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Da mesma forma que o perfil demográfico denuncia uma indistinção entre pequenos e não-proprietários de escravos, a aplicação do trabalho escravo comparado ao livre também se revelou complexa. Para garantir prosperidade no ciclo camponês, como já apresentamos, o trabalho

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do núcleo familiar era de singular importância. No entanto, é difícil calcular quais os níveis de participação da mão de obra livre e escrava quando falamos das pequenas propriedades de cativos. Seria o número absoluto de escravos e livres em uma unidade produtiva que determinaria a proporção de trabalhadores na lide? Muito provavelmente aqueles que contribuíam diretamente com o seu braço na lavoura ou em outra atividade desenvolvida pela unidade produtiva não eram todos os moradores do núcleo domiciliar.

As Tabelas I e II constituem uma tentativa de aproximação da quantidade média de indivíduos que atuavam na lide agrícola, de acordo com o número de escravos representados pela faixa de posse12. A primeira tabela calcula a média de pessoas livres (em idade produtiva) por

domicílio, de acordo com a faixa de posse em que se encontra. Já a segunda expressa a média de escravos em idade produtiva, também de acordo com a faixa de posse. Se considerarmos a idade produtiva de livres e escravos entre 15 e 45 anos, teremos os seguintes resultados de médias de trabalhadores por domicílio, de acordo com a posse de cativos:

TABELA I - Média de pessoas livres em idade produtiva por domicílio

de acordo com o tamanho da posse de cativos. Furquim. 1821

Fonte: Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana(AHCMM). CEDEPLAR/UFMG-Listas nominativas de habitantes. Freguesia de Furquim, 1821.

TABELA II - Média de escravos em idade produtiva por domicílio de

acordo com o tamanho da posse de cativos.

Fonte: AHCMM, CEDEPLAR/UFMG. Listas nominativas de habitantes. Freguesia de Furquim. 1821.

E S S O P LIVRES DOMICÍLIOS MÉDIA 0 900 355 2,5 1 0 150 52 2,8 2 0 99 37 2,6 3 0 33 16 2,0 4 0 54 24 2,2 5 0 27 15 1,8 E S S O P ESCRAVOS DOMICÍLIOS MÉDIA 1 37 52 0,71 2 51 37 1,3 3 36 16 2,25 4 61 24 2,54 5 51 15 3,4

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A primeira informação que salta aos olhos é o fato de que, a partir da terceira faixa de propriedade de escravos, o número de cativos supera a quantidade de livres, tanto se considerarmos o número bruto de cativos quanto se levarmos em conta a comparação entre as médias, conforme as Tabelas I e II. Por outro lado, é curioso que tenha havido uma importante redução na média de livres na faixa de 5 escravos (1,8) ,que, por sua vez, contava com 3,6 escravos em idade de trabalhar.

Esses dados indicam que, ao contrário do que já se cogitou, os domicílios que contavam com 3, 4 ou 5 escravos, tinham, no trabalho livre o complemento ao labor cativo. Dessa forma, em muitos casos, uma diminuta posse de trabalhadores escravos não significava que a unidade fosse camponesa, mas que poderia ser caracterizada como uma pequena propriedade escravista. É evidente que a análise subtrai outras variáveis como a possibilidade de crianças com até 14 anos e de adultos com mais de 45 anos participarem da produtividade, o que provavelmente ocorria, assim como a possibilidade da vida produtiva de livres ser mais longa que a dos escravos. O fato é que as tabelas revelam que a definição do proprietário como camponês ou escravista é mais complexa do que os números podem dizer. Em uma determinada situação econômica, regional ou temporal, ter 3 ou 5 escravos poderia significar muito, ao passo que esse mesmo número de escravos, dependendo das condições de saúde, do funcionamento da unidade ou da atividade desenvolvida, poderiam fazer pouca diferença no produto final alcançado.

Assim, se de um lado podemos afirmar que a formação de um núcleo familiar estável e o acesso à mão de obra escrava eram importantes para a prosperidade econômica da unidade produtiva, de outro, não se pode definir com clareza quais os limites existentes, na estratificação social e no perfil produtivo, entre aqueles que detinham nenhum ou poucos escravos. De fato, não foram poucos os casos em que a definição do proprietário como escravista ou camponês se mostrou fluída. Vejamos o caso de João Francisco de Macedo, lavrador, crioulo, casado, pai de uma filha e sem escravos, de acordo com a lista de habitantes de 1821. Já em 1831, possuía uma unidade produtiva com uma certa estrutura: dois escravos africanos, um crioulo, uma morada de casas, um rancho, um aporte de terra, uma foice, uma enxada, 10 bois, dentre outros bens. O monte-mor de seu inventário somou o pequeno valor de 649$080. Entre os 3 escravos que possuía, provavelmente, somente o único adulto trabalhava na lavoura, realidade também indicada pelo número de instrumentos de trabalho, 1 foice e 1 enxada.13 O

lavrador, que ao falecer deixou esposa e filha de 13 anos, parece fazer parte do grupo de detentores de mão-de-obra escrava, mas que ainda dependiam do próprio trabalho (e também da esposa) para o sustento da família. Por outro lado, se somente o seu único escravo adulto trabalhava na lavoura, como definir João Francisco, camponês ou escravista? Talvez ele fizesse parte de um grupo intermediário, ao qual social e economicamente não se possa fazer enquadramentos em categorias fechadas.

