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PARTE II. ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS PARA PERPETUAÇÃO DO MODELO

CAPÍTULO 4: PROCEDIMENTOS DE TRABALHO PARA ANÁLISE DO

4.1 Materiais básicos de análise: o texto da justificativa da PEC da Música e as

4.2.2. Discursos relacionados fora da PEC

4.2.2.1. Espaços de interlocução nas audiências públicas

Como dito anteriormente, as audiências públicas são momentos para se debater as propostas de emenda constitucional. Além dos deputados ou senadores, especialistas são convidados para dar seus pareceres sobre o tema e munir os legisladores com melhores argumentos para decidirem pela continuidade ou não da tramitação da proposta.

Alguns trechos da transcrição dessa audiência serão aqui apresentados, a fim de evidenciar a rede de formulações construída em torno do argumento que sugere a aprovação da PEC como forma de defesa da cultura nacional.

Carlos de Andrade, em nome da Associação Brasileira de Música Independente, utiliza seu tempo de fala para associar o negócio da música à proteção da cultura nacional, relatando, inicialmente, uma pesquisa daquele ano, que avaliou o motivo de maior orgulho do brasileiro:

62% dos entrevistados disseram música e 45%, futebol. Vejam: o Brasil é o país do futebol ou da música? Eu acho que o próprio povo elegeu a sua identidade

nesta hora (BRASIL, 2008a, p. 03).

Mais adiante, ele apresenta seu entendimento sobre as mudanças no acesso e distribuição de música:

eu acho que todos vocês têm acompanhado pela imprensa uma derrocada gigante desse nosso setor por conta de uma prática infame, que é a pirataria, e das novas tecnologias da era digital, que transmutaram o perfil da nossa indústria – indústria essa que, até então, tem sido a única indústria auto-sustentável do País na área de cultura. (BRASIL, 2008a, p. 03).

E finaliza sua primeira participação, pedindo apoio para que a PEC seja aprovada: Nós precisamos urgentemente de mecanismos que nos permitam combater, e fazer com que essa indústria tão bonita, e que mora no coração e no orgulho de todos nós, possa subsistir pelas próximas décadas (BRASIL, 2008a, p. 04). Marcos Jucá, da Associação dos Editores Reunidos (AER), associa a situação de extinção de um animal à condição da produção musical, no cenário discutido:

Hoje, durante o almoço, falava que há alguns anos participei de luta ecológica pela preservação e fim da caça às baleias, ocasião em que um americano disse a seguinte frase célebre: vocês sabem quando vão parar a caça das baleias? Quando não tiver mais baleias para caçar. Eu dizia há pouco o seguinte: V. Exas sabem quando vão acabar com a pirataria? Quando não tiver mais músicas para piratear (BRASIL, 2008a, p. 10).

A cantora Sandra de Sá, ao fazer uso da palavra, também sugere uma situação calamitosa para a produção musical, que está à margem do modelo de negócio da indústria fonográfica:

Nós, de certa forma, sustentamos isso tudo e não temos subsídio nenhum; nós não temos apoio nenhum. A nossa cultura, digamos assim, musical está sendo deteriorada nisso tudo (BRASIL, 2008a, p. 06).

Mais adiante, ela reforça o argumento anterior:

A nossa música vai acabar, porque não temos mais como fazer música. Como as gravadoras estão acabando, nós estamos procurando esses meios independentes. Mas até quando, também, esses meios independentes vão se sustentar? Até quando? Se as grandes gravadoras, os grandes meios estão acabando. Temos que pensar nisso: até quando? Então, o que vai acontecer? Vai todo mundo sair do país, porque inclusive lá fora somos reconhecidos, temos estímulo, ajuda, e aqui isso não acontece. Eu acho que as pessoas têm que colocar isso na cabeça, têm que pensar mais nisso, e vamos nos ajudar (BRASIL, 2008a, p. 06).

crise e os efeitos para o país:

(...) é hecatombe, sim, porque estamos falando de um prejuízo muito grande a um valor cultural brasileiro, patrimônio da Nação. (BRASIL, 2008a, p. 17) A fala dos convidados teve eco durante o pronunciamento do Deputado Marcos Montes, que assim se expressou:

Precisamos, realmente, acertarmos um caminho. Conforme disse a nossa querida Sandra de Sá, figura maiúscula da música brasileira: não podemos chegar ao final dela. Com a música brasileira não pode acontecer como acontece com a caça às baleias. Temos realmente que dar uma parada e repensar a questão (BRASIL, 2008a, p. 11).

