a origem e destino da capoeira o mesmo que o seu. No plano da narrativa, o paralelo entre Pastinha e a capoeira se dava na posição de elo entre o passado e o futuro da tradição, em que ele se via como predestinado: “Eu nasci pra capoeira (...)” (Pastinha, 1969) cantava o mestre em seu disco. Em seus manuscritos afirmava veemente: "Amigo eu já fui destinado pela natureza, feito

da para poeira, para ser jogador de capoeira... (sic)" (1997: 82). Na narrativa mítica da capoeira (Reis, 1997), Mestre Pastinha via sua existência como um evento num espectro de longa duração, como uma ponte, com uma face voltada para cada lado, uma para o passado e outra para o futuro:

“seu principio não tem método; seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”. Se de um lado a narrativa fala de algo fora do tempo histórico, Pastinha, servindo de ponte, lembra também, historicamente, de um tempo no qual os africanos só queriam divulgar sua arte, ensinando sem cobrar. Isto sem esquecer do momento contemporâneo, em que

“ninguém mais pode ensinar de graça (...) Hoje, com essa vida que nós

temos, pagando aluguel e comprando instrumento, não dá mais pra ensinar de graça. Não há mais mato pra gente pegar as sementes de fazer cabaça pra gente fazer berimbau” 194.

Por esta afirmação se vê que, continuamente, o mestre agencia certo passado, em que insere a sua pessoa no que considera como a “verdadeira” história da capoeira. Outra realidade é a percepção da capoeira como patrimônio sagrado. Pastinha não desconhecia nem recusava a interpretação da capoeira como herdeira das danças do batuque e do candomblé (Pastinha, 1997: 36), embora afirmasse pessoalmente, quando indagado sobre sua fé: “não sou católico nem sou

de candomblé. Eu creio em Deus, num só (Abreu e Castro, 2009: 28). Foi na base desta crença que também entendia ter se tornado “apto para cumprir a missão do que fui investido por Deus”, numa cruzada para combater o mal na capoeira, sendo esta entendida como uma espécie de religião, em que o mestre ocupava a função de sumo sacerdote (Reis, 1997: 145). Pelo mesmo motivo, muitos ensinamentos da capoeira, assumiam traços que extrapolavam a simples técnica, dada existência de segredos que somente após muito tempo de convivência com o mestre poderia ser alcançado: “Os mestres rezerva segredos, mais não nega a esplicação” (Pastinha, 1997: 30).

Por fim, no enlace entre a narrativa mítica que inscrevia Pastinha como um breve evento na longa história da capoeira, encontramos o discurso do nacionalismo, que o alinhará às teses da

prática como esporte nacional e como folclore. Era difícil resistir à associação com o nacionalismo num momento em que as manifestações populares eram alvo de intelectuais ligados ao poder público, interessados em fundar “políticas culturais que viabilizassem ‘uma autêntica

identidade brasileira” (Schwarcz, 1995: 54), mas ainda assim, a atitude de Pastinha passou longe de ser passiva. O nacionalismo teve papel importante em dar à narrativa mítica de Pastinha uma moldura histórica, fundindo a herança africana da capoeira, com as características nacionais, sob as possibilidades esportivas e folclóricas. No caso desta última característica, Pastinha acreditou realizar com a capoeira Angola, o que Edison Carneiro buscava na capoeira como folclore, isto é,

“ver o negro comportando-se como brasileiro”. Nas palavras de Pastinha, isso correspondia a uma noção de civilidade. Pierre Verger, no documentário sobre a vida de Pastinha (1998), corroborou esta posição, mencionando que a intenção de Pastinha foi fazer da capoeira algo decente, quando ela ainda era coisa de malandros, usada para brigas de rua.

Pastinha se esforçou para afirmar sua proposta de capoeira Angola como maneira de contribuir para formação da “raça brasileira”, argumento análogo ao que alguns intelectuais faziam da capoeira como “gymnastica nacional” (Reis, 1997: 23). Mas esta transformação em luta deveria ocorrer “nos próprios termos” da capoeira “tradicional”, nunca misturando elementos de outras lutas. Como disse, ao comparar a capoeira com o futebol, se o Brasil é muito melhor do que os ingleses, não obstante eles tenham inventado o futebol, porque não seríamos melhores capoeiristas, embora sejam os povos africanos que a tenham inventado?

Imaginando-se descendente de escravos e na fundação da raça forte e sadia do Brasil, assim gingava mestre Pastinha. Nem tão ingênuo como muitas vezes foi dito, ele dizia com a idade avançada, que a “(...) capoeira tem muita história que ninguém sabe se é verdadeira ou

na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos” (Abreu e Castro, 2009: 21). Ao encerrar pelo menos na duração de sua vida o sentido da prática que sempre defendeu como imemorial, Vicente Ferreira Pastinha inscrevia-se na longa duração, pois como a capoeira Angola, acreditava ser

“tradicional, vivo na Historia da capoeira; e amo ela...” (Decanio, 1997: 44-5).