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3 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEU CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO:

4.1 O CAMPO JURÍDICO DE DISPUTA EM TORNO DOS CONFLITOS ESTRUTURAIS:

Boaventura de Sousa Santos aduz que as sociedades contemporâneas são plurais sob os pontos de vista jurídico e judicial. Por isso, sob o enfoque sociológico, circulam nelas diversos sistemas jurídicos e judiciais, de modo que o sistema estatal nem sempre é o mais importante na gestão normativa da grande maioria dos cidadãos. Frente às falhas sistemáticas no sistema estatal, frustram-se também as expectativas democráticas, o que pode levar à desistência da crença do papel do Direito na construção da democracia, probabilidade que aumenta com o crescimento das desigualdades sociais e com a consciência social da sua injustiça.114

É justamente nessa perspectiva de frustração das expectativas democráticas por omissões dos Poderes Executivo e Legislativo, que o professor de Coimbra analisa o

114 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 09 - 10.

crescente protagonismo social e político do sistema judicial e do primado do Direito, na perspectiva do acesso, pela população, aos direitos.

Em âmbito internacional, alguns fatos marcaram a maior visibilidade do Judiciário: as decisões do Supremo Tribunal da Alemanha, na República de Weimar, após o fracasso da Revolução Alemã (1918) e seus critérios duplos de punição da violência política da extrema esquerda (comunistas e anarquistas) e da extrema direita (fascistas e nazistas); na década de 1930, a atuação do Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos, que bloqueou sistematicamente as reformas do New Deal, idealizadas pelo presidente Roosevelt; na década de 1960, quando a Warren Court foi baluarte na luta contra o racismo, ao atender às reivindicações da luta do movimento negro por direitos cívicos, dentre outros exemplos.115

Na atualidade, Boaventura de Sousa Santos pondera, no entanto, que o protagonismo do Judiciário não é meramente político, e sim fundado no primado do Direito. Observam-se, pois, duas situações contrastantes: o modelo de desenvolvimento baseado nas regras de mercado e nos contratos privados, que requer um Judiciário rápido, eficaz e independente; noutro giro, a precarização dos direitos econômicos e sociais, que também leva ao aumento da litigância. Justamente nesse contexto, o doutrinador aduz que a litigância tem relação com o nível de efetividade dos direitos.116

Transpondo suas considerações para o Brasil, o mesmo sociólogo afirma que a redemocratização e o novo marco constitucional, cravado na promulgação da Constituição Federal de 1988, dão maior credibilidade à via judicial como alternativa para alcançar os direitos. Até mesmo instrumentos jurídicos presentes desde o período da Ditadura Militar, como a ação popular e a ação civil pública, passam a ser mais utilizados após o advento da nova Constituição. Dessa forma, o sistema judicial passa a ocupar o espaço da Administração Pública, ante a ausência de realização espontânea das prestações sociais.117

Ocorre que, nessa passagem do regime autoritário para o democrático, ocorreu o que Boaventura denomina de curto-circuito histórico, isto é, a consagração repentina de direitos que, nos países centrais, foram conquistados a partir de um longo processo histórico.118 Houve, portanto, a consagração de extenso rol de direitos sem a necessária

correspondência de políticas públicas, situação que, não obstante revele grave problema de efetividade dos direitos, também possibilita, sob outro ponto de vista, a abertura de espaço

115 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 14.

116

Ibidem, p. 14 - 17. 117 Ibidem, p. 17 - 19. 118 Ibidem, p. 20.

para a maior intervenção judicial.119

Sob essa perspectiva, as classes populares, que, durante muito tempo, encontraram, no Judiciário, uma via repressiva, utilizando-se dos serviços na condição de réus, passam a, paulatinamente, funcionarem como mobilizadores ativos do aparato judicial.120

Não obstante os avanços, ainda existe a procura suprimida, a qual se insere na ótica da sociologia das ausências, isto é, uma ausência que é socialmente produzida. É essa procura suprimida que é colocada em discussão por Boaventura de Sousa Santos, o qual sustenta que, se ela for considerada, vai levar a uma grande transformação do Poder Judiciário e do sistema jurídico em geral, fazendo-se sentido falar, assim, em revolução democrática da justiça.121

Com efeito, Boaventura de Sousa Santos passa, em sua obra, a identificar algumas das grandes transformações da tarefa que denomina revolução democrática da justiça. Em um primeiro momento, enfrenta a temática das reformas processuais e da morosidade. Em seguida, adentra nas dificuldades de acesso à justiça, apontando a necessidade de utilização de critério racional e uniformizado de custas judiciais; de fortalecimento das Defensorias Públicas e de estímulo a iniciativas que estão a surgir na sociedade brasileira, como as promotorias legais populares, as assessorias jurídicas universitárias populares, a capacitação jurídica de líderes comunitários e a advocacia popular.122

Em um terceiro momento, adentra nas inovações institucionais que proporcionem uma justiça democrática de proximidade, listando, nesse campo, a experiência da justiça itinerante; da justiça comunitária; dos meios alternativos de resolução de litígios; da mediação; da conciliação judicial e extrajudicial; da justiça restaurativa e, principalmente, dos juizados especiais.123

Em quarto lugar, enfrenta a temática da formação dos magistrados e da cultura jurídica, afirmando a necessidade de formação dos magistrados para a complexidade, para os novos desafios e para os novos riscos. Critica, portanto, o domínio da cultura estritamente normativista e técnico-burocrática, a qual se manifesta de múltiplas formas: na prioridade do Direito Civil e Penal; na cultura generalista; na desresponsabilização sistêmica; no privilégio

