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Com a Mitra Lourenço se entregava, Do carro então de resplendor vazio, Que Faetonte infeliz precipitava Na rápida corrente do seu rio.

Cônego Francisco Xavier da Silva, Soneto, Canto V, Áureo Trono Episcopal, 1748

O primeiro bispo não tombaria do Trono Episcopal como caíra o insensato Faetonte do carro do sol 37. Todavia, sobreviveria a fortes turbulências: durante a rude travessia do sertão, com

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saldo de mortos e feridos, seria dado como morto; à fundação da Igreja em Minas, a necessidade de justaposição à organização administrativa já instalada na Capitania levaria a impasses. Embora, sob o Padroado, ouvidores e juízes de fora assumissem ambígua tarefa de interação e vigilância do clero, a Cúria Episcopal buscava consolidar estrutura hierárquica própria, com gradativo aparelhamento da Diocese e distribuição de cargos e ofícios para efetivação da administração diocesana. As funções de evangelização, administração e justiça eclesiásticas se veriam, destarte, imbricadas. Mecanismos como as visitas pastorais e as devassas se revelavam fundamentais nesse trabalho de vigilância. Detectadas infrações de párocos ou fregueses, penas pecuniárias previstas pelas Constituições da Bahia podiam ser aplicadas em favor da fábrica da igreja, a qual não abria mão do chamado “Fisco Eclesiástico”38.

Com o tempo, desentendimentos que já despontavam durante a jurisdição dos bispos fluminenses tenderiam a crescer. Cada segmento procurava persuadir o outro de sua autoridade: o bispo, pela faculdade apostólica e canônica; os ouvidores, pelo Padroado. Malgrado o pacto de cooperação, os atores disputariam campos de jurisdição como as irmandades, os resíduos de testamentos. Denúncias à Coroa se multiplicavam: o Bispo estaria obrigando pais de famílias e solteiros que falecessem com ou sem testamento a rezar três ofícios de defuntos. Dom frei Manoel lembrava, em sua defesa, que moderara, em 1749, os valores dos ofícios fúnebres, em atenção às queixas ouvidas em visitas. Caetano Matoso, ouvidor de Vila Rica, reclamava que havia visitadores conferindo os livros das Irmandades seculares, o que “causava transtornos”39. Em outra denúncia,

o bispo estaria obrigando irmãos da Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, ereta há quatorze anos, a assinar termo de sujeição à jurisdição eclesiástica, em troca de permissão para que expusessem o Santíssimo Sacramento. O bispo corrigira as informações: “não havia irmanda[de] [n]em formalidade, nem tinham aqueles devotos livro de receita, e despesa, nem dava contas, e só faziam algumas festas, quando lhes parecia só por devoção, e não por obrigação, ainda que indevidamente se chamavam irmãos, entre si sendo só na realidade devotos”40.

Ironicamente, o prelado seria réu em representações originadas do próprio clero diocesano: os párocos remunerados pela Coroa constestavam suas decisões, em especial as que tratavam de divisão de freguesias, com subsequente diminuição dos emolumentos paroquiais41.

O patrocinador da edição príncipe do Áureo Trono Episcopal e locatário da primeira residência episcopal, cônego Francisco Ribeiro, lideraria um partido de oposição no cabido diocesano. Esse movimento levaria o autor do Sermão da Criação da Sé Catedral a tornar-se procurador do cabido em questões judiciais contra o bispo em Lisboa42.

A essa altura, as denúncias contra dom frei Manoel da Cruz pareceram atingir um pico. Em março de 1753, um aviso régio o advertia duramente: “por constar que o governo do bispado era dirigido por uns clérigos seus sobrinhos”. A oposição ao bispo envolvera outras frentes: comandados pelo Dr. Juiz de fora Silvério Teixeira, os edis das câmaras de Mariana engrossaram, em 1755, a fila dos detratores do bispo. À Coroa enviaram carta, esboçando o seguinte retrato do religioso: usurpador da jurisdição régia, amante do dinheiro, de pouca caridade com os mais pobres43. No ano seguinte, 1756, uma ordem régia nomeava junta de ministros de diversos tribunais

para apurar as queixas e examinar as ações do bispo. À mesma altura, ele relatava ao amigo Gabriel Malagrida: “subindo a sua real presença três dias antes de partir a frota passada uma consulta muito volumosa e cheia de mentiras, falsidades, e falsos testemunhos contra mim, me mandou o

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dito Senhor ouvir por cima, insinuando-me os pontos, a que eu devia responder”. Ao que explicava, “respondi na mesma frota com a verdade e sinceridade que costumo, à vista da qual se viu uma junta de ministros de vários tribunais”. Aprovada sua defesa, observara o bispo: “Sua Majestade foi servido mandar dizer-me que eu satisfizera plenamente todas as queixas. Queriam me macular, mas ficou triunfante a minha verdade”44. Recapitulando, porém, em 1757, os sucessos de seu

governo à Sagrada Congregação do Concílio de Trento, o bispo resumia os eventos a uma “tormenta armada” abatida sobre sua pessoa45.

Curiosamente, o ano de 1760 é o marco de requisições de reparos para a catedral, encaminhadas à Provedoria da Fazenda: encomendava-se pintura lisa e uma pintura de santos para ornamento das duas abóbadas da Sé Catedral. O mesmo pintor arrematou os dois trabalhos46.

Fato curioso: ali se retrataram mártires quase desconhecidos. Malgrado registro da participação do cabido (sem especificação de nomes) na requisição dessa pintura, vale destacar duas coisas: primeiro, a temática representada coadunava-se com a pastoral de dom frei Manoel da Cruz; segundo, que compêndios legislativos seiscentistas adaptaram os decretos tridentinos à arquitetura sacra, condicionando a fabricação dos ornatos, pinturas, esculturas, mobiliário e configuração geral do espaço sagrado à definitiva aprovação dos bispos. Garantia-se, dessa forma, o esplendor do culto, mas centralizava-se na autoridade episcopal a vigilância e o controle sobre a produção artística destinada ao espaço sacro47.