A análise da aplicação do trabalho escravo em pequenas unidades produtivas se torna ainda mais complexa quando analisamos o valor comercial dos cativos pertencentes a tais unidades produtivas. A partir das listas de habitantes, foram selecionados 50 inventários de chefes de domicílios. Os bens desses homens e mulheres foram quantificados e o montante total de suas respectivas riquezas classificados em 3 setores (pequenos, médios e grandes proprietários).14

TERMO DE MARIANA | História e Documentação 122 TABELA III

Proporção do investimento em escravos na riqueza inventariada. Furquim 1821-1850.

Fonte: ACSM. Inventários post mortem. 1821-1850.

* Situação A: Proporção do investimento em escravos de cada setor e do montante total

**Situação B: Proporção da concentração da riqueza total investida em escravos.

De acordo com a situação A da Tabela III, os escravos representavam a maior parcela (54%) do valor dos bens inventariados, que ainda eram divididos, dentre outros, por terras, casas, benfeitorias, animais, instrumentos de trabalho e dívidas ativas15. Apesar de também

representarem parcela majoritária dos bens do primeiro setor, os escravos somaram 39%, uma proporção bem menor do que a dos médios proprietários (57%) e grandes (56%). Se o peso dos valores em escravos na faixa dos pequenos proprietários não foi tão significativo como para as demais, vale refletir se os poucos escravos desses homens e mulheres tiveram valorização comercial e participação no trabalho cotidiano da lide agrícola.

Cerca de 65% de toda a riqueza da amostra pesquisada pertencia aos grandes proprietários de Furquim, 22% aos médios e apenas 13% aos pequenos. Maior ainda foi a disparidade da proporção do investimento em escravos em cada setor: 9%, 23% e 68%, conforme revela a situação B da Tabela III. O baixo nível de participação dos valores em escravos, se comparados com os de outros bens ou com o total da riqueza, também sugere uma importância comercial reduzida dos cativos pertencentes aos pequenos proprietários. A média dos preços dos escravos também evidenciou diferenças significativas entre os inventários de proprietários de Furquim. O preço médio geral da amostra foi de 218$138, mas a média do valor dos escravos do primeiro setor não ultrapassava 170$550.16 Conforme a

tabela IV, tomamos o cuidado de excluir os processos arrolados na década de 1820, quando o preço dos escravos ainda não havia experimentado o vertiginoso acréscimo das décadas seguintes.17 Mesmo assim, o valor médio do escravo do primeiro setor esteve cerca de 19%

mais baixo que as médias dos outros dois setores. Enquanto os escravos dos pequenos proprietários valiam, em média, 203$529, os cativos dos médios e grandes valiam, respectivamente, 250$123 e 255$040. R O T E S INVENTÁRIOS SITUAÇÃOA* SITUAÇÃOB** 1 22 39% 9% 2 14 57% 23% 3 10 56% 68% l a t o T 50 54% 100%

TERMO DE MARIANA | História e Documentação 123 TABELA IV - Valores médios dos escravos, em mil réis, segundo o

nível de riqueza. Furquim. 1821-1850.

Fonte: ACSM. Cinquenta inventários post mortem. 1821-1850.

Os escravos dos pequenos proprietários teriam valor comercial mais baixo? Se considerarmos essa hipótese, o peso da participação desses escravos na unidade produtiva familiar pode ter sido menor do que a sua simples presença numérica parece revelar. Analisando o perfil dos 60 escravos desse setor, percebemos que aqueles escravos em perfeitas condições de saúde e dentro da idade produtiva somavam apenas 23 cativos, ou seja, 38,3% do total. Dessa forma, apesar da notória existência de escravos em suas unidades produtivas, o grupo dos pequenos proprietários não estaria mais próximo daquela imensa maioria dos domicílios em que o trabalho familiar predominou? Apesar de sub-representadas na amostra de inventários, as unidades tipicamente familiares poderiam ter características econômicas muito próximas das do grupo que aqui estamos denominando de primeiro setor.

Segundo Carlos Bacellar, que analisou as listas de habitantes de Sorocaba de 1772, é fundamental considerar a qualidade dos cativos em questão, procurando evitar definir a unidade produtiva pelo tamanho do seu plantel: “Pois, afinal de contas, possuir escravos crianças, velhos ou doentes pode causar ao observador uma falsa impressão de prosperidade em um domicílio, que na verdade possuía um plantel fraco e de baixo valor de mercado.” 18

Provavelmente, os não proprietários de escravos e aqueles que possuíam apenas 2 ou 3 cativos, muitas vezes com baixo valor comercial, estavam em um nível econômico aproximado. Isso sugere também que a capacidade de aquisição da mercadoria escrava por parte dos pequenos proprietários deve ser relativizada; ou seja, eles teriam tido acesso a peças desvalorizadas, o que mostra a restrição da participação do chamado senhor-camponês na formação da vasta escravaria mineira.

Podemos sublinhar o caso do lavrador Luís José Coelho, branco, casado e pai de quatro filhos, além de ter quatro escravos listados em seu domicílio no ano de 1821. Esse número de cativos representa uma propriedade razoável, para os padrões mineiros, conquistada no período de maior oferta de africanos para o mercado (possuía 3 africanos). Contudo, cerca de 26 anos depois, o lavrador faleceu deixando apenas três alqueires de terras, três cavalos, dois

S E R O T E S PREÇOMÉDIO SEMADEC.DE1820 1 170$550 203$529 2 192$829 250$123 3 236$860 255$040 l a r e G 218$138 249$980

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bois e uma besta entre os seus bens, que não ultrapassavam 231$520. Luís José é o proprietário mais pobre de nossa amostra de inventários e sua trajetória mostra a dificuldade dos setores menos abastados de alcançar e de manter a propriedade escravista.19