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Habilitar a familiar do Santo Ofício: os procedimentos

Os candidatos das Minas tinham de eleger um procurador na Corte que cuidasse da burocracia dos seus processos de habilitação e que lhes enviassem a tão almejada Carta e a medalha de familiar do Santo Ofício – as quais ficariam sob o poder dos habilitandos após estes tomarem o juramento de seus cargos perante os comissários da Inquisição residentes nas Minas. Dos 111 processos de habilitação analisados, encontramos informações a respeito dos procuradores de 14 candidatos, os quais, muitas vezes, atuavam no mesmo setor econômico de seus habilitandos, como era o caso daqueles ligados a atividades comerciais. Encontramos 5 casos de candidatos homens de negócios cujos procuradores tinham essa mesma ocupação.

João Botelho de Carvalho, por exemplo, quando esteve na Corte, foi procurador de Simão de Souza Rodrigues, habilitado em 1754. Ambos eram homens de negócio residentes na Cidade de Mariana5. Portanto, as relações tecidas em função da atividade comercial foram decisivas para

que um dos envolvidos cuidasse da burocracia da habilitação na Corte.

Para se tornar um familiar da Inquisição, primeiramente, o candidato deveria enviar uma petição ao Conselho Geral do Santo Ofício6, declarando sua naturalidade, residência e ocupação.

Nesse documento deveria mencionar os nomes e as respectivas naturalidades de seus pais e dos quatro avós e, caso tivesse, da sua esposa ou noiva. Se tivesse filhos, ilegítimos ou não, deveria proceder da mesma forma. E ainda, caso tivesse algum parente familiar do Santo Ofício, deveria citá-lo, o que, como veremos, poderia abreviar o processo de habilitação.

Na referida petição, os habilitandos apresentavam uma breve justificativa da sua candidatura ao cargo de familiar, geralmente dizendo que concorriam nos requisitos necessários. Nesse sentido, podemos citar como exemplo a petição de Bento Gomes Ramos: “diz (...) que ele deseja servir o Tribunal do Santo Ofício no cargo de Familiar porque nele concorrem os requisitos necessários.”7 Em alguns casos, os candidatos informavam apenas que queriam servir a Deus e ao

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Santo Ofício, para o que pretendiam ser admitidos por familiar dele.8 Alguns poucos candidatos

destacavam suas posses. Cosme Martins de Faria (cujo processo não teve desfecho), por exemplo, afirmou que “ele suplicante deseja muito servir a Deus e a este Santo Tribunal no ministério de familiar para aumento e exaltação da santa fé e porque na pessoa do suplicante concorrem todos os requisitos necessários e é abastado de bens por ser um mercador rico (...)”.9

A petição era dirigida aos deputados do Conselho Geral e após o despacho deste, iniciava- se o processo de habilitação. Depois de com pedido de nada consta dos três tribunais inquisitoriais do Reino: Coimbra, Évora e Lisboa. Após verificar o repertório de condenados, o notário de cada Tribunal deveria passar uma certidão da existência ou não de culpa referente ao habilitando e aos seus ascendentes.

O passo seguinte eram as diligências extrajudiciais (de ascendência e de capacidade) e as judiciais (de ascendência e de capacidade).Era realizada uma extrajudicial no local de nascimento do habilitando, de seus pais e avós. A ênfase era na limpeza de sangue da geração do candidato. Diferentemente das judiciais, o número das testemunhas interrogadas nas extrajudiciais variava, não havendo um número pré-fixado.

Em tal interrogatório extrajudicial sobre a ascendência do habilitando, verificava-se se ele era “legítimo e inteiro cristão velho, sem raça alguma de nação infecta”; quem eram seus pais e avós paternos e maternos; onde foram morar; se as ditas pessoas eram naturais e moradoras donde se dizia na petição; que ocupação tiveram ou de que viveram, também era investigado se o habilitando

antes de vir de sua pátria foi casado de que se ficassem filhos ou se consta que tenha algum ilegítimo e se ele ou algum de seus ascendentes foi preso ou penitenciado pelo santo ofício ou incorreu em infâmia pública ou pena vil de feito ou de Direito.10 O comissário deveria listar o nome das testemunhas com quem se informou e os dias que gastou na diligência, assim como os custos despendidos.Quando os ascendentes eram provenientes de freguesias diferentes, era feita uma diligência em cada local. Nesses casos, o mais comum era que a via materna fosse de uma localidade e a paterna, de outra. Na maioria dos casos de nossa amostragem, os ascendentes vinham de freguesias próximas, geralmente de um mesmo concelho ou comarca, sobretudo no caso dos minhotos.

