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Capítulo 2. Capoeiristas, intelectuais e Estado na Bahia: jogo de dentro e jogo de fora

2.1. Jogo de fora e jogo de dentro

O principal objetivo deste capítulo é dar relevo aos significados da capoeira para seus praticantes, em relação às disputas ocorridas com intelectuais e representantes do Estado. Na aproximação dos interesses e sentidos que a capoeira protagoniza, nota-se certa “ebulição de significados” em torno da prática. Pretende-se enfatizar como tal “ebulição” foi interpretada e também mobilizada por algumas pessoas, que ficaram conhecidas como mestres de capoeira, tanto para impor e estabilizar o que entendiam ser a capoeira, como para construir e ocupar as melhores posições sociais que dela derivaram.

Em se tratando de acompanhar o agenciamento dos capoeiristas neste período, a noção de “jogo de dentro” e “jogo de fora”, utilizada por Mestre Pastinha e outros capoeiristas, pode representar uma boa metáfora. Diz o mestre que o jogo de dentro “é realizado no chão, jogo

rasteiro, apoiando-se os capoeiristas apenas, com os pés e as mãos (...) O corpo não pode tocar o chão. Nesta modalidade, a malícia dos lutadores, procurando um enganar o outro, tem sua

grande aplicação (...)” (1964: 42). Inversamente, como explica Mestre Bola Sete, no livro

Capoeira Angola na Bahia, depois “do jogo de dentro, damos início ao ‘jogo de fora’, que é

praticado na posição de pé. Neste jogo podemos aplicar todos os golpes da capoeira e em qualquer parte do corpo do adversário” (2005: 70). Além de uma metáfora sobre a inversão da ordem social, representada pelo predomínio do baixo corporal103, o que estas afirmações sugerem é um trânsito entre o alto e o baixo, o dentro e o fora como momentos específicos da luta que se trava. Com isso, pretende-se afirmar que o trânsito constante entre estas duas dimensões, são estratégias de luta que resumem também o tipo de conduta104 dos capoeiristas em suas relações com os intelectuais e representantes do Estado na Bahia.

A referência à “ebulição de significados” é assumida aqui como um momento especial pelo qual a capoeira baiana passa desde a década de 1930 até meados da década de 1960. Nesse período ocorreram importantes transformações que somente se estabilizaram posteriormente. As condições de realização da capoeira na cidade de Salvador estavam em franca mudança. Tanto os locais onde se realizam as rodas de capoeira, como a imagem daqueles que a realizam, passando pelas relações que se estabelecem entre os capoeiristas, modificaram-se intensamente no período. São variadas as fontes que permitem identificar este fenômeno.

Para melhor compreender a visão de Mestre Pastinha, nos apoiaremos nos livros Capoeira

Angola, publicado no auge de seu reconhecimento, em 1964, e A Herança de Pastinha, de 1997, também conhecido como os Manuscritos de Mestre Pastinha, editado a partir de documentos redigidos por Pastinha durante sua vida e deixados com dois importantes amigos antes de sua

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Para a Letícia Vidor Reis, “o mundo da capoeira é um mundo às avessas. Nesse mundo invertido, o baixo corporal (pés e quadris) torna-se mais importante do que o alto corporal (cabeça, mãos e tronco)” (1997: 212).

104 Reis é uma das autoras que sugere a possibilidade de se interpretar a roda de capoeira como um microcosmo do

morte, o pintor Carybé105 e o escritor e ex-deputado Wilson Lins106. Certamente, ao deixar tais documentos com estas duas figuras de renome, Pastinha imaginava poder perpetuar, de alguma maneira, o prestígio alcançado pela capoeira que defendia e também a sua imagem de criador. Além destes documentos, Pastinha deixou suas opiniões expressas em vários depoimentos à imprensa escrita, rádio e televisão, sendo que alguns foram compilados no disco Mestre Pastinha

Eternamente (1969) e no documentário Pastinha! Uma vida pela capoeira (1998), ambos usados como fontes, além da pesquisa em periódicos feita junto ao acervo digital da Biblioteca Amadeu Amaral, do Museu do Folclore.

