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Caminhos para imaginação nacional II: folclore e identidade

Capítulo 1. Imaginando a nação mestiça

1.1. Cultura e política: a década de 1930

1.1.6. Caminhos para imaginação nacional II: folclore e identidade

Tal como essas reflexões eram novas, o mesmo ocorria com as instituições que ancoravam a mencionada produção. Elas foram parte importante para generalização de um novo padrão de estudos sociais, desencadeados pela Revolução de 1930. Ortiz explica esta passagem ao indicar que Freyre trabalha em uma organização que segue “os moldes dos antigos Institutos Históricos e

Geográficos” (1985: 40-1), diferente, por exemplo, de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, que escrevem a partir das novas instituições universitárias. Esta mesma diferença pode ser percebida na passagem que Antonio Cândido estabelece ao ver Freyre e sua obra como “uma

ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Silvio Romero,

Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especificamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940” (1978: xii). Tais pontos de vista estão estreitamente ligados à criação das cátedras de Sociologia e Antropologia em instituições como a Universidade de São Paulo, lugares que pressupõem uma especialização, e onde “se ensinam

técnicas e regras específicas ao universo acadêmico” (Ortiz, 1985: 40).

Outras importantes instituições culturais surgem em paralelo às universidades, embora bem mais próximas do Estado, tais como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) criado na gestão de Gustavo Capanema57 no Ministério da Educação e Saúde, e a Comissão Nacional de Folclore, em 194758, fundada no âmbito do Ministério das Relações

Exteriores e dirigida por Renato Almeida59. Como pondera Schwarcz, será “só com o Estado

Novo que intelectuais ligados ao poder público implementam projetos oficiais” (1995: 56), momento preciso pois, ao inventar-se a nacionalidade, “a identidade e as singularidades

nacionais se transformavam rapidamente em ‘questões de Estado’” (ibid).

Junto ao papel do mestiço e à ressignificação de uma série de manifestações a ele associadas, como a feijoada, a capoeira e o samba, outro componente importante para identidade da nação

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Gustavo Capanema Filho nasceu em Pitangui (MG) no dia 10 de agosto de 1900. Bacharelou-se em direito em dezembro de 1924, onde participou do grupo conhecido como “os intelectuais da rua da Bahia”, integrado também por Carlos Drummond de Andrade, Mílton Campos, João Alphonsus e João Pinheiro Filho. Partidário da Aliança Liberal, assumiu, em 1934, o posto de Ministro da Educação do governo de Getúlio Vargas, ficando nele até 1945. Até sua morte, em 1985, exerceria ainda diversas funções públicas (Extraído do CPDOC/FGV em outubro de 2010 http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx?id=busca_rapida)

58 Segundo Vilhena, em 1946, com a convenção internacional que criou a Unesco, todos os países se comprometeram a criar comissões nacionais ou organismos de cooperação. Atendendo à exigência, o Brasil criou no mesmo ano, junto ao MRE, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) (Vilhena, 1997: 94). 59 Musicólogo e folclorista. Ainda adolescente, migrou com a família da Bahia para o Rio de Janeiro. Em 1915, formou-se em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais.Trabalhou como advogado e jornalista. Em 1926, foi nomeado diretor do Lycée Français (hoje Colégio Franco-Brasileiro) do Rio de Janeiro. Nessa época, ingressou no Ministério das Relações Exteriores, chefiando por um longo período o serviço de documentação do Itamarati, representando-o também em missões oficiais no exterior. (Extraído do Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira em Junho de 2009

imaginada será o folclore, excluído do âmbito universitário das Ciências Sociais pela dificuldade de uma definição científica60, mas institucionalizado como política cultural pelo Estado Novo.

Na sua vertente europeia, o folclore vincula-se ao romantismo com uma valorização da diferença e da particularidade, em oposição a uma razão universal, atribuindo a ele as seguintes noções: de uma totalidade integrada da vida, rompida no mundo moderno; de um povo ingênuo e simples, idealizado como um passado utópico; de comunitário, que implica na homogeneidade e anonimato; do rural como as expressões preferencialmente distantes da corrupção moral das cidades; da oralidade; e, por fim, do autêntico, compreendido como uma alteridade idealizada (Cavalcanti, 2001: 67).