Depois de verificada a genealogia, em uma segunda etapa, outra diligência extrajudicial era realizada, porém, agora no local de moradia do habilitando, ou onde se pudessem encontrar pessoas que o conheciam para que se verificassem sua capacidade e reputação. Nessa etapa, a ênfase era o seu cabedal; daí as perguntas sobre de que e como vivia e se tinha capacidade para servir o Santo Ofício. Caso o pretendente fosse casado, os mesmos passos seriam seguidos para a habilitação de sua esposa, que deveria ter os mesmos requisitos do candidato.

Concluídas as diligências extrajudiciais e não tendo sido encontrados problemas, era exigido um depósito em geral por meio de um procurador, para cobrir as despesas do processo, que variavam de acordo com uma série de fatores, como veremos a seguir. Se, no decorrer do processo, o custo superasse o valor do depósito inicial, era necessário que se fizesse um novo.11

Em seguida, passava-se às diligências judiciais. Essas, assim como as extrajudiciais, se dividiam em duas etapas. Uma visava obter informações a respeito da geração e limpeza de sangue

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do habilitando, de seus pais e quatro avós no local de seus respectivos nascimentos. A outra etapa – no caso do conjunto de Familiares que analisamos – era realizada em Minas, no Rio ou em Lisboa, entre as pessoas que conheciam o habilitando. A ênfase dessa última parte era colocada na verificação da capacidade do habilitando. Como vemos, as questões buscadas em cada etapa das judiciais eram as mesmas das de cada etapa das extrajudiciais. A diferença residia na forma de aplicação do interrogatório.

Na primeira etapa das judiciais – diferentemente das extrajudiciais, que não pré-fixavam um número de testemunhas – o número de pessoas a serem interrogadas era sempre 12, as quais deveriam ser “pessoas cristãs velhas, antigas, fidedignas e mais noticiosas”. Antes de responder as perguntas, o comissário dava-lhes “o juramento dos Santos Evangelhos para dizerem verdade e terem segredo no que forem perguntadas”. O que interessava à Inquisição era saber se a testemunha conhecia o habilitando, desde quando e qual a razão de tal conhecimento. Depois, se conhecia e, desde quando, o pai, a mãe, e os quatro avós; de onde eram naturais; de que viveram e qual a razão de tal conhecimento; se o habilitando era filho legítimo dos pais e avós que havia declarado na petição ao cargo; se o habilitando, seus pais, avós paternos e maternos

foram sempre pessoas cristãs velhas, limpas e de limpo sangue e geração, sem fama alguma de Judeu, cristão novo, mouro, mourisco, mulato, infiel, ou de alguma nação infecta, e de gente novamente convertida à Santa Fé Católica, e se por inteiros e legítimos cristãos velhos são e foram todos e cada um deles por si tidos, havidos e geralmente reputados, sem nunca do contrário haver em tempo algum fama, ou rumor e se o houvera que razão tinha ele testemunha para o saber.

Se sabe, ou ouviu que o habilitando, ou algum de seus ascendentes fosse preso, ou penitenciado pelo Santo Ofício, ou que incorresse em infâmia pública, ou pena vil de feito ou de Direito.

Se o habilitando antes de sair de sua pátria foi casado, de que lhe ficassem filhos ou se consta tenha algum ilegítimo.12

Por último, interessava ao Santo Ofício saber se tudo o que havia sido testemunhado era público e notório. No total, eram respondidas 11 questões. Quando se tratava de filhos de familiares do Santo Ofício ou de algum candidato que já tivesse um irmão habilitado, as questões sobre os avós eram excluídas, o que encurtava o processo em número de fólios e custo.

O comissário responsável pela primeira etapa da diligência judicial deveria pesquisar, nos livros de batizados e casamentos, as certidões de batismo do habilitando, de seus pais e avós, assim como as de casamento destes últimos.

Quanto à segunda etapa das judiciais, quatro e cinco testemunhas eram interrogadas por meio de seis questões cuja ênfase era a capacidade do habilitando, ou seja, se

é pessoa de bons procedimentos, vida e costumes, capaz de ser encarregado de negócios de importância e segredo e de servir ao santo ofício no cargo de Familiar,

TERMO DE MARIANA | História e Documentação 89 se vive limpamente e com bom trato, que cabedal terá de seu ou sido, se o negócio de que trata tira lucros para passar com limpeza e asseio, se sabe ler e escrever e que anos terá de idade.13

Investigava-se também se o habilitando “é ou foi casado, de cujo matrimônio ficassem filhos ou se consta tenha algum ilegítimo”.

As pessoas que iam prestar as informações sobre o candidato eram notificadas geralmente por um Familiar da Inquisição. As testemunhas deveriam ser homens idosos (de preferência), reputadas como cristãs velhas e limpas de sangue e, quando possível, familiares do Santo Ofício.14

No conjunto de 111 processos de habilitação que consultamos referentes a habilitandos moradores no Termo de Mariana, encontramos familiares depondo em 26 diligências extrajudiciais e em 24 judiciais. Em 1745, por exemplo, no processo de habilitação do coronel Caetano Alves Rodrigues, todas as testemunhas das judiciais, realizadas em Vila Rica, eram familiares do Santo Ofício15.