Imaginem o Brasil sem a música brasileira. Imaginem como vamos lidar com os nossos filhos e com as pessoas com que convivemos, como vamos fazer até política (BRASIL, 2008a, p. 12).

Na sessão seguinte, de 01 de abril de 2008, teve oportunidade de fala o representante da Receita Federal, Marco Aurélio Pereira Valadão. Sua participação utilizou como foco a explicação dos efeitos da redução de arrecadação e a discussão acerca da alteração na constituição, questionando se era a melhor alternativa para o caso. Abaixo está destacado um dos momentos de fala de Valadão, em que ele assume os argumentos apresentados até ali como válidos, mas questiona a eficácia da proposta, do ponto de vista fiscal:

O problema aqui, eu volto a dizer, é de direito autoral, que não se vai resolver com medida tributária. Embora eu concorde plenamente com as palavras dos músicos, esse é um problema sério que requer medidas para ser solucionado. Do mérito da questão eu não discordo de maneira alguma. Não há como discordar. São fatos. Mas a forma de resolver o problema talvez não seja essa. Isso pode piorar o problema (BRASIL, 2008b, p. 09).

Outro aspecto inconstitucional é o de que a desoneração pura e simples poderia ser feita por lei. Isso não é, a rigor, matéria constitucional. A constitucionalização desse tipo de matéria vai povoando a Constituição de normas que não têm natureza constitucional. E não têm natureza constitucional porque não dizem respeito a regras que materializam princípios constitucionais relacionados à forma do Estado ou às garantias individuais etc. Isso acaba aviltando o formato da Constituição (BRASIL, 2008b, p.10).

Na mesma sessão, o Deputado Otavio Leite, autor da Proposta de Emenda Constitucional, defendeu a música como “merecedora de um tratamento diferenciado”, por se tratar de “algo da dimensão do patrimônio brasileiro, da cultura nacional”:

Acredito que todos concordam que é merecedora de um tratamento diferenciado a música brasileira, no âmbito da estatura constitucional, para que possa produzir algum efeito. Do contrário, qualquer projeto de isenção aqui, acolá, teria, primeiro, uma tramitação muito mais complicada; segundo, um resultado, certamente, menos eficaz. Então, o pressuposto é o de tratarmos de algo da dimensão do patrimônio brasileiro, da cultura nacional. Primeiro, é preciso compreender que essa é uma proposta que tem a intenção também de criar um instrumento de combate à pirataria – apenas um instrumento, porque ela em si é uma questão de Polícia, de ação do Poder Executivo, da Receita Federal, da Delegacia Federal e de outros (BRASIL, 2008b, p. 23).

4.2.2.2. Entrevista publicada em jornal de grande circulação: “A qualquer hora vão descobrir que acabou a música no Brasil”

O discurso defendido em 2008, nas audiências públicas, pelos representantes da indústria fonográfica e alguns cantores e cantoras pode ser entendido como ressonância de pronunciamentos feitos pelos presidentes e diretores de grandes gravadoras, no início dos anos 2000, momento em que as novas tecnologias passaram a facilitar a cópia e a distribuição não controlada de música. Naquela época, os presidentes e diretores das maiores gravadoras em operação no Brasil começaram a relacionar a crise de seu negócio ao fim inevitável da produção musical brasileira. Uma ocorrência de tal argumento discursivo foi registrada em uma entrevista, concedida ao jornal Folha de São Paulo, no ano de 2001, situação em que presidentes de quatro grandes gravadoras atuantes no Brasil, e filiadas à ABPD, foram convidados a falar sobre as mudanças no mercado musical e a comentar acerca das estratégias contra o que denominavam como pirataria. Aloysio Reis, presidente da EMI (nota), à época, resumiu seu ponto de vista sobre o assunto da seguinte forma:

“Sabe o que acontece[u] com o negócio do apagão? Descobriram que acabou a energia no Brasil e à qualquer hora vão descobrir que acabou a música popular brasileira. É a mesma coisa. Mas aí vai ser tarde, vai ter que fazer racionamento. O que a gente quer é avisar que isso aí é verdade, que não é alarmismo. Nós estamos mandando artista embora, estamos deixando de contratar artista. Vai acabar. Quando acabar, “ih, acabou”, não vai dar mais para consertar” (SANCHES, 2001).