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PARTE I. AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO PARA A

CAPÍTULO 3: AS CRISES POLÍTICO-ECONÔMICAS E A CONSOLIDAÇÃO DA

3.6. Os anos 2000 e a dificuldade de estabelecer estratégias

3.6.2. Campanhas de conscientização

Por meio de suas associações, a indústria fonográfica passou a investir em campanhas publicitárias e em acordos para veicular na imprensa o discurso que melhor se adequava aos seus interesses, acerca da prática da pirataria. Essa estratégia foi concebida e executada paralelamente às demais iniciativas de criminalização, sendo denominadas campanhas de conscientização – que aqui são entendidas como tentativas de deslocar os sentidos sobre o tema. Nessas campanhas, a construção discursiva visava convencer que o compartilhamento de arquivos ou a produção/compra de CDs piratas era prejudicial tanto às empresas do setor quanto aos artistas. Os meios para disseminar essas ideias foram os mais diversos: comentários e apelos na TV e no Rádio, cenas incluídas no início dos videogramas (VHS e DVDs), espaços publicitários em jornais e revistas impressos, organização de eventos sobre o tema etc. As campanhas atuavam tanto para constranger – relacionando os usuários das redes de compartilhamento e os consumidores de CD piratas ao crime organizado –, quanto para sensibilizar, por meio de um enunciado mais afetivo, que associava a pirataria física ou digital ao prejuízo para o artista ou, até mesmo, à impossibilidade de ele continuar sua atuação.

Ao tratar a questão como um deslocamento de sentidos é relevante deixar evidente que não se trata de estabelecer certo ou errado para o contexto, mas de analisar como o discurso é construído, como se dá a invocação da memória ou o esquecimento de sua construção nos vários pronunciamentos na sociedade. Nesta etapa do trabalho, a proposta é

apenas elencar as estratégias discursivas e analisar algumas delas. É o que será feito mais adiante, nas próximas subseções.

3.6.2.1 “Esses são os resultados da pirataria”

A Associação Antipirataria do Cinema e da Música (APCM) foi criada em 2006, conforme relata o jornalista Pedro Alexandre Sanches (2006). O evento de lançamento contou com a presença de representantes de diversas associações de empresas do setor fonográfico e cinematográfico: Ian Grant, diretor de antipirataria da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI); Pedro Rosa, presidente da Associação dos Produtores de Discos; Steve Solot, vice-presidente da Motion Picture Association (MPA); e John Malcolm, vice-presidente mundial de antipirataria da MPA da América.

Para explicar aos jornalistas a urgência da nova associação, os representantes introduziram o tema com dados sobre o setor e suas interpretações. Ian Grant, por exemplo, defendeu que “a indústria fonográfica brasileira foi dizimada nos últimos anos por conta da pirataria”. John Malcolm ressaltou os objetivos de atuação daquelas associações: “nosso negócio é proteger a música e o cinema. (...) estamos tentando proteger a energia criativa dos artistas. (...) a pirataria é um problema massivo mundial que afeta a viabilidade da criação. Temos que proteger esses mercados antes que eles sejam destruídos. (...) as pessoas que distribuem produto pirata não contribuem, não pagam o artista, estão simplesmente roubando a criatividade de outros”. Paulo Rosa preferiu enfatizar que se tratava de um problema público, ao mencionar a questão da tributação como uma das principais causas da pirataria: “é uma concorrência desleal, porque nós, gravadoras, somos obrigados a pagar ICMS, PIS, COFINS... e competimos com uma indústria que não paga nada disso” (SANCHES, 2006).

Tanto no evento, diante dos jornalistas presentes, quanto nas campanhas ao público em geral, os argumentos discursivos da APCM tentavam sensibilizar, por meio de enunciados afetivos, ora mencionando que a pessoa se aliava ao crime mesmo não querendo, ora mencionando que as condições de vida do artista e diversos trabalhadores (as) acabavam prejudicadas pela prática daqueles que compravam ou faziam download de cópias não autorizadas. A intenção não era somente mencionar a infração contra os direitos do autor, mas de incluir o pirata e o consumidor de produtos/arquivos piratas como parte

de uma rede criminosa maior, ou de uma ação que prejudicava diretamente os artistas e suas famílias. Tratava-se da tentativa de associar a pirataria ao roubo, ao crime, ao desamparo do artista, à responsabilidade individual do consumidor/usuário e, ainda, à falta de ação e sensibilidade do governo. Esses elementos aparecem quase que integralmente nas campanhas veiculadas pela associação, como no exemplo da Figura 1.