No Brasil, parte desta compreensão será mantida. Com pesquisas desenvolvidas pelo menos desde Silvio Romero61 no século XIX, o folclore ganhou novo impulso no início do século XX, principalmente pela redefinição conceitual operada por Mário de Andrade, e posta em prática na experiência pioneira da Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), em São Paulo, no ano de 193662 (Vilhena, 1997: 90). O deslocamento conceitual operado por Andrade foi defender a singularidade do folclore nacional não na literatura e contos de tradição oral, como tentou fazê-lo

60 Rodolfo Vilhena e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti analisam com muita propriedade o esforço dos folcloristas em institucionalizar o folclore como disciplina nas Ciências Sociais, apresentando os debates que opunham, por exemplo, Florestan Fernandes e Édison Carneiro. Cf. “Traçando Fronteiras: Florestan Fernandes e a Marginalização do Folclore”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5, 1990, p. 75-92.

61 Nasceu em 1851, em Sergipe. Entre 1868 e 1873 formou-se como Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, época em que colaborou com diversos periódicos locais. Atuou como promotor, deputado e juiz em cidades de Sergipe e Rio de Janeiro (1874-1879). Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1897) e deputado federal pelo Partido Republicano (1900-1902). Publicou, dentre mais de 50 títulos, obras como Etnologia Selvagem (1875) e Cantos Populares do Brasil (1883). (Botelho e Schwarcz, 2009: 422).

62 Desta experiência, desenvolvida enquanto Mário de Andrade ocupava a Direção do recém-criado Departamento de Cultura do Município de São Paulo, Marta Amoroso oferece a seguinte descrição:

“Foram pouco mais de quatro anos de trabalho, nos quais a Sociedade de Etnografia e Folclore manteve intensa divulgação de suas atividades nos jornais da cidade e também por meio de um Boletim e da “Seção Etnográfica” na Revista do Arquivo Municipal, veículos oficiais do programa de investigação do Departamento de Cultura, onde Mário de Andrade e demais sócios e colaboradores publicaram os resultados das suas pesquisas. A SEF participou ainda de três congressos... Mas foram sem dúvida as viagens de pesquisa etnográfica que deram a SEF estatuto de modernidade que faz seu acervo permanecer ainda hoje no horizonte dos nossos interesses” (2004: 65-6).

Romero, mas na música popular (Andrade, 1965: 31). Esta afirmação seria um dos lemas dos folcloristas da década de 1940 em diante, no trabalho de identificar, catalogar, preservar e construir um mapa das manifestações folclóricas do país.

Assim como a questão racial, o desenvolvimento do folclore foi outra trilha aberta no processo de “descoberta do povo” experimentado pela intelectualidade, na esteira dos modernismos63. O principal comandante da popa em que os integrantes do Movimento Folclórico imaginavam a nação, era Renato Almeida, vinculado ao segmento carioca do modernismo e grande amigo de Mário de Andrade, como informam as centenas de cartas trocadas entre ambos pelo menos desde 192464. Ao longo de sua atuação, a Comissão Nacional de Folclore conseguiu

constituir uma ampla rede de colaboradores alocados em Comissões Estaduais, além de realizar inúmeros encontros e a publicação de trabalhos por meio da Revista Brasileira de Folclore. A qualidade dos trabalhos realizados poucas vezes ultrapassou o diletantismo, ainda que a profissionalização da prática fosse um dos objetivos dos integrantes do movimento65. Mesmo assim, é interessante notar como os folcloristas, com seu interesse pelo detalhe e pelo pitoresco das manifestações populares, encontraram ressonância e deram sentido à ação de um grande número de “intelectuais de província” 66, antes preocupados apenas em escrever sobre a história

das elites.

63 Uso o termo no plural considerando as ponderações de Ricardo Benzaquen Araújo. Este menciona o caso de Gilberto Freyre como uma variação regional do modernismo, distinto “daquela postura a um só tempo nacionalista e modernizadora que se tornava gradualmente hegemônica entre nós” (2005: 19).

64 Pude consultar a correspondência enviada por Almeida para Mário de Andrade e são constantes os elogios e os pedidos de informação ao escritor paulista. Em 2003 foi concluída uma pesquisa de mestrado com base em 188 documentos trocados por ambos entre 1924 e 1944. Ver Nogueira, Maria Guadalupe Pessoa. Edição anotada da correspondência Mário de Andrade e Renato Almeida. Dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2003.

65 Tal como sugere o livro Pesquisa de Folclore (1955), elaborado por Edison Carneiro e Manual de Coleta Folclórica (1965), desenvolvido por Renato Almeida.