A atuação de familiares no processo de habilitação, tanto nas extrajudiciais como nas judiciais, por meio da notificação de testemunhas16 e do depoimento, era uma forma de

interferirem, embora de forma limitada, no recrutamento da rede de agentes inquisitoriais à qual já pertenciam. Se eles eram chamados a depor, isso significava que conheciam o habilitando.

Nos casos em que encontramos familiares como testemunhas, os depoimentos foram sempre favoráveis aos habilitandos. Podemos citar, como exemplo, as judiciais de capacidade do homem de negócio João Gomes Sande, em 1752. Nessas, o familiar Miguel Teixeira Guimarães, também homem de negócio, depôs que

conhece ao habilitando João Gomes de Sande há 10 ou 12 anos a esta parte na cidade de Mariana e também o conheceu em Portugal por razão de amizade e trato que tinham entre si, o pai do dito habilitando com o pai dele testemunha e por esta razão sabe que é natural da freguesia de São Nicolau da Cabeceira de Bastos e que a razão de o conhecerem na cidade de Mariana é por ter amizade e contas com ele e ver e tratar muitas vezes na dita cidade e aonde vem com muita freqüência tratar dos seus particulares do sítio do Gama, freguesia de São Sebastião, onde é morador.17 Miguel Teixeira Guimarães respondeu favoravelmente a todas as questões do interrogatório, o que seguia o padrão de todos os processos que consultamos, pois não nos deparamos com casos em que os familiares prejudicassem, com seu depoimento, a habilitação do candidato em questão.

Na grande maioria dos processos em que os familiares eram testemunhas, eles declararam conhecer os candidatos, geralmente por manterem tratos com eles nas Minas ou no Rio de Janeiro. Eles raramente se conheciam do Reino e ignoravam quem eram os pais e avós dos habilitandos. Apenas informavam vagamente o seu local de origem - a comarca ou o bispado.

De maneira geral, nas diligências realizadas no Rio de Janeiro - tanto nas extrajudiciais como nas judiciais - as testemunhas, usualmente, eram comerciantes de Minas que estavam lá; comerciantes daquela cidade que frequentavam a capitania mineradora a negócio; pessoas que já tinham morado nas Minas e pessoas que, depois de lá morarem, estavam de passagem para o Reino.

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Era comum as testemunhas terem a mesma ocupação que o habilitando. Por exemplo, no caso dos homens de negócio (o maior grupo ocupacional de contemplados pelas familiaturas em Mariana18), grande parte dos depoentes de seus processos também tinha essa ocupação.

Os procedimentos que descrevemos anteriormente foram o padrão adotado pela Inquisição até 1773. A partir dessa data, quanto aos requisitos, uma mudança fundamental teve impacto no processo de habilitação ao cargo de familiar do Santo Ofício: a abolição da distinção entre cristãos velhos e cristãos-novos por Pombal.

Dos 111 processos que consultamos, 107 ocorreram antes da abolição da limpeza de sangue. A procura pelo cargo de familiar cai vertiginosamente em todo o Império Colonial português depois de 177319, pois o principal elemento de distinção oferecido pelo título de familiar

era o atestado de limpeza de sangue. A partir desta data, nos interrogatórios não se perguntava mais sobre a limpeza de sangue, mas, em substituição, se o réu tinha cometido crime de lesa- majestade20 ou contra a fé católica.

Passemos agora ao local de realização das diligências. Quanto às extrajudiciais e às judiciais referentes aos pais e avós do habilitando, em 110 dos 111 processos consultados foram realizadas no Reino ou nas Ilhas, já que apenas um habilitando tinha os pais e avós nascidos na Colônia.

Em relação às diligências de capacidade, tanto as extrajudiciais como as judiciais eram feitas em Lisboa, no Rio de Janeiro ou em Minas – nesta última quase sempre na cabeça civil ou eclesiástica da Capitania: Vila Rica ou Mariana. O comissário era quem, na maioria das vezes, as realizava, mas também encontramos várias, em geral sob delegação dos comissários, executadas por vigários da vara ou simples párocos, principalmente nas freguesias mais afastadas da cidade de Mariana e antes da criação de seu bispado.

Analisando os registros de correspondências expedidas da Inquisição de Lisboa, percebemos que os comissários do Santo Ofício andaram nas Minas muito ocupados com as habilitações de familiares, pois mais da metade das correspondências enviadas para a região continham diligências relacionadas à familiatura, sendo 53 delas exclusivamente referentes à habilitação de familiares.21

No caso das diligências judiciais de capacidade dos habilitandos de Minas executadas em Lisboa, geralmente quem interrogava as testemunhas, recém-chegadas das frotas do Rio e que conheciam o habilitando, eram os deputados ou notários do Santo Ofício.

Problemas nos processos de habilitação: honra e limpeza