Figura 1: Campanha publicitária da Associação Antipirataria do Cinema e da Música

Diante da imagem utilizada no anúncio da Figura 1, podemos perceber que a APCM definiu o constrangimento afetivo como estratégia para inibir o avanço da pirataria. Há uma criança, inserida em um cenário de abandono e pobreza; a palavra “você”, em meio ao texto em destaque; a menção à “exploração do trabalho infantil”; e, por fim, a sentença: “esses são os resultados da pirataria”. Todos esses elementos do discurso ali articulado associam a pirataria à infração por cópias sem pagamento de direitos autorais, e também a crimes muito mais graves, incluindo a exploração infantil, nos quais as pessoas, individualmente, incluindo os consumidores, são consideradas como agentes. O anúncio não é apenas informativo, mas de uma tentativa de constranger os usuários, imputando-lhes

a responsabilidade por crimes hediondos.

3.6.2.2 Crimes em lugares comuns

A MTV, canal de televisão especializado em música, produziu e veiculou anúncios que tinham também como intenção associar a pirataria a crimes graves. O anúncio apresentado na Figura 2 é exemplo disso. Ele traz a imagem de um jovem, sentado em sua cama, no quarto, com uma máscara no rosto, semelhante às usadas por assaltantes ou às pessoas que escondem seus rostos para cometerem crimes graves.

Figura 2: Anúncio veiculado pelo canal de MTV, nos EUA.

A pirataria e o crime são, mais uma vez, relacionados, mas, nesse caso, o foco da condição de ilegal está na aquisição de músicas por meio digital não controlado pela indústria. O anúncio tem o seguinte texto: “You're an ordinary thief, if you're listening to illegally downloaded music” [Você é um ladrão comum, se você está ouvindo música baixada ilegalmente], que serve de alerta aos consumidores, de forma a fazê-los entender que a prática de compartilhamento de música os inclui entre criminosos, mesmo que não

tenham essa intenção, ou seja, por mais que a pessoa considere a prática normal, realizada dentro de um quarto comum, por um jovem como outro qualquer, há, nessa aparente normalidade ou trivialidade, um crime grave, tanto quanto em um assalto ou assassinato, sendo cometido.

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A Parte I desta pesquisa teve como objetivo apresentar as condições de produção do discurso que sustentava o modelo de negócios da indústria fonográfica. Os resultados obtidos demonstraram que, no Brasil, essa indústria inicia as suas atividades a partir de uma bem sucedida campanha publicitária (1) que teve êxito a promover uma nova forma de apreciação da música nos anos 1920 e 1930 e (2) que pode ser considerada como o discurso fundador do modelo de negócios da indústria fonográfica. Nas décadas seguintes, o modelo consolidou-se por meio de parcerias comerciais com os meios difusores, oferecendo pagamento pela execução nas rádios e negociando espaços em programas de televisão, que garantiram lucros substanciais às empresas parceiras. Essas estratégias comerciais, combinadas ao controle restrito dos processos tecnológicos, possibilitaram a perpetuação do modelo de negócios por quase cem anos, que conseguiu ultrapassar as adversidades mesmo nos momentos de crise político-econômicas das décadas de 1970, 1980 e 1990.

Os anos 2000, por sua vez, abalaram a indústria fonográfica brasileira, não somente porque perdia mercado para inúmeros os concorrentes pulverizados, mas porque perdia a disputa discursiva sobre como a música deveria ser apropriada e consumida. Quando foi percebida a perda de poder para conduzir a narrativa sobre como deve ser a apropriação/consumo da música, a indústria recorre ao Estado com a intenção de transformar seu problema em um problema público. Na Parte II deste trabalho a discussão se volta ao processo de tramitação no Congresso Brasileiro, categorizando principais os argumentos utilizados e analisando os efeitos de sentidos produzidos que culminaram na aprovação da proposta.

PARTE II. ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS PARA PERPETUAÇÃO