As fontes da imprensa também permitiram uma aproximação com a perspectiva dos intelectuais e representantes do Estado, complementadas por publicações relevantes de personalidades de destaque na época como Edison Carneiro, a antropóloga norte-americana Ruth

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Hector Julio Páride Bernabó nasceu em Lanús, Argentina, no ano de 1911. Foi pintor, gravador, desenhista, ilustrador, mosaicista, ceramista, entalhador, muralista. Frequentou o ateliê de cerâmica de seu irmão mais velho, Arnaldo Bernabó, no Rio de Janeiro, por volta de 1925. Entre 1941 e 1942, viajou por países da América do Sul. De volta à Argentina, traduziu com Raul Brié, para o espanhol, o livro Macunaíma, de Mário de Andrade (1893 - 1945), em 1943. Em 1944, foi a Salvador, e passou a se interessar pela religiosidade e cultura locais. No Rio de Janeiro, auxiliou na montagem do jornal Diário Carioca, em 1946 e colaborou com o Tribuna da Imprensa, entre 1949 e 1950. Em 1950, mudou-se para Salvador para realizar painéis para o Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Na Bahia, participou ativamente do movimento de renovação das artes plásticas. Em 1957, naturalizou-se brasileiro. Publicou, em 1981, Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. Ilustrou livros de Gabriel García Márquez, Jorge Amado e Pierre Verger, entre outros.

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Wilson Lins nasceu em 1919, em Pilão Arcado, Bahia. Era filho de um poderoso coronel da Bahia, Franklin Lins de Albuquerque. Cursou o Secundário no Ginásio Carneiro Ribeiro e Colégio Ipiranga, Salvador-BA. Atuou como redator-chefe e diretor do jornal da família O Imparcial; trabalhou no Diário de Notícias, Diário da Bahia, A Tarde e Jornal da Bahia. No Rio de Janeiro, foi redator político e cronista do jornal O Mundo, de 1948 e 1950 e repórter da sucursal do jornal O Estado de São Paulo. Romancista, novelista, cronista e ensaísta, tinha como tema constante em suas obras o regionalismo, principalmente a região do São Francisco. Em 1967, foi eleito para a Academia de Letras da Bahia. Ocupou ainda o cargo de Secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia (1959-1962); presidente do Conselho Estadual de Cultura (1983); Deputado estadual pelo Partido Republicano - PR (1951-1963), reeleito pela União Democrática Nacional - UDN, (1963-1967) e pela Aliança Renovadora Nacional - ARENA, (1967-1971).

Informação extraída do site da Assembleia Legislativa da Bahia:

Landes, o escritor Jorge Amado, o etnólogo e folclorista Waldeloir Rego107 e o pintor argentino Carybé, entre outros.

Uma das primeiras características a destacar, nas décadas de 1930 e 1940, é o local onde acontecia o jogo da capoeira. Em geral, as rodas de capoeira congregavam grupos de pessoas conhecidas, e com ampliada presença sobretudo quando se apresentavam em locais públicos, como as festas e feiras populares de Salvador, dentre as quais destacam-se as de Nossa Senhora da Conceição da Praia108 ou de Santa Bárbara109. Outro traço relevante do período é a imagem do capoeira veiculada nas manchetes de jornais, conforme pode ser visto no interessante estudo do historiador Josivaldo Pires de Oliveira (2004). O historiador afirma que, analisando os praticantes no momento em que o fenômeno está fortemente associado à criminalidade, ou seja, entre 1912 e 1937, embora não encontremos evidências diretas da repressão policial, o capoeira “aparece

frequentemente nas colunas policiais, às vezes como vítima outras tantas como agressor, mas

sempre nas manchetes que tratam da criminalidade das ruas. Essa era uma situação que permaneceu, pelo menos, até meados da década de 1930” (Pires: 2004: 120). Dessa forma, são as próprias relações estabelecidas entre os praticantes que passarão por mudanças, com a consolidação de hierarquias entre mestres e aprendizes, as tentativas e sucessos na metodização da capoeira e a transformação do ensino e da exibição da capoeira em fonte de renda contínua. Em poucas palavras, a capoeira passara, em breve, a ser vista como uma profissão, uma carreira,

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Waldeloir Rego era antropologo de formação, escritor, ensaista e escultor, reconhecido estudioso da cultura afro-baiana. Nasceu no dia 25 de agosto de 1930, na cidade de Salvador, Bahia. Publicou Sete Lendas Africanas da Bahia (1978) e Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé(1981).