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 20. 120 Ibidem, p. 22. 121 Ibidem, p. 32. 122 Ibidem, p. 45 – 56. 123 Ibidem, p. 58.

do poder; no refúgio burocrático; no distanciamento da sociedade e na independência como autossuficiência.124

Adentra, ainda, na necessidade de revolução das faculdades de Direito, para que a educação jurídica seja uma educação intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuída da ideia de responsabilidade cidadã. Por fim, sustenta a necessidade de criação de uma cultura jurídica democrática nas escolas de magistratura.125

Em um quinto momento, enfrenta a temática dos Tribunais e dos movimentos sociais, ponto que aborda, finalmente, o campo jurídico de disputa em torno dos conflitos estruturais. Sobre o assunto, Boaventura de Sousa Santos afirma que a forma de organização judicial, a qual é estruturada de modo piramidal e marcada pela hierarquia profissional, contribui para o isolamento social do Judiciário, fechando-o, ao mesmo tempo em que a sociedade vai se diversificando e se torna cada vez mais plural.126 Esse cenário se reflete em

críticas à resposta do Judiciário a demandas que envolvem conflitos estruturais, em especial diante de manifestações de grupos hipervulneráveis e movimentos sociais, como o movimento negro, indígena e dos sem-terra.

Diante desse cenário, para além da morosidade sistêmica, isto é, daquela que decorre da burocracia, do positivismo e do legalismo, um dos grandes entraves colocados pelo Poder Judiciário é a morosidade ativa, apontada como a decisão deliberada de não decidir, de protelar os casos e, com isso, de evitar abordar a questão, haja vista a sua complexidade e os interesses envolvidos. O professor de Coimbra defende, pois, que, no âmbito da revolução democrática que propõe, o Poder Judiciário deve buscar outro tipo de relacionamento com os movimentos sociais, mediante a aproximação, o conhecimento dos fatos e o estudo do caso.127

A questão se estende, ainda, ao papel do Direito e dos Tribunais na apreciação dos conflitos estruturais, momento no qual o sociólogo português defende que o papel emancipatório de utilização do direito e da justiça só se confirma se os Tribunais se virem como parte de uma coalização política que leve a democratização a sério, acima dos mercados e da concepção possessiva e individualista dos direitos. Assim, a contribuição dos Tribunais, sob a ótica da democracia, ocorreria na medida em que estabelecessem uma ligação entre as disputas individuais da sociedade que analisam e os conflitos estruturais que dividem essa mesma sociedade. Entretanto, a resposta mais comum a esse tipo de conflitos seria trivializá-

124 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 66 – 70.

125

Ibidem, p. 76 – 78. 126 Ibidem, p. 79. 127 Ibidem, p. 80 - 81.

los e despolitizá-los, por intermédio de procedimentos rotineiros que individualizam a disputa e a evitam.128

O pensamento acima exposto revela a complexidade dos fatos sociais, situação que deve ser relacionada ao funcionamento dos serviços públicos, ao desenvolvimento de políticas governamentais e à intervenção do Poder Judiciário, quando demandado a solucionar esses problemas estruturais.

Com efeito, Guglielmo Marconi Soares de Castro afirma que os litígios marcados por falhas estruturais são aqueles nos quais a situação de violação aos direitos fundamentais está intrínseca ao próprio funcionamento do serviço ou órgão estatal, aparentando a tendência de se consolidar em definitivo, haja vista a dificuldade prática de superá-la pela via judicial. Portanto, são conflitos sedimentados na atuação abusiva de entidades que exercem influência sobre os rumos da sociedade, os quais só podem ser eficazmente superados a partir de uma ampla reestruturação institucional. Aduz, ainda, que, no controle das condutas estatais omissivas ou comissivas, o Judiciário se mostra aparentemente destituído de um método processual adequado para o deslinde satisfatório das controvérsias.129

Após toda essa explanação, evidencia-se que a efetividade dos direitos sociais, em especial quando a violação ocorre em relação a grupos hipervulneráveis, contrasta com a gama de direitos previstos constitucionalmente, os quais foram proclamados como um curto- circuito histórico. Exige-se, assim, a implementação de políticas públicas compromissadas com a promoção da dignidade devida indistintamente a todos os grupos sociais e indivíduos, cujo grande obstáculo é a percepção de que as mudanças sociais não se operam de forma repentina quando se está diante de conflitos e problemas estruturais.

Ao se litigar perante o Poder Judiciário, percebe-se que a concretização dos direitos sociais, sobretudo quando a judicialização da política pública enfrenta problemas estruturais, não se resolve, comumente, com a prolação da sentença ou do acórdão. Afinal, a proclamação de direitos fundamentais se esvazia quando a decisão judicial não é construída de forma a se tornar exequível, tamanhos são os óbices que perpassam a fase de execução. Abre-se espaço, assim, para a percepção de que a litigância estratégica em direitos sociais pode colaborar para a construção de decisões exequíveis.

128 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 82.

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CASTRO, Guglielmo Marconi Soares de. Litigância de interesse público: adequação e efetividade da tutela jurisdicional no âmbito do controle judicial de políticas públicas. 2016. 225f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016, p. 197.

4.2 A MUDANÇA DE ENFOQUE: A DIFICULDADE NA EXECUÇÃO DE DECISÕES