66 A afirmação é de Vilhena, e ele exemplifica com o conselho de Mário de Andrade ao amigo Luís da Câmara Cascudo. Aquele, cansado de receber escritos prolixos, como por exemplo um livro sobre a história do Conde D’eu, manda que Câmara Cascudo pare de escrever sobre um conde sem importância, desça da rede e vá para a rua

Rodolfo Vilhena define o ethos dos folcloristas a partir de quatro aspectos principais: o sentido de missão, a atuação coletiva, o aspecto ritualístico e uma dimensão espetacular comemorativa. O sentido de missão está estreitamente vinculado ao sentimento de construção da nação por meio da recuperação das manifestações espalhadas pelo país e do reencontro do país com sua alma, mas pela mão de alguns dos seus intelectuais. A atuação coletiva diz respeito à recusa da atuação individualista e vaidosa por parte dos integrantes das Comissões Estaduais de Folclore. Já os aspectos ritualísticos, espetaculares e comemorativos se realizavam principalmente nos grandes encontros e exposições folclóricas. Esta dimensão foi muito importante entre os folcloristas, como bem analisa Vilhena, concluindo que o “ethos folclorístico”, baseado na celebração coletiva e cordial de seu objeto (pelos festivais folclóricos), vê a cultura tradicional como o lugar de encontro de raças, classes e culturas diferentes (1997: 226).

Não podemos deixar de notar que este tipo de mobilização, repetida várias vezes em diferentes cidades (Rio de Janeiro, Curitiba, Maceió, Salvador, etc.), ia ao encontro das intenções do Estado Novo de promover grandes rituais de celebração da nacionalidade. Numa estratégia talvez um pouco distinta, por exemplo, dos grandes corais criados e desenvolvidos por Villa- Lobos, os folcloristas provocavam grande rumor entre as autoridades públicas, a população e a imprensa ao promoverem uma narrativa em que as regiões do país eram apresentadas por meio de algumas manifestações que se sobrepunham às coordenadas geográficas de norte, sul, etc.. Foram criadas assim as referências de um Brasil cujo mapa passava a ser o norte do boi-bumbá, o sul do gaúcho, a Bahia do candomblé e da capoeira. Era desta popa que os folcloristas imaginavam a

registrar as manifestações folclóricas que estão á sua porta, em Natal. A história está bem descrita no livro Cartas de Mário de Andrade a Luis da Câmara Cascudo. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.

nação, nas palavras de Renato Almeida, “como uma série de quadros regionais que [dariam],

com o aspecto ecológico, a nossa realidade folclórica” (Vilhena, 1997: 219).

A estratégia de ritualização também fez parte da conduta dos que se dedicaram a debater a questão racial nos dois Congressos Afro-brasileiros. O antropólogo Waldir Freitas de Oliveira lembra que pesou sobre Gilberto Freyre, organizador do 1° Congresso em 1934, a acusação de “exploração política do negro brasileiro” (Oliveira, 1987: 24) e que os organizadores do 2° Congresso também foram alvo de críticas, por darem muito destaque às visitas aos terreiros e apresentações de capoeira, samba e batuque (Carneiro, 1964: 98)

Entre a questão racial e o folclore se desenharam algumas das principais discussões sobre a identidade nacional entre as décadas de 1920 e 1940. Esses elementos estiveram presentes nas primeiras tentativas dos intelectuais em criar instituições e formular projetos culturais com o poder público (como a Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo, a Comissão Nacional de Folclore e a consolidação das Ciências Sociais no moderno ambiente universitário). Nesse âmbito, imaginar a nação era necessariamente debater sobre a importância do negro e do mestiço na transformação ou na manutenção das tradições. Era também fundamental perceber as manifestações populares como parte integrante e importante do caráter nacional, catalogando, preservando e difundindo o que se acreditava ser o tipo ideal de cada manifestação, tentativa difícil de ajustar um conceito rígido à realidade dinâmica das expressões culturais. Os estudiosos da questão racial, mais próximos das primeiras iniciativas de estudo do folclore do que possa parecer à primeira vista, iriam instituir suas atividades nas novas cátedras universitárias surgidas na década de 30. Mas o grande impulso aos estudos desta década pode ser identificado nos dois Congressos Afro-brasileiros, um dos quais realizados na Bahia. Com a participação de um grande número de intelectuais locais, nacionais e internacionais, é o 2° Congresso Afro-brasileiro que

seguirá catalisando a grande importância que a Bahia já ocupava na imaginação da nação mestiça, e também realizava uma das primeiras ritualizações para um grande público de pesquisadores, interessados e curiosos, devidamente repercutido pelos grandes meios de comunicação.