108 Esta feira, para Amado, seria “a preferida dos capoeiristas que fazem aqui suas melhores demonstrações (...) Os grandes capoeiristas exercitam-se na vista da multidão, acompanhado pelo berimbau e pelo chocalho. É uma das festas populares mais interessantes da cidade” (Amado, 1945: 150).

109 Sobre esta feira, sabemos também por Amado, que “A festa de Santa Bárbara, Iansã dos negros, é realizada no Mercado da Baixa dos Sapateiros. Muita cachaça, um grande torneio de capoeira. Inicia-se com uma missa em honra da Santa, voltando-se depois todos os assistentes e mais os que aderem para o mercado em ruidosa procissão” (Amado, 1945: 149)

de inserção ambígua, entre o desporto e a arte. Como indica Pires, sobre esta passagem, visualizando as páginas de jornais em meados da década de 1930, os capoeiristas “passaram a

ocupar, também, outros espaços nos periódicos locais, como as manchetes desportivas e culturais” (Pires, 2004: 120).

As décadas de 1930 a 1960, pelos traços de transição mencionados, ampliam as formas de atuação dos capoeiristas frente às possíveis interpretações de sua prática e nos oferecem bons argumentos para notar quais os limites e possibilidades de ação social. Como os capoeiristas percebiam e agiam no âmbito deste processo de mudança? Negavam o passado recente que criminalizava a capoeira? Como entendiam que deveria ser então a capoeira? Valorizavam ou negavam os significados da capoeira como folclore e como esporte? Como a valorização de determinados aspectos era agenciada pelos capoeiristas nas relações com outras pessoas, como intelectuais e representantes do Estado?

A conduta de oficialização que o poder público imprimiu a manifestações como o candomblé, o samba e a capoeira no Brasil e, em especial na Bahia, foi alvo das preocupações de Jocélio Telles dos Santos. Destacando a incorporação de tais manifestações pelas políticas oficiais como símbolos de autenticidade da nossa brasilidade, Santos enfatiza que se o patrimônio da “cultura” brasileira passava a ser apresentado como negro na sua origem, seus contornos passavam pela Bahia. Uma análise das notícias publicadas pela imprensa baiana na década de 1960, por exemplo, o leva a concluir que: “O candomblé (...) passava-se a se constituir em um

símbolo, por excelência, de baianidade. Junto com a capoeira e a culinária, ele foi incorporado pela mídia, por órgãos públicos, empresas privadas, como uma das marcas registradas da

valorizarem a capoeira como “esporte nacional”, as mesmas irão reforçar “a visão da capoeira

como manifestação folclórica” (Ibid.: 121).

Mas os capoeiristas também vão se apropriar do debate e estabelecer suas demandas em relação à capoeira, explicitando para o autor uma nova forma de cultura política que se instala a partir dos anos 70110. Nosso foco aqui é lançado sobre a forma como, no contexto imediatamente anterior a este, os capoeiristas agiam e quais estratégias colocavam em ação nos anos entre a repressão e a aceitação da prática pelo poder público, pela imprensa e pelas elites.

Mestre Pastinha (1889-1981) é considerado por muitos, como um dos maiores capoeiristas baianos, expoente do estilo de jogo que se consolidou como Capoeira de Angola ou

Capoeira Angola. A referência ao estilo traz uma série de significados sobre a origem e as características da capoeira, frequentemente contraposta ao estilo denominado Capoeira Regional, capitaneada pela figura de Mestre Bimba. Mas, antes de tentar resumir quais seriam tais diferenças, é preferível acompanhar como elas são acionadas em determinados contextos, tendo em vista a trajetória de Mestre Pastinha.