• Nenhum resultado encontrado

PARTE II. ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS PARA PERPETUAÇÃO DO MODELO

CAPÍTULO 5: OS DESLOCAMENTOS DE SENTIDOS SOBRE CRISE NO SETOR

5.2.2. Quem são os piratas?

comportamento pirata era exclusivo das pessoas mais empobrecidas? Se não era, havia uma diferença significativa entre o comportamento das pessoas mais pobres e daquelas com mais recursos financeiros?

Essas questões foram respondidas por técnicos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), que analisaram os dados da “TIC Domicílios 2010”, captados durante o Censo 2010, contabilizando 10,6 milhões de usuários “com respostas válidas para o cruzamento das questões sobre download e compra de músicas ou filmes” (IPEA, 2012). Dessa população pesquisada, 8,62 milhões foram considerados “piratas” (IPEA, 2012), o que correspondia a 81% dos usuários pesquisados.

A partir da informação global, é possível perceber que o consumo de produtos piratas não se restringe às condições financeiras, podendo ser associado a um comportamento geral da população, mesmo entre as pessoas que não teriam o preço do CD/DVD como um impedimento para o consumo.

Além da informação geral, pela análise, foram considerados “piratas” a) 75% dos indivíduos da classe A; b) 80% dos indivíduos da classe B; c) 83% dos indivíduos da classe C e; d) 96% dos indivíduos das classes D e E.

Em relação à distribuição espacial, os índices de pirataria são mais elevados no Nordeste (86%), seguido pelo Sudeste (82%), Sul (79%), Norte e Centro-Oeste (73%).

No item faixa etária, os piratas são maioria em qualquer faixa pesquisada: “a pirataria é mais intensa entre os usuários de 10 a 15 anos (91%), 16 a 24 anos (83%), 45 a 59 anos (82%), 35 a 44 anos (81%), e menos expressiva entre usuários de 60 anos em diante (67%)” (IPEA, 2012).

Não foram verificadas, igualmente, grandes diferenças de comportamento, no parâmetro escolaridade: “é possível observar que a pirataria é maior entre aqueles com menos educação (92%), e menor entre os que têm nível superior (77%)” (IPEA, 2012).

Os termos: “menos expressiva” ou “menor”, utilizados recorrentemente, no entanto, não indicam um comportamento minoritário ou marginal; trata-se, na verdade, de um interesse generalizado, que nos leva a entender que estamos diante de uma mudança estrutural, e não apenas de uma questão oportunista, relativa a preços ou não pagamento – haja vista a quantidade de pessoas piratas em faixas de renda com recursos disponíveis

para consumir os CDs ao preço atual.

A pirataria representa um problema ao modelo de negócios justamente porque oferece o mesmo produto e questiona os preços estipulados até então. Não se trata, pois, de uma relação de menor preço, mas de questionar o que está sendo entregue pelo que foi cobrado. As pessoas não conhecem os custos por trás de cada grande artista: prospecção, produção artística, impressão dos suportes, divulgação etc. Como um comparativo simples, podemos citar um livro que, por mais que tenha preço elevado, sabe-se que o material utilizado corresponde a uma parte significativa do preço, e que o processo de idealização e de redação não corresponde a grande porcentagem do preço de venda. O que a pirataria faz é evidenciar, sem qualquer pudor, que o custo em materiais é irrisório para cada cópia e que, então, não haveria razão para aceitar um preço que não apresentasse materialidade.

Não é um erro de pensamento do consumidor, já que ele foi instruído a relacionar preço a produto material. Quiseram tratar a música como um bem material e a audiência aceitou essa instrução. Por muito tempo, o suporte e a música foram confundidos e isso beneficiava as empresas controladoras do setor. Junto a essa instrução, não foi considerado o processo de produção, menos ainda a lucratividade envolvida. No momento em que o suporte deixa de ser a peça central do modelo, sendo barateado a níveis impensáveis, não há base para discussão sobre “direitos”, afinal, sobre produtos físicos, não há direitos de produção ou de autoria, mas direitos de posse. Com isso, o mesmo mercado que reduziu a música à sua cópia e desenvolveu um modelo de negócio baseado na restrição, agora não consegue justificar para seus clientes que a produção de seu produto não é, de fato, como a produção de um bem material. Do ponto de vista do consumidor, a redução de preços proporcionada pela cópia pirata é uma forma de contornar a proibição de acesso, não gerando quaisquer questões morais porque nunca foram discutidos “como” e “quem” está envolvido na produção acessada.

Tal situação não é diferente em outros mercados. Não se tem conhecimento de empresas que discutem seus custos ou seus processos de produção com seus clientes. De qualquer forma, os produtos materiais demonstram, em sua construção, que houve trabalho humano, matéria-prima e meios de produção mínimos para que a produção fosse concretizada, e que qualquer outro produtor do mesmo item teria condição similar de produção. O mercado da música conseguiu determinar o preço enquanto pôde controlar o

acesso e, por não ter se comunicado com sua audiência, agora se vê em um novo cenário, em que seus processos de produção não são entendidos ou, pior, continuam entendidos nos termos materiais, o que os faz perder para a concorrência, em virtude da demanda preferir o menor preço pelo produto entregue, uma vez que desconhece o processo de construção e não reconhece os direitos de cópia.

Não é mais possível justificar que a tecnologia de gravação exige grandes custos para produzir um produto com som de alta qualidade. Os piratas provaram que a alta qualidade e a durabilidade, menções relativas a produtos materiais, não precisam ter a barreira de acesso (preço) como os originais apresentavam. Quando a tecnologia de produção deixou de ser controlada pelas empresas do setor fonográfico, estas perderam o poder de restringir o acesso, tornando seu produto, novamente, abundante, condição que impossibilita o estabelecimento de um preço determinado.

Aos legisladores, faltou atenção para esse outro lado do processo de produção da música. Por ouvirem exclusivamente representantes da indústria fonográfica, deixaram de questionar o que, de fato, mudou no negócio que tinha a música como principal fonte de lucro. Não se trata de um novo comportamento, apresentado como ilegal e imoral; mas de uma percepção renovada da música, em que a influência do suporte foi minimizada, e o que era abundante volta a ser abundante.

De qualquer forma, mesmo que considerássemos como verdadeiro o argumento que relaciona renda, preços e pirataria, por que a redução de preços deveria ser bancada pelo conjunto da população? Se a indústria realmente acredita que seu produto mantém características de elasticidade-preço, não seria mais sensato reduzir o preço e aumentar o volume de venda, retomando os níveis de vendas anteriores? O que fica evidente aqui é que a indústria já tem conhecimento que seu produto, atualmente, apresenta características de demanda inelástica, ou praticamente inelástica, e que qualquer redução de preço financiado pela própria indústria teria pouco efeito sobre o volume de seus faturamentos. Logo, pareceu-lhes mais sensato transferir a redução de custos para os impostos, de modo que qualquer alteração nas vendas, decorrente da variação de preços, fosse percebida como acréscimo nos lucros das empresas do setor. Dessa forma, usa-se o dinheiro público como financiador de um mercado que desconhece seu público, contribuindo pouco para a democratização da cultura e utilizando discursos repetidos e pouco verossímeis para

justificar a manutenção de seus lucros históricos.

5.3. Dimensão da crise e a possibilidade de ela ser revertida: “dando à música a