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3 POLÍTICAS PÚBLICAS E SEU CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO:

5.1 CONHECIMENTO DA VIOLAÇÃO AO DIREITO SOCIAL, MEDIANTE A ESCUTA

O conhecimento da violação ao direito social – de modo aprofundado – é o principal ponto de partida para a litigância estratégica, sobretudo quando se está diante de conflitos estruturais. Não obstante o seu enquadramento na fase pré-processual, essa imersão nos fatos deve acompanhar todas as etapas da litigância estratégica.

Observa-se que, em se tratando de proteção a direitos humanos, a identificação do contexto fático passa pela necessária escuta das vítimas da violação de direitos, de que são exemplos aqueles que sofrem discriminação das mais variadas espécies e grupos vulneráveis, a saber: mulheres; negros; comunidade LGBTTI - lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e intersexuais; comunidades tradicionais (a exemplo dos grupos quilombolas e indígenas); membros de religiões de matriz africana; população em situação de rua; idosos; pessoas com deficiência; criança e adolescente; presos; consumidores etc.

sociais, observatórios de Direitos Humanos (em especial os ligados às Universidades), Ouvidorias Externas das Defensorias Públicas152 e órgãos que funcionam como porta de

entrada153 no conhecimento das violações de direitos e na identificação das vítimas efetivas e

potenciais.

Importante instrumento de trabalho a ser utilizado é a escuta qualificada das vítimas. O termo escuta qualificada é mais comum no campo do Serviço Social. Trata-se do processo de ouvir, problematizar e agir, por intermédio do qual se constrói, de forma interativa, respostas adequadas à situação. É essa escuta que possibilita a aproximação com o usuário do serviço, a identificação das demandas imediatas e a construção de vínculos de confiança. Ademais, a acolhida do usuário, a partir da escuta qualificada, possibilita que, posteriormente, sejam coletados dados, viabilize-se o monitoramento da situação e sejam feitos encaminhamentos.

Quando se fala de litigância estratégica em direitos sociais – área de atuação comumente vinculada ao controle de políticas públicas -, deve-se trazer à baila a crítica ainda atual de Eduardo Appio, para quem o processo de formulação das políticas públicas não pode ser decorrência da vontade institucional dos legitimados ativos para a propositura de ações coletivas. Isso porque as propostas feitas por essas instâncias mediadoras entre governo e sociedade (a exemplo da Defensoria Pública e do Ministério Público) somente podem ser aceitas a partir de um amplo processo de comunicação que englobe os argumentos dos cidadãos atingidos pela violação de direitos. Para o doutrinador, somente através da ação combinada dos sistemas de democracia participativa e representativa a questão da legitimidade do controle judicial poderá ser resolvida.154

Essa identificação do contexto fático é fundamental para se responder aos seguintes questionamentos: (I) qual a violação de direitos?; (II) quais as razões para essa violação de direitos?; (III) a sociedade está preparada para a mudança almejada por aquele indivíduo ou pelo grupo do qual ele faz parte?; (IV) existe a possibilidade dos direitos desse indivíduo ou desse grupo, possivelmente minoritário ou vulnerável, serem reconhecidos pelo Poder Legislativo?; (V) existe a possibilidade de alocação de recursos públicos, nas leis orçamentárias, para o desenvolvimento de projetos e políticas públicas voltadas ao

152 A Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, ao organizar a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescrever normas gerais para sua organização nos Estados, determina que o cargo de Ouvidor das Defensorias Públicas será ocupado por pessoa não integrante da carreira.

153 São exemplos de órgãos que funcionam como porte de entrada de demandas: os Conselhos Tutelares, quando se fala de direitos das crianças e adolescentes; os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), quando se trata de pessoas em situação de vulnerabilidade social; as unidades básicas de saúde, etc.

154 APPIO, Eduardo Fernando. O controle judicial das políticas públicas no Brasil. 2004. 473 p. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2004, p. 421-422.

reconhecimento desses direitos? (VI) o Poder Executivo desenvolve serviços, direta ou indiretamente, ou fomenta a execução de trabalhos voltados à proteção dos direitos desse indivíduo ou do grupo?; (VII) o Poder Judiciário está preparado para reconhecer esses direitos?; (VIII) ainda que haja o reconhecimento do direito pelo Poder Judiciário, a fase de execução da decisão tem possibilidade de ser exitosa?; (IX) a prolação da decisão judicial basta para que a sociedade aceite os fatos?

Quando se traz a temática para o nicho dos direitos sociais, notadamente sob o recorte das políticas públicas, observa-se que o conhecimento da realidade e a resposta às indagações tecidas também decorre de outras medidas, como, por exemplo, a apropriação de dados estatísticos; o acompanhamento de reuniões e pautas dos conselhos nacionais, estaduais e municipais de direitos (a exemplo dos Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, do Idoso, da Assistência Social, da Educação, da Saúde, da Mulher, dentre outros); a instrução de procedimentos extrajudiciais; notícias jornalísticas; audiências públicas etc.

Ilustram-se esses questionamentos a partir de casos emblemáticos, os quais foram apreciados pelo Supremo Tribunal Federal: a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, julgadas conjuntamente, nas quais a Suprema Corte afirmou que a união homoafetiva é entidade familiar, aplicando a ela as regras da união estável; e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 MC/DF, ainda em trâmite, mas na qual se reconheceu, em liminar, o Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário.

A união homoafetiva, na época da prolação da decisão do STF, era assunto extremamente polêmico na sociedade, com ampla rejeição e preconceito. No Poder Legislativo, o cenário não era diferente, já que nunca fora aprovada qualquer emenda constitucional ou projeto de lei que reconhecesse, expressamente, essa entidade familiar. Por isso, encontrou-se, no Poder Judiciário, o terreno fértil para a litigância estratégica.

Na ocasião do julgamento, datado em 05 de maio de 2011, conferiu-se interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, proibindo-se a discriminação das pessoas em razão do sexo, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual. Reconheceu-se o pluralismo como valor sócio- político-cultural, no qual se insere a liberdade para dispor da própria sexualidade, como categoria dos direitos fundamentais do indivíduo. O debate foi ampliado com a participação de amici curiae, permitindo-se a maior democratização do debate.155

155 Atuaram como amici curiae: Conectas Direitos Humanos; Escritório de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais; Grupo Gay da Bahia; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero; Grupo de Estudos em

Já na ADPF 347 MC/DF, caso emblemático de litigância estratégica, tomou-se, como motivo da propositura da ação, a persistente omissão do Poder Executivo em garantir infraestrutura adequada para os presídios e a proteção aos direitos dos custodiados. Como já visto no Capítulo 3, por ocasião do julgamento da medida liminar, entendeu-se que o contexto fático representava o chamado Estado de Coisas Inconstitucional, isto é, um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional.

Nesse contexto, verificou-se que a falta de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa falha estrutural que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação.

Frente à omissão sistemática dos Poderes Legislativo e Executivo, encontrou- se, no Poder Judiciário, terreno fértil para a litigância estratégica. Ainda que a decisão de mérito demore, frente à longa pauta do STF, observa-se que a ação em referência já vem desempenhando o papel de dar visibilidade ao tema, provocar o debate e buscar a transformação da realidade social.

Diante desses exemplos, constata-se que o conhecimento da realidade social é fundamental sob diversas nuances.

Em perspectiva mais óbvia, é necessário para se redigir, com profundidade e coerência, os fatos trazidos na petição inicial, além de instruir adequadamente a ação judicial proposta, sem prejuízo da produção probatória que ocorrerá no curso do processo. Destaque- se a possibilidade de se levar ao processo judicial os dados colhidos nas escutas qualificadas, trazendo à tona a história de vida e as violações de direitos sofridas pelo grupo minoritário, do qual comumente os magistrados não pertencem.

Em enfoque mais estratégico, o conhecimento da realidade fática é importante para aferir se o momento é adequado para a litigância, ou se há um grande risco de prolação de decisão judicial desfavorável, com a produção de efeitos indesejados, ou mesmo da prolação de uma decisão judicial com perspectivas baixas de efetividade.

Ademais, ouvir as vítimas é essencial para se perceber quais são as Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais; Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais; Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual; Associação de Travestis e Transexuais de Minas Gerais; Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual; Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais; Instituto Brasileiro de Direito de Família; Sociedade Brasileira de Direito Público; Associação de Incentivo à Educação e Saúde do Estado de São Paulo; Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Associação Eduardo Banks.

necessidades mais urgentes do grupo. Afinal, quando se trata de direitos sociais e do cenário de limitação de recursos públicos, é preferível se litigar estrategicamente por políticas públicas de maior relevância social, deixando para oportunidade futura outras questões, com o destaque de que a vivência das vítimas, com as suas escutas e consideração de suas opiniões, é indicativo do que é ou não